Ramin Mazaheri, The Vineyard of the Saker
Emmanuel Macron não perdeu tempo. Já é oficial: o presidente apresentará projeto de lei que transformará o atual estado extraordinário de emergência em prática policial regular.
Segundo Le Monde, que viu uma cópia vazada do texto da lei: “(…) quase todas as medidas do estado de emergência serão postas na lei comum.”
O que significa? Que toda a histeria pós-guerra do Charlie Hebdo não só não parará nunca, mas será convertida em nova normalidade: qualquer pessoa pode ser presa, revistada e detida logo à primeira qualquer acusação. Basta “informar” aos juízes; a polícia tem carte blanche.
Quer dizer… Quando poderei começar a me referir à França como “estado autoritário”, sem que ninguém me corrija?
[risos, risos]. Não sei o que faltaria, mesmo, para começar a chamar cassetete de cassetete… Lembro-me de que a doutrina da “retificação de nomes” de Confúcio mostra que quando não se dá as coisas o nome correto, sempre resulta desordem social.
Detesto dizer “eu avisei“, mas menos de um mês no poder, e Macron já provou que é o que muitos temiam: todo o fascismo de Marine Le Pen, um pouco menos (talvez) da xenofobia, 100 vezes mais de arrocho (“austeridade”). Que fórmula desgraçada!
E apesar de todos os avisos, Macron venceu com folga. E mais uma vez, apesar de todos os avisos, o partido de Macron muito provavelmente alcançará maioria absoluta no Parlamento depois da última rodada de votos, dia 18 de junho.
O projeto que transforma as liberdades civis na França será imediatamente apresentado à votação três dias depois, dia 21 de junho. Macron não está perdendo tempo para mostrar suas verdadeiras cores, e o projeto de lei vazou, com certeza, como aviso aos eleitores.
Entendo que o cidadão médio nem esteja prestando atenção, mas os jornalistas?! Nosso trabalho é prestar atenção a essas coisas.
Alguns jornalistas estão desperdiçando espaço fazendo-se de completamente surpresos ante a legalização do que se deve chamar de “ditadura de estado policial”, mas Macron mostrou sua inclinação política sempre que prometeu, repetidas vezes, prorrogar o estado de emergência quando chegasse ao poder, e disse outra vez essa semana (até 1º de novembro).
Em vez de focar a campanha – quando falou diretamente aos eleitores –, muitos jornalistas estão pretendendo, tolamente, que teriam sido enganados por um comentário no livro de Macron, de que o estado de emergência não poderia ser “permanente”.
Bom, claro… ninguém absolutamente está dizendo que a França precisa viver em permanente estado de emergência até o final dos tempos.
Mas a França é atualmente país tão escaldado pela reviravolta de 180 graus de Hollande, contra tudo que prometera na campanha, que todos talvez estejam hipersensíveis a outro eleito não confiável. Mas estão, isso sim, outra vez, deixando-se cegar, e melhor fariam se examinassem o fato de que as mudanças que Macron propôs para a legislação do trabalho, essa semana, são ainda mais de direita do que as que se ouviram do candidato em campanha.
Lembro aos leitores que uma “Lei Patriota à Francesa“, que dá aos policiais todos os poderes dos quais se supõe que precisem para combater o terrorismo, foi aprovada às carreiras na histeria da guerra pós-Charlie Hebdo em 2015. O braço executivo do governo francês já era talvez o mais poderoso no Ocidente – a ponto de, naquela época, muitos dizerem que a nova legislação não era necessária.
Mas arranjaram ainda mais poder, seja como for, porque esse parece ser o único verdadeiro talento dos políticos ocidentais no século 21.
O arranjo de coxia que cimentou Macron torna-se muito mais claro
A campanha de Macron não estava despencando, mas com certeza perdia o brilho, quando ele fechou um acordo político chave com o principal líder centrista francês, François Bayrou. Bayrou ficou em 5º lugar na eleição presidencial de 2012 – para lhes dar ideia do que significava no panorama doméstico.
No final de fevereiro, pesquisas mostravam que Macron estava atrás dos conservadores François Fillon e Marine Le Pen. Mas então o líder do partido centrista anunciou a aliança com Macron, e Macron nunca mais ficou abaixo do 2º lugar.
Creio que o acordo de coxia era o apoio de Bayrou em troca do lugar de primeiro-ministro, mas surpreendentemente ele se deu por satisfeito com o ser ministro da Justiça, acusador-em-chefe da República.
Bem, ninguém previu que a dupla procuraria ampliar tão drasticamente o papel do ministro da Justiça: a lei agora proposta realmente converte o mais alto procurador de justiça, em mais alto juiz do país! Trata-se se, obviamente, de monstruoso, alarmante conflito de interesses.
A nova lei significará que o braço judicial já nada terá a ver com seja o que for que traga atachada a palavra “terrorismo” – deixa de ser sistema de pesos e contrapesos; a lei só exige que seja informado das decisões tomadas pelo braço executivo: quer dizer, pelo presidente, pelos ministros do Interior e da Justiça e pelo oficial Jean-Michel O Policial.
Quando a polícia não precisa de mandados para revistar pessoas e casas, para raids e para prender, os juízes passam à função de autômatos carimbadores, exceto para casos tipo os que se veem nos reality-tribunais de TV.
O vazamento veio a público literalmente minutos antes de “Os Sábios”, “Os Inteligentes”, do Conselho Constitucional da França terem condenado fortemente a prática do governo de banir pessoas por participarem de manifestações públicas e os abusos de prisões de pessoas dentro da própria casa.
Anistia Internacional noticiou semana passada que cerca de 650 indivíduos foram banidos de participar de protestos pacíficos anti-governo nos últimos 18 meses. A grande maioria deles participaram da onda de protestos contra alterações na legislação do Trabalho, e umas poucas dúzias de ecologistas banidos durante a cúpula UN COP 21 em Paris, a mesma que Trump rejeitou recentemente.
Essa condenação pelo Conselho dos Guardiões – desculpem, “Os Inteligentes” – veio temperada pelo fato de que demoraram um ano e meio para se manifestar sobre uma questão fundamental de direitos democráticos… De fato, esse pão veio tão cheio de fermento, que o valor nutricional caiu a zero: não há dúvidas de que a ‘corte’ estava na gaveta do governo Hollande.
Os Inteligentes não se atreveram a tocar na questão de proibir manifestações em geral e completamente: Anistia Internacional disse que 155 manifestações foram absolutamente proibidas, mas não disse que esse “efeito intimidação” com certeza levou várias outras à morte por sufocamento ainda no berço. Quem sabe se manifestarão sobre essa decisão em… dezembro de 2019?
‘Je suis Algerien!’ [Sou argelino]
Circula agora um slogan que tem chances zero de viralizar [risos, risos]!
Mas é basicamente verdadeiro, porque da última vez em que houve estado de emergência na França, foi para impedir a independência da Argélia. Todos viramos argelinos desde novembro de 2015, e agora Macron quer que sejamos argelinos para sempre (bom, sempre melhor que sermos líbios – dia e noite bombardeados pela OTAN!).
Talvez aí o projeto europeu comece a ser útil: se aprovada, a lei francesa com certeza terá de ser avaliada na Corte Europeia de Direitos Humanos.
Questão fundamental, que a mídia-empresa mainstream não propõe, é: por que os políticos fazem sempre a mesma coisa (ruim)? Como ousei escrever que aconteceria, poucas horas depois de um ataque de terroristas do ISIL no Irã (e minha fé era justificada), os políticos iranianos não manipularam o terrorismo para obter mais poder antidemocrático para algum poder executivo.
As respostas a tal pergunta não podem ser boas, mas parece que os políticos franceses querem sempre mais poder, mais dinheiro, mais fama, mais o resto todo que… não traz qualquer benefício aos muitos (mais igualdade, mais justiça social, mais felicidade, mais paz, etc.).
Mas a queda precipitada do primeiro-ministro e apoiador de primeira hora de Hollande, Manuel Valls, deve servir como alerta de que esses assaltos ao poder saem pela culatra, quando os eleitores se manifestam. Vejam só! Todo o partido Socialista Francês talvez não eleja deputados nem para formar um grupo parlamentar, o que põe em questão a própria existência do partido. Eleitores não são tão perfeitamente idiotas como aqueles deputados pensam!
E porque esses políticos não são resposta prestável, ninguém progride na profissão de jornalista se insistir em fazer essas perguntas.
Lembro aos leitores que Macron disse que não continuará na política depois da presidência – voltará aos negócios privados, e ganhará dinheiro suficiente para comprar uma franquia da NBA, como Obama planeja fazer. Para um servidor público, é plano bem mercenário. Metade dos cerca de 400 candidatos do partido de Macron são totalmente novos na política, e parece que, por isso, serão facilmente dobráveis a favor da vontade de Macron; menos provável é que sejam comprometidos com o bem público, mais do que com acumular os benefícios do poder recém-adquirido.
Cedo demais para julgar Macron?
Continuo a perguntar a eleitores de Macron, sem provocá-los, se estão felizes com o próprio voto – e continuo à espera de um “sim” entusiástico.
Não quero ficar como negativo demais, cedo demais, quanto ao governo de Macron: acho que aconteceu com muita gente, com o governo Trump. Parece bem claro que Trump não fazia ideia da violência da reação do Estado Profundo contra as propostas dele, e não será surpresa que seja homem perfeitamente despreparado para aquela violência. Mesmo assim, ainda pode reencontrar o prumo e começar a reagir – a coisa ainda não acabou; melhor será reconhecer que está só começando.
Macron, contudo, foi o nº 2 no palácio do Eliseu e trabalhou em relação muito próxima com Hollande. Macron foi alto ministro do gabinete. Claro que conhece as cordas da trama política e o que está fazendo. Trump, no máximo, assistiu a “House of Cards” (a série é carregada de russofobia) como preparação para a presidência.
Em resumo, o que Macron está fazendo é implementar a vontade dos patrões – posto nos termos mais esquemáticos imagináveis. Macron nem imagina ir contra eles, e vê-se, a si mesmo, como um deles. Macron, ex-banqueiro dos Rothschilds, é também homem da alta finança e dos compradores de ações, e todos esses estão obviamente deliciados com a ascensão dele.
Nós jornalistas gostamos de nos divertir, e não somos lá muito criativos, então nos divertimos com dar nomes engraçados aos fantoches físicos e mentais que acompanhamos diariamente. Apelidei o Garoto Maravilha da França de “Emmanuel Macr-Obama“, porque os dois políticos não passam de nova embalagem da mesma marca capitalista/imperialista.
Macron e Marine Le Pen talvez fossem um e o mesmo personagem, desde o início?
Mas Macron parece ser ainda pior: quem acredita que Le Pen tomaria essa via, tão claramente autoritária?
Claro: se Le Pen fizesse qualquer coisa parecida com o que Macron está fazendo, o Twitter francês talvez explodisse, tamanha a indignação, o ultraje.
Certamente é difícil não antever que ao promover Macron tão abertamente a mídia francesa mainstream perderá cada vez mais credibilidade, quanto mais Macron caminhar na direção da direita.
Quando um veículo suposto de esquerda como Libération escreve do novo projeto de lei que “o sentimento de ter sido enganado começa a aparecer nas redes sociais, nas organizações tradicionais de defesa dos direitos humanos, nas ONGs, nas uniões de advogados e organizações políticas progressistas” –, o impulso é responder “Vá se atirar da ponte, Libé…” Afinal de contas, são os mesmos que deixaram de lado qualquer imparcialidade na véspera da eleição presidencial, naquela capa em que se lia, “Faça o que bem entender, mas vote Macron“.
O que é certo é que a mídia-empresa mainstream jamais, em tempo algum, realmente criticará Macron…ou Clinton, Obama, Cameron, etc. Significa dizer que a tarefa está com o cidadão médio. Muitos preveem que essa segunda onda de retrocesso nas leis do Trabalho inspirará greves e protestos do tipo que houve contra Hollande. Será que a atual normalização do estado de emergência trabalhará também nessa direção?
Mas todos os grupos que Libération listou não deveriam deixar-se enganar tão facilmente. Tinham de ter alertado a opinião pública sobre quem sempre foi o verdadeiro Macron; são culpados ativos: assustaram os eleitores e os empurraram a eleger Macron.
Claro que eu, que não sou idiota, voto com os comunistas. Mas nos disseram, sim, que Le Pen era a fascista, e agora vemos que Macron já trabalha, desde o primeiro dia, para institucionalizar o fascismo… OK. Vocês não entenderam, erraram, ok. Nesse caso, qualquer um, pela boa ética, deve admitir que errou. E deve mudar o próprio ponto de vista.
Acho que estaria escrevendo exatamente a mesma coisa, se Bernie Sanders tivesse sido eleito nos EUA…
Não há Terceira Via, não há reconciliação possível com o capitalismo; não há como acabar com a xenofobia, se não houver unidade socialista; não há como, de modo algum, não há como um banqueiro dos Rothschilds algum dia ser ou ter sido o que vocês, imbecilmente, diziam que ele seria.
E agora, quando escrevo isso, é véspera do primeiro turno das eleições parlamentares na França: os eleitores estão prontos para garantir a Macron uma maioria absoluta a qual, combinada com o Partido Republicano conservador elegerá 90% de deputados pró arrocho. C’est dingue… Piraram.
Não tinha de ser assim, mas se o povo cede ante o capitalismo, o resultado sempre é antidemocrático.