Terminamos a publicação da segunda parte do livro de Thierry Meyssan, Sous nos yeux (Sob os Nossos Olhos). Neste episódio, ele volta a debruçar-se sobre o amadorismo dos últimos presidentes franceses, sobre os conselhos dos raros partidários do colonialismo, e sobre o desastre que eles provocaram.
Este artigo é extraído do livro Sob os nossos olhos.
Ver o Indíce dos assuntos.
A intervenção da Rússia
O governo Hollande fica estupefacto logo que sabe, em Setembro de 2015, da movimentação militar russa. Jamais havia sequer imaginado o que a Rússia e a Síria preparavam desde há três anos. Ficará ainda mais surpreendido, em Agosto de 2016, quando a Rússia instala uma outra base, desta vez no Irão. Ora, desde há um ano que isso já estava acertado.
O Exército russo surge com numerosas armas novas e usa o campo de batalha para promover a sua indústria de Defesa. Em poucos meses, destrói um a um todos os bunkers e fortificações que a Lafarge e a OTAN construiram. No entanto Paris não compreende logo o que se está a passar, tanto mais que que Washington não se apressa a informá-la. A Rússia instalou em Lataquia um sistema inibitório dos controlos e comandos da OTAN [1]. A Aliança fica surda e cega num raio de 300 km. Além disso, assim que os seus aviões cruzam a zona, já não conseguem fazer funcionar as suas armas. [2]. Para que os diferentes atores internacionais possam verificar a eficácia desta arma de um novo género, a Rússia procede a testes estendendo-os para o espaço aéreo libanês e cipriota (o que inclui a grande base militar britânica) [3], e mais tarde iraquiano.
O mesmo sistema é instalado na Crimeia e em Kaliningrado. De facto, como o reconheceu o Supremo Comandante da OTAN, a Rússia tornou-se a primeira potência militar convencional à frente dos Estados Unidos. Não importa, Paris recua para o projeto Juppé-Davutoğlu enquanto vai participando na Coligação internacional [norte-americana] contra o Daesh(EI). Esta publica comunicados triunfais dos seus bombardeamentos contra os jihadistas. Ora no terreno, numerosas testemunhas atestam que ela não combate o Daesh, mas, sim que lhe lança armas e munições do ar, enquanto a República Árabe Síria dirige à ONU, tendo em vista compensações posteriores, listas de instalações de petróleo e de gás que a Coligação vai destruindo.
Tendo a economia russa sofrido muito com as sanções europeias por ocasião do conflito ucraniano, Moscovo não poderá prosseguir indefinidamente a sua campanha de bombardeamentos. Assim, tendo que parar a 6 de Janeiro (data do Natal ortodoxo), ela prosseguirá, no entanto, depois até ao meio de Março.
Os dirigentes franceses que já só pensam em termos de interesses persuadem-se que os Russos vieram para a Síria apenas para combater os jiadistas e estender a sua zona de influência. Eles interpretam os símbolos religiosos que Moscovo maneja como artifícios de comunicação interna. Jamais lhe vêm à ideia que outras coisas poderão mover uma grande nação como a Rússia.
A luta da Síria e da Rússia pela civilização é celebrada a 5 e 6 de Maio (comemorações do Exército Sírio e da vitória aliada contra o nazismo), aquando de concertos na Palmira libertada. Os Presidentes Vladimir Putin e Bashar Al-Assad discursam, um e o outro, num écran gigante enquanto orquestras sinfónicas tocam no meio das milenares ruínas. A «cidade do deserto» encarna a antiga resistência dos povos do Levante ao imperialismo romano. É também um dos lugares mais estratégicos da guerra: ela tinha sido ocupada pelo Daesh(EI).
Antes de retirar os seus bombardeiros, Moscovo assina um acordo com o Departamento de Estado americano. Os Norte-americanos juram estar de boa fé e afirmam não saber o que Jeffrey Feltman empreende a partir da ONU com o Daesh(EI). John Kerry e Serguei Lavrov decidem, pois, retomar em mãos as negociações de Genebra. Acordam impor um cessar-fogo às duas partes —mas não aos«terroristas»—, encaminhar ajuda humanitária para as populações sitiadas e formar eles mesmos o próximo governo sírio; belas intenções que não duram muito.
Macron o Indeciso
Em Maio de 2017, os Franceses, escaldados pelos mandatos catastróficos de Nicolas Sarkozy e de François Hollande, escolheram um desconhecido, Emmanuel Macron como Presidente. Alto-Funcionário do Tesouro, tendo feito um interregno elogiado no banco Rothschild, é um « mandarim », sem partido político, mas que representa os 300 membros da Inspecção geral das Finanças. A esse título, ele ignora tudo sobre a política internacional. Apoia-se pois em certos conselheiros, dos quais alguns exibem, sem vergonha, no seu gabinete do Eliseu a certidão de aptidão que lhes outorgou uma autoridade estrangeira, o Departamento de Estado dos EUA.
Saído do nada —ele havia-se demitido das suas funções no Eliseu e pretendia tornar-se professor na London School of Economics e na Universidade de Berlim—, foi subitamente nomeado Ministro da Economia e beneficia de fortes apoios para a sua campanha eleitoral. Ele parece ter beneficiado sobretudo da ajuda dos seus amigos Henry e Marie-Josée Kravis, acionistas principais de um dos maiores fundos de investimento do mundo, o KKR [4].
O antigo patrão da CIA, o General David Petraeus, coloca-se ao serviço do ultra-bilionário Henry Kravis.
O Presidente Macron deseja manter boas relações com todos. Ele inicia portanto o seu mandato com algumas palavras favoráveis ao restabelecimento das relações diplomáticas com Damasco e envia emissários à Síria. Para sua grande surpresa, eles não são recebidos pelo Presidente al-Assad. Este manda dizer-lhes que não aceitaria uma embaixada francesa até que Paris tivesse cessado o seu apoio militar aos jiadistas. Emmanuel Macron descobre então a extensão do envolvimento secreto da França nesta guerra.
- Formado em Washington, o Embaixador Michel Duclos é uma das principais conexões do belicismo ocidental na diplomacia francesa.
Por fim, depois de ter feito «ao mesmo tempo» comentários pró e anti-Sírios, ele faz uma terceira escolha. A conselho de Michel Duclos, deixa o arquivo sírio ao seu Ministro dos Negócios Estrangeiros (Relações Exteriores-br), Jean-Yves Le Drian. Este, na altura em que fora Ministro da Defesa de François Hollande, pressionou mais do que ninguém para a destruição do Estado sírio. Michel Duclos é um neo-conservador, conselheiro especial da Fundação Montaigne e do Atlantic Council. Foi embaixador em Damasco onde se ligou de amizades com grandes burgueses sunitas secretamente membros da Confraria dos Irmãos Muçulmanos.
Ele só irá voltar a interessar-se pela Síria acidentalmente, via dossiê libanês. Sucessivamente, manifestações populares contra a classe política (Outubro de 2019), uma crise bancária (Novembro de 2019), uma crise sanitária (Julho de 2020), uma explosão no porto de Beirute (Agosto de 2020) provocaram um súbito desaparecimento das classes médias e uma queda geral do nível de vida da ordem dos 200% [5].
Explosão de uma nova arma na Síria. Ela provoca um cogumelo de tipo atómico táctico.
Dupla explosão no porto de Beirute. Uma dentre elas provoca um cogumelo atómico táctico.
O Presidente Macron visita Beirute duas vezes após a explosão no porto. Na primeira vez é recebido com uma petição, orquestrada nos bastidores pela DGSE, pedindo o restabelecimento do «mandato» francês sobre o país. Na segunda vez, ele celebra o centenário da proclamação do Grande Líbano pelo General Henri Gouraud, líder do Partido Colonial Francês [6].
Solicitado pelo Presidente Michel Aoun a revelar as fotos de satélite sobre a explosão no porto, ele jamais responderá. O desastre correspondera ao sobrevoo de Beirute por dois caças-bombardeiros não identificados. A explosão provocou uma «nuvem em cogumelo atómico». Três embaixadas retiraram de imediato os filtros de ventilação dos veículos presentes no local e mandaram-nos analisar nos seus respectivos países. Hoje em dia, elas estão convencidas, tal como o Exército libanês, que a explosão é imputável a um míssil atómico táctico. Ora, a investigação judicial persiste em seguir pistas falsas, exactamente como após o assassinato de Rafic Hariri.
Em resumo, as pretensões francesas de recolonizar o Líbano na ausência da Síria, chocam num primeiro momento com o plano dos EUA em dividir o Líbano [7] e de Israel [8], depois com o acordo estabelecido entre os Presidentes Biden e Putin [9].
Balanço provisório
É um erro falar de Política francesa face às «Primaveras Árabes». Por um lado porque Paris não compreendeu quem manobrava os acontecimentos, nem porque o fazia, e em seguida porque os sucessivos governos franceses não procuraram em nenhum momento defender os interesses do seu país. No máximo, o que se pode constatar é o comportamento errático da França, em busca de boas oportunidades para que os seus dirigentes consigam dinheiro fácil.
Sobre este assunto, como além disso em muitos outros, a distinção esquerda / direita não tem sentido. Nicolas Sarkozy, Alain Juppé, François Hollande e Laurent Fabius conduziram o mesmo tipo de « pessoalização » da política nacional, mesmo que Sarkozy se tenha mostrado mais flexível e tenha cessado de atacar a Síria quando percebeu que a sua vitória era impossível. Ao contrário o que existe, no seio de quase todas as formações políticas, é uma clivagem colonialista/anti-imperialista e alguns homens que tentaram salvar a honra do país.
O fundo sobre as contradições da Política de estrangeiros francesa foi expresso pelo antigo Presidente Valéry Giscard d’Estaing, no Le Parisien, de 27 de Setembro de 2015 [10]. Dando o seu apoio ao seu sucessor de esquerda, este homem de direita declara : : « Eu interrogo-me sobre a possibilidade de criar um mandato da ONU para a Síria, durante um período de cinco anos »; uma fórmula elegante para reintroduzir o Mandato exercido pela França, com o aval da Sociedade das Nações de 1920 a 1946. O Mandato era uma expressão politicamente correta para designar a colonização da Síria, tal como fora planeada durante a Primeira Guerra mundial por Sir Mark Sykes, François Georges-Picot e Sergey Sazonov, representando respectivamente o Reino Unido, a França e o Império Czarista (os «Acordos Sykes-Picot»). Ora, e isso não é um acaso, Valéry Giscard d’Estaing é um primo em segundo grau de François Georges-Picot.
Perante um Tribunal, se viesse a existir um de Nuremberga para eles, os membros da administração Sarkozy deveriam responder pela pessoalização da política nacional e pelos 160.000 mortos da operação na Líbia (número estabelecido pela Cruz Vermelha Internacional). É claro que partilhariam essa responsabilidade com outros, principalmente Norte-americanos, Britânicos, Cataris e Turcos. Eles beneficiariam, pelo contrário, de um arquivamento judicial pelos seus crimes na Síria, vista a sua reviravolta, em Fevereiro de 2012, e o seu acordo de paz com a República Árabe Síria. A administração Hollande e seus cúmplices deveriam responder, esses, pelos 300. 000 mortos sírios (número estabelecido pelo Secretário-Geral da ONU) e de 200 a 300. 000 jihadistas, que eles patrocinaram, e foram igualmente mortos (estimativa dada pelos Exército Árabe Sírio e Iraquiano).
A França e o seus aliados deverão ser responsabilizados pelos acontecimentos que desencadearam. A questão de determinar se o Povo francês estava ou não consciente dos crimes cometidos em seu nome é irrelevante: em democracia, todo cidadão que não diz uma palavra partilha a responsabilidade exercida pelos dirigentes que elegeu.
Os Franceses e os seus aliados deveriam reembolsar a destruição de dois terços da Síria (pelo mínimo de 300 mil milhões de dólares, segundo o Banco Mundial), incluindo também quase todas as infra-estruturas petrolíferas e de gaz, tal como uma grande parte dos monumentos antigos.
(Continua …)
Alva
[1] “O que é o que assustou o navio de guerra americano no Mar Negro?”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 21 de Setembro de 2014. «Rusia interfiere los sistemas de mando del portaviones USS Ronald Reagan y de la VII Flota», Red Voltaire , 2 de noviembre de 2015.
[2] “Top NATO general : Russians starting to build air defense bubble over Syria”, Thomas Gibbons-Neff, The Washington Post, September 29, 2015.
[3] «Rusia solicita a Líbano y Chipre limitación parcial de sus espacios aéreos», Red Voltaire , 21 de noviembre de 2015.
[4] “De quem é Emanuel Macron devedor ?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 12 de Dezembro de 2018.
[5] “Quem destruiu o Líbano e porquê ?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 29 de Dezembro de 2020.
[6] “O péssimo teatro do Presidente Macron no Líbano”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 30 de Setembro de 2020.
[7] “Rumo a uma partição do Líbano?”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 15 de Outubro de 2020.
[8] “Acaba realmente a «guerra civil» de começar em Israel ?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 18 de Maio de 2021.
[9] “Rumo a um Líbano neutro sob tutela EUA-Rússia e administração síria”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 7 de Julho de 2021.
[10] « Il faut envoyer l’ONU pour pacifier la Syrie », entretien avec Henri Vernet et Jannick Alimi, Le Parisien, 27 septembre 2015.