16/4/2019, Marko Marjanović (anima o site Checkpoint Asia), para o The Saker blog
Quando insistia para que os EUA iniciassem guerra aérea contra a Síria em 2012, Hillary Clinton argumentou em seus e-mails que a Rússia “não se intrometerá”, assim como “nada fez além de reclamar”, quando EUA e aliados bombardearam a Iugoslávia em 1999:
O segundo passo é desenvolver apoio internacional para uma operação aérea da coalizão. Rússia jamais apoiará essa missão; portanto não faz sentido operar no Conselho de Segurança da ONU.
Alguns dizem que o envolvimento dos EUA cria o risco de guerra mais ampla com a Rússia. Mas o exemplo do Kosovo mostra coisa diferente. Naquele caso, a Rússia tinha laços étnicos e políticos genuínos com os sérvios, laços que não existem entre Rússia e Síria; e mesmo naquele caso, a Rússia nada fez além de reclamar.
Funcionários russos já reconheceram que não se intrometerão, se houver intervenção.
O que Hillary não percebeu é que Putin não é Yeltsin, que Putin voltou à presidência depois que uma abstenção de Medvedev na ONU permitiu ao Império iniciar guerra aérea contra a Líbia, não Yeltsin, e tampouco percebeu que mesmo Yeltsin fez um pouco mais que só “reclamar” em 1999.
Quando a guerra OTAN-Iugoslávia aproximava-se do fim, Yeltsin ordenou que os 300 russos da força de paz na Bósnia avançassem sobre o aeroporto de Priština no Kosovo e o ocupassem, antes que tropas da OTAN chegassem pelo sul, o que foi feito. Wesley Clark deu a ordem ao general britânico Mike Jackson, e a única razão pela qual não nos lembramos de 1999 como o maior confronto direto entre russos e exércitos da OTAN é que Jackson recusou-se a cumprir a ordem de atacar. Iéltsin então, dando-se conta de que seria quase impossível a entrada, por ar, de reforços de países pró-OTAN, resolveu entregar o aeroporto.
Assim sendo, sim, verdade é que a Rússia fez bem mais que “só reclamar” em 1999. A Rússia tentou um movimento mal concebido e mal executado, de último momento, mas sinceramente empenhado, para garantir uma área ocupada pelos russos no Kosovo, para defender os sérvios. Não deu certo, mas tentar é muito diferente de nem tentar.
Como sabemos, na Síria a Rússia também fez muito mais que só reclamar. Ao contrário do que Clinton esperava três anos antes, a Rússia, em 2015, entrou em guerra, na Síria.
Minha opinião é que o fator que possibilitou a intervenção russa na Síria foi a intervenção dos EUA, iniciada um ano antes, na Síria, contra o ISIS. Desde 2011 a CIA apoiava a rebelião islamista contra o governo sírio. Mas depois que ISIS e rebeldes separaram-se no final de 2013, e da rápida expansão do ISIS para o Iraque ocidental no início de 2014, o Pentágono dos EUA entrou na guerra contra o ISIS, primeiro no Iraque e uns poucos meses depois, em menor extensão, também na Síria.
Com isso os russos puderam intervir, eles também, claramente, aos olhos do mundo e também aos norte-americanos, sem se mostrar em oposição direta aos objetivos dos EUA –, quando de fato não estavam nessa oposição. Militarmente, os russos, Moscou poderia demonstrar, lá estavam para fazer o que os próprios militares norte-americanos faziam, a saber, combater contra o ISIS, embora os russos fossem mais ativos e também combatessem contra al-Qaeda e seus aliados. Em vez de a intervenção russa opor-se diretamente à intervenção norte-americana, os russos – porque de fato havia duas intervenções norte-americanas separadas operando em projetos cruzados –, os russos se posicionaram num ângulo de 90 graus em relação ao que os EUA faziam lá.
De fato, acho que Moscou foi à Síria tanto para frustrar os planos norte-americanos de ‘mudar o regime’, como para forçar os EUA a engajar-se e lidar com os russos, e reconhecer a presença russa como presença parceira, não importa o quanto houvesse de ressentimento nessa ‘parceria’, em certo sentido. Essa estratégia pareceu promissora inicialmente, quando a Rússia gerou alguma boa-vontade internacional, ao combater contra o ISIS quando o grupo atacou Paris, e depois novamente quando Lavrov e Kerry em setembro de 2016 conseguiram chegar a um acordo para expandirem, conjuntamente, a guerra contra al-Qaeda, mas acordo que foi logo sabotado por atores dentro do Pentágono, especificamente pela Força Aérea.
Em retrospecto, essa estratégia de forçar Washington a engajar-se em alguma ‘parceria’ jamais teria qualquer chance de funcionar, mas valia uma tentativa naquele momento, com a inteligência então disponível.
De um modo ou de outro, fato é que a intervenção russa caminhou diretamente contra os esforços da CIA (e em menor extensão, também contra os esforços do Pentágono) que contava com armar os rebeldes. Também caminhou contra as esperanças e sonhos dos liberais dos mísseis cruzadores ocidentais, que se autoenganavam com o mesmo empenho de sempre, na crença de que os rebeldes jihadi valiam o que custavam e representariam alguma melhoria em relação ao governo secular.
Também é fato que os russos venceram essa disputa e que a ‘mudança de regime’ comandada por jihadistas foi contida e derrotada. Simultaneamente, o ISIS foi eliminado, de modo que hoje Rússia e Pentágono já não têm objetivo militar partilhado, o que torna as duas forças muito mais claramente opostas uma à outra do que no começo.
A diferença entre as tentativas dos russos para se fazerem presentes na Iugoslávia em 1999 e na Síria em 2015 nunca esteve na ousadia. Em tese, o movimento de tentar e bloquear a entrada da OTAN num aeroporto e no norte do Kosovo foi muito mais ousado do que se pôr a bater no ISIS mais de 12 meses depois de os EUA já estarem fazendo precisamente isso.
A diferença entre o sucesso na Síria e o fracasso no Kosovo foi o timing. Por mais que Hillary insista em que os russos teriam “laços étnicos e políticos genuínos com os sérvios”, simplesmente não é verdade. Belgrado e Moscou não foram aliados durante a Guerra Fria e não foram aliados nos anos 1990s, quando a Iugoslávia viveu uma década como pária, e Yeltsin, como fantoche de Washington.
Qualquer tentativa de último instante em 1999 para frustrar planos da OTAN e apoiar com firmeza os sérvios fracassaria, porque não havia qualquer plano, nem qualquer força posicionada com antecedência. Chegada por ar, sobrevoando países pro-OTAN nunca funcionaria. Para que o movimento de Moscou tivesse alguma chance, qualquer chance, teria de haver navios para transporte de tropas já ancorados no Adriático. Mas isso teria exigido exatamente a capacidade de se antecipar e a independência que não havia no governo de Yeltsin nos anos 1990s.
Bem diferente disso, na Síria havia menos urgência, mas também muito importante e diferente de inexistentes laços entre russos e iugoslavos, entre russos e sírios, sim, havia e há laços reais. Esses dois fatores explicam que os russos se tenham envolvido desde o início, quando ainda havia muito tempo para virar o jogo.
Eis porque acho que a recente pequena missão militar russa à Venezuela é tão importante. Na Iugoslávia, a Rússia só entrou depois que a OTAN já entrara e perdeu, porque era tarde demais. Na Síria, a Rússia também deixou que o Império entrasse primeiro, mas mesmo assim venceu, porque as circunstâncias eram outras e favoreceram os russos. Mas tudo sugere que, na Venezuela, a Rússia não tenha qualquer intenção de permitir que os EUA entrem antes dela. Dessa vez, a primeira força militar no teatro é russa.
Os russos dizem que seria visita já regularmente agendada sob acordos de indústria e defesa vigentes há dez anos, mas a mídia russa espertamente logo viu que, fosse esse o caso, o mais natural seria mandar para lá técnicos civis e empresas da Defesa, não soldados das Forças Terrestres e, temporariamente, até o seu vice-comandante. O mais provável é que tenha sido enviado pessoal militar porque se trata de missão militar.
Estou certo de que a Rússia não estenderá à Venezuela qualquer tipo de proteção de guerra, (como foi feito para Cuba, nos anos 1960s), nem suponho que venham a ser enviados sejam quantos forem soldados para combater e defender os venezuelanos contra qualquer possível invasão pelos EUA, dentre outras razões porque seria procedimento vão e contraproducente.
Mas acho que é bastante possível que Moscou tenha decidido frustrar um ataque militar direto pelos EUA, ou, em outras palavras, ajudar a detê-lo, apoiando os venezuelanos do mesmo modo como a URSS apoiou vários militares africanos durante a Guerra Fria. Vale dizer: com número mínimo possível de especialistas altamente treinados para tarefas não de combate, de multiplicar forças chaves.
Os próprios norte-americanos já trabalham com a hipótese de as tropas russas na Venezuela incluírem ciberespecialistas e engenheiros e outros técnicos especialistas em reparos nos S-300. Outra possibilidade é que tenham sido enviados para a Venezuela especialistas em guerra eletrônica e inteligência de sinais.
Mas mais importante que o papel exato que os russos planejem desempenhar na Venezuela, é o fato de que – repito – os russos lá chegaram antes dos norte-americanos. Não significa que lá permanecerão para sempre. Se as coisas se acalmarem, ou se os russos sentirem que faz sentido se retirarem, ok, mas o que se deve extrair disso é que Moscou parece ter aprendido uma lição muito importante da Iugoslávia e Síria: se você deixar os EUA chegarem primeiro ao cenário, depois não reclame.
Dessa vez, quando estiverem para decidir a favor de guerra aérea, os norte-americanos ou gente como Mike Pompeo não terão o benefício de que gozou o predecessor de Pompeo, em 2012. Já saberão que os russos provavelmente estarão lá, numa ou noutra função. E, claro, com uma ou duas surpresas guardadas na manga.
Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga