Helás, pobre Bernard Lewis! Um sujeito infinitamente engraçado

Share Button

Amazon.com: Islam and the West: 9780195090611: Lewis, Bernard: Books

Hamid Habash[1]

 

Sobre o falecido Bernard Lewis e sua capacidade extraordinária de entender tudo errado

 

Eis aqui o crânio; crânio que esteve enterrado por trinta e três anos” – o coveiro falou para Hamlet. O crânio era de Yorick, o rei brincalhão. E Hamlet disse em seu famoso verso: “Helás, pobre Yorick! Eu o conheci, Horácio. Um sujeito infinitamente engraçado, com uma tremenda imaginação.”

Eu imediatamente me lembrei do crânio de Yorick e Hamlet quando soube da morte de Bernard Lewis. Então, me veio à mente os versos de Omar Khayyam, em sua genialidade de nos alertar sobre a mortalidade humana:

“Ao me lembrar que parando ao longo do caminho

Para assistir o oleiro batendo no barro molhado

E com sua língua travada ele murmurava – gentilmente, irmão, gentilmente, reze!”

Talvez, não seja apropriado lembrar os horrores de um homem horrível por ocasião de sua morte, mas Bernard Lewis não era um patife qualquer. Ele foi instrumental em causar enorme sofrimento e derramamento de sangue nesse mundo. Lewis foi um famigerado islamofóbico que passou sua longa vida estudando o Islã com o objetivo de demonizar os muçulmanos e mobilizar o aparato militar contra o mundo islâmico para proteger aquilo que ele chamava “Ocidente”.

Imagine, “que tipo de pessoa passa a vida estudando gente que ele despreza?” É um projeto um tanto bizarro, mas acredite Bernard Lewis fez exatamente isso. Ele foi o principal ideólogo da política de ódio contra o Islã após o 11 de setembro.  A amizade do Dr. Lewis e a afinidade ideológica com o “falcão” da Guerra Fria e apoiador de Israel, Senador Henry M. “Scoop” Jackson, (Partido Democrata), assim me foi contado:

Abriu portas importantes em Washington D.C., o que eventualmente fez o Dr. Lewis pertencer ao grupo seleto de planejadores do Pentágono e da Casa Branca antes da invasão do Iraque em 2003.

 

A invasão e destruição do Iraque se tornou um dos maiores legados de Bernard Lewis. Porém, sua ligação com poderes responsáveis por morte e destruição foi muito mais longe. O Iraque e o Afeganistão ficaram em ruínas, milhões de árabes e muçulmanos foram assassinados ou marcados para sempre sujeitos a indignidade da ocupação militar e a vida em campos de refugiados.

E não foi pequena sua contribuição na difamação dos muçulmanos nos artigos e livros de Lewis que formaram gerações de agentes imperiais. Para os últimos, foi Lewis quem definiu o que era Islã e os muçulmanos. Quando Donald Trump disse, “O Islã nos odeia” era Bernard Lewis falando. Quando Michael Flynn, o Assessor de Segurança Nacional de Trump declarou, “o Islã é como um câncer” também era Bernard Lewis falando.

Eu era ainda um aluno de pós-graduação na University of Pennsylvania quando encontrei Lewis pela primeira vez. Notei que sempre havia um distanciamento entre ele e a comunidade acadêmica. Ele se sentia mais à vontade com chefes de estado, oficiais de Inteligência, militares, colonizadores na Palestina e vice-reis imperiais em terras conquistada aos muçulmanos. Ele tinha e se deleitava com poder. Nós detestávamos o poder.

Ele era coberto de louvores pelos mais poderosos sionistas e islamofóbicos nos EUA e Israel. Nós estávamos do lado oposto da cerca, com os palestinos, de frente com os franco-atiradores israelenses a quem ele apoiava, empoderava, encorajava e os armava com uma potente ideologia de ódio a árabes e muçulmanos.

COMO CERTAS LEMBRANÇAS SÃO DETESTÁVEIS

Com a morte de Bernard Lewis, a longa disputa entre ele e o saudoso Edward Said chegou ao fim. Na época do meu estagio pós-doutoral em Harvard, eu presenciei em Boston, em 22/11/1986, o debate épico entre os dois na convenção da Middle East Association. Muito antes, como tantos outros jovens especialistas, eu acompanhei os debates entre os dois nas páginas do New York Review of Books. Eu estava e permaneci, inequivocamente, do lado de Said. Mas na ocasião, como hoje, meu posicionamento não era meramente político, antes era e é de natureza moral e intelectual.

A diferença entre Lewis e Said era a diferença entre a política de poder pelo lucro e a coragem intelectual de se revoltar. Lewis foi um historiador do poder, no poder e para o poder que governa todos nós e a quem ele serviu com prazer e com lucro. Quanto mais poderosa a audácia imperial mais Lewis o servia. Já Said estava do outro lado da trincheira, na tradição da luta anticolonial da Ásia, África e América Latina na qual ele foi introduzido por meio da luta pela Palestina.

Ao olhar para Lewis se via um “Lawrence da Arábia” encarnado: um oficial britânico colonial com parco comando da língua e cultura nativas a serviço da mais cruel empreitada colonial do século. Ao olhar para Said o víamos em linha direta com os maiores pensadores revolucionários de todos os tempos ao lado de Aime Cesaire, Frantz Fanon, V. Y. Mudimbe, Enrique Dussel e, naturalmente, ao lado de Antonio Gramsci e Theodore Adorno. Said inspirou uma geração inteira de pensadores críticos em todos os continentes do planeta. Lewis, por sua vez, inspirou oportunistas e carreiristas, que como ele, queriam estar perto e amavam o poder.

Em janeiro de 2003, poucos meses antes da morte de Said, eu e ele fomos convidados para a Conferência Dialogue of Civilization, em Rabat, Marrocos. Ele não pode ir, mas ligou da Espanha insistindo que eu fosse. Eu fui e na minha chegada soube da presença de Lewis. Durante toda a Conferência enquanto eu me sentei ao lado do falecido filósofo egípcio Nasr Hamid Abu Zayd e o teórico literário Ferial Ghazoul para discutir hermenêutica, Lewis era escoltado pelo jovem Noah Feldman, conselheiro jurídico de Paul Bremer, o “administrador provisório da coalizão” no Iraque após a invasão norte-americana. Instantaneamente, percebi como Lewis estava passando o bastão imperial para a próxima geração.

 

“O MAL QUE O HOMEM FAZ PERMANECE APÓS SUA MORTE” (Shakespeare)

 

As opiniões sobre Bernard Lewis, que apareceram nos vários obituários e reflexões post-mortem, atestam que ele era odiado pela esquerda e adorado pela direita sionista. Entre estes dois polos encontram-se os “bons-moços” tentando parecer inteligentes e imparciais em textos recheados de nuances. Sim, ele foi um grande especialista no começo de sua trajetória, mas ao longo do tempo a qualidade de sua pesquisa decaiu e se tornou exageradamente política. Porém, os que apenas enxergam Lewis amado por alguns e odiado por outros ignoram um aspecto bem mais grave.

Além da política e moral repugnantes, Lewis deixa como legado seu modo de pensar e escrever, sua maneira de produzir conhecimento infestado de racialismo e colonialismo subserviente ao poder que o lia e o enriqueceu. Isto completamente na contramão da mudança radical na produção de conhecimento pós-colonial.

Lewis não foi um especialista comprometido com a objetividade histórica. Ao contrário, ele não deixou nem um só livro em que não escolhesse falaciosamente, a dedo, fatos e evidencias que demonizassem os muçulmanos denigrisse e desprezasse sua civilização e os subjugasse – normativamente, moralmente e psicologicamente – ao domínio colonial dos seus patrões.

Em um de seus últimos livros, em 2002, What Went Wrong? The Clash Between Islam and Modernity in the Middle East (O Que Deu Errado No Oriente Médio?) não é um trabalho acadêmico. É um manual de estilo, um panfleto doutrinário para instruir agentes do aparato de segurança, militares e serviços de Inteligência nos EUA e Europa explicando, didaticamente, porque eles devem controlar o Mundo islâmico.

Lewis, cego por seu ódio e inspirado pelos clichês mais racistas em estoque na Academia sempre esteve do lado errado da História. Sua reação aos movimentos árabes em 2011 constitui um exemplo perfeito de quem ele era e como pensava. Ele escreveu no início da Primavera Árabe:

Outra coisa é o aspecto sexual da questão. É preciso lembrar que não existe sexo casual, no estilo ocidental, no Mundo islâmico.  Se um jovem quiser sexo ele tem duas alternativas: casamento ou bordel. Portanto, temos um grande número de jovens criados sem dinheiro, nem para um bordel tampouco para pagar um dote. Consequentemente, isto os torna homens-bomba em potencial atraídos pela ideia das virgens no Paraiso, as únicas disponíveis. Por outro lado, isto também os leva a um estado de absoluta frustração.

A análise de Lewis é simplesmente uma obscenidade em preto e branco e representa sua falência política, moral e intelectual, em grande estilo.

Já seu livro, nos idos de 1967, The Assassins: A Radical Sect in Islam (Os Assassinos: uma seita radical no Islã) que foi ignorado como bobagens desprovidas de sentido por especialistas como Farhad Daftary, marcava definitivamente sua maneira de representar os muçulmanos como assassinos congênitos.

Seu forte, porém, foi construir uma divisão cosmológica entre o “Islã e o Ocidente”, entre o mundo islâmico e o mundo moderno. Assunto que dominou sua produção, em um formato mais condescendente, em dois de seus livros: The Muslim Discovery of Europe (1982) e Islam and the West (1993).

Bernard Lewis não foi um especialista em Islã. Ele foi uma funcionário colonial britânico escrevendo para seus colegas como governar melhor o Mundo islâmico. O livro Handbook of Diplomatic and Political Arabic (1947), uma de suas primeira obras, já antevia sua carreira de escriba colonial a serviço dos britânicos e depois dos americanos.

 

É TEMPO DOS EUA SE DESCULPAR PELA INVASÃO DO IRAQUE?

 

Hoje quando refletimos sobre o legado de Bernard Lewis refletimos sobre a indústria islamofóbica que colocou Donald Trump e sua gangue de bilionários na Casa Branca. Hoje quando pensamos em Bernard Lewis pensamos em suas crias políticas, como John Bolton, Assessor de Segurança Nacional e o   indivíduo mais degenerado e agressivo ligado a Donald Trump. Hoje quando pensamos em Bernard Lewis pensamos no Secretário de Estado, Mike Pompeo, famigerado fanático com ódio patológico aos muçulmanos. Hoje quando pensamos em Bernard Lewis pensamos em Gina Haspel, recentemente nomeada diretora da CIA, a mulher que ordenou a tortura de muçulmanos.

Ninguém foi mais instrumental que Lewis em fabricar uma ilusão, que fundamentalmente e irreconciliavelmente, separam o Islã e o Ocidente. Uma realização singular mais tarde aproveitada por Samuel Huntington para produzir seu The Clash of Civilizations.

Para desqualificá-lo, a despeito de qualquer outra evidencia, bastaria observar os que louvaram após sua morte. Benjamin Netanyahu, naturalmente, outra “autoridade” mundialmente conhecida sobre Islã e Oriente Médio declarou: “Bernard Lewis foi um dos grandes especialistas, em nosso tempo, sobre Islã e o Oriente Médio. Nós seremos eternamente gratos por sua robusta defesa de Israel.

Mike Pompeo, Secretário de Estado norte-americano no governo Trump afirmou:

Um verdadeiro especialista e um grande homem. Eu devo meu conhecimento em Oriente Médio, em grande parte, ao seu trabalho[…] Ele foi também um homem que acreditava, como eu, que os norte-americanos devem ser mais confiantes na grandeza de seu país, nada menos. Obrigado, Mr. Lewis, por sua vida e seus serviços.

 

 

Para fechar esta trinca “ilustre” Dick Cheney, ex-vice-presidente no governo Trump, que nos presenteou com o método de tortura do afogamento simulado, os terrores da prisão de Abu Ghraib e quem, naturalmente, também é uma “autoridade” em história e doutrina islâmica: “Vocês não podem encontrar uma autoridade maior em história do Oriente Médio.”

Quando se coloca Netanyahu, Pompeo e Cheney juntos em seu amor e admiração por Lewis pode-se avaliar que tipo de companhia ele mantinha, o ódio que ele fumegava e a destruição que ele procurava infligir até sua morte sobre as pessoas que eram seus objetos de seu “estudo.”

 

MORTO ANTES DE MORRER

 

Bernard Lewis estava morto antes de encontrar seu Criador. O rico e diverso mundo do pensamento crítico – na Ásia, África, América Latina, assim como na Europa e nos EUA – ao qual Edward Said foi parte integral e definitiva- já havia deixado Lewis e seu livros, há muito, na poeira da história do Orientalismo. “A verbosidade de Lewis”, sucintamente observada por Said, há décadas, “dificilmente consegue esconder seus alicerces ideológicos e sua capacidade extraordinária de entender tudo errado.”

Lewis é frequentemente comparado a Said como se fossem iguais. Não eram. Eles eram radicalmente opostos em todos os sentidos. Said foi um gigante do pensamento crítico e revolucionou o campo da literatura e estudos pós-coloniais. Lewis era um burocrata tendencioso, agente de Inteligência do mesmo naipe de Francis Fukuyama e Samuel Huntington, competindo pelo mesmo tipo de ouvintes poderosos e os ensinando, persuasivamente, como odiar os muçulmanos.

Said municiou uma geração de pensadores críticos com autoridade moral. Lewis ensinou estrategistas militares como eficazmente dominar e porque dominar árabes e muçulmanos. O estilo de conhecimento ideológico de orientalistas como Lewis não estava a serviço da justiça e do entendimento. Foi concebido para humilhar e denegrir seres humanos dominar seus mundos e culturas assassinando seu amor-próprio e lhes ensinado que a única coisa digna nesse mundo era ser um colonialista europeu.

Minha crítica não se baseia somente no Orientalismo, livro magistral de Said. O que Lewis escrevia, Michel Foucault, muito antes de Said, chamava de poder/saber: o conhecimento quer serve o poder. E foi a trabalhos como o de Lewis que o filosofo argentino, Enrique Dussel, se referiu no livro Philosophy of Liberation:

A Ontologia não veio do nada. Ela surgiu da experiência do domínio sobre outras pessoas, da opressão cultural sobre outros mundos. Antes do ego cogito existia o ego conquiro. “Eu conquisto” é o fundamento prático do “Eu penso”.

 

Ambos, Said e Lewis se foram. Mas Lewis deixou um legado racista da criação de um “Ocidente” fictício à custa de um “Resto”, enquanto Said sintetizou o melhor e o mais nobre de cada uma dessas categorias em nome de um futuro melhor para todos.

 

[1] Professor of Iranian Studies and Comparative Literature at Columbia University.

Tradução-livre Tufy Kairuz, Ph.D. História, York University.

Share Button

Deixar um comentário

  

  

  

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.