Gaza: entrevista com Nora Fernandez Espino

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Oriente Mídia entrevistou a ativista humanitária Nora Fernandez Espino, argentina, que há mais de vinte anos divide sua vida entre Uruguai, Argentina, Europa e Oriente Médio para prestar solidariedade ao povo palestino. Nora participou das duas flotilhas humanitárias que chamaram a atenção do mundo para o bloqueio a Gaza. Desde 2009 esteve seis vezes em Gaza por longos periodos, retornando de sua última viagem em 6 de junho de 2009.

OM: Nora, antes que nada queremos agradecer pela gentileza de responder esta entrevista. Gostaríamos que faça uma pequena apresentação para os leitores brasileiros que podem não estar familiarizados com o seu ativismo.

Nora  Fernandez Espino:  Meu nome é  Nora  Fernandez Espino,  e sou ativista de Direitos Humanos, Brigadista  Humanitária Internacional  na  Faixa de Gaza, pertencente ao grupo de ativistas humanitários Road to Hope UK, tendo trabalhado também com IHH de Turquia e Unadikum Brigadas.

OM: Sabemos que a economia de Gaza está em colapso e que os túneis tem sido uma das poucas formas dos palestinos conseguir manter contato com o exterior. Como ficará a situação se estes túneis forem totalmente interditados? A técnica de perfurar túneis vem sendo desenvolvida desde quando? Na guerra de 2008/9 eles já tinham estes túneis? Que tipo de mercadoria é transportada a Gaza pelos túneis?

Nora  Fernandez Espino: Desde que foi imposto o bloqueio a Gaza, já faz quase 8 anos atrás, como parte do castigo coletivo aplicado por Israel contra a população de Gaza após ter elegido como governo em Gaza ao Movimento Islâmico Hamas nas eleições do ano de 2006, a população viu dramaticamente cerceado o ingresso de mercadorias para consumo, assim como também teve que suportar a proibição de uma longa lista de elementos indispensáveis para o desenvolvimento de sua vida diária, a proibição inclui ainda hoje, entre outros itens: materiais de construção, artigos escolares, uma longa lista de medicamentos, álcool de uso hospitalar e muitas coisas mais, assim como é Israel quem decide a quantidade de gasolina que poderia entrar na Faixa de Gaza e os alimentos, que dependeram de um cálculo baseado nas calorias que Israel considerava necessárias para o consumo diário dos habitantes, o que refletia na quantidade de carregamentos que permitia entrar em Gaza, os quais eram insuficientes e arbitrários. Ante essa situação se implementou uma maneira alternativa de ingressar tanto os itens que Israel proibia como também garantir um maior volume de mercadorias que permitissem abastecer as necessidades reais da população. Foi assim que os túneis começaram a ser construídos desde o território de Gaza para o território egípcio, com a finalidade de ingressar, através deles, tudo aquilo que o bloqueio impedia. Pelos túneis entrava todo tipo de mercadoria, incluindo gasolina, botijões de gás, geradores de eletricidade e até carros. Depois que o governo de Mursi foi derrocado, 95% dos túneis foram destruídos, pelo que os estoques de todas as mercadorias mencionadas sofreram uma redução dramática. Alguns dos túneis ainda estão ativos mas a presença de tropas egípcias em todo o Sinai torna quase impossível que seja possível realizar operações por esses túneis.

OM: Em relação ao Hamas, como enxerga o apoio da população ao movimento neste momento? Considera que a população de Gaza concorda com o disparo de foguetes ou acha que é uma política que acaba se voltando contra eles? Quem é a  Resistência Palestina na Faixa de Gaza, quantos grupos são, estão todos submetidos ao grupo do Hamas?

Nora  Fernandez Espino: Desde o momento em que o Hamas começou sua gestão de governo, teve que lidar com um grande número de conflitos, tanto com a ANP como conflitos dentro da Faixa de Gaza, alguns por causa de dissidência política e outros por causa da insatisfação da população com a própria gestão de governo, a qual, devido às circunstâncias, no tem sido nada fácil. É possível afirmar que durante o percurso do seu governo, o Movimento Islâmico Hamas perdeu muitos simpatizantes e apoio popular apenas pela sua gestão de governo. Em relação a sua função como Resistência Palestina, ao igual que os outros grupos da Resistência, no momento de enfrentar o inimigo israelense, os palestinos de Gaza deixam de lado suas divergências e se alinham em apoio à Resistência. Em relação ao lançamentos de foguetes contra os territórios ocupados ilegalmente por Israel, parte da população considera uma estratégia correta, outros nem tanto, mas como falei anteriormente, no momento de uma nova agressão israelense, podemos afirmar com total certeza que a Resistência e o povo são uma coisa só. Todos os diferentes grupos da Resistência trabalham de forma coordenada mas não dependem do Hamas.

OM: Sabemos que a situação humanitária é dramática. Especificamente ao acesso á água, remédios e alimentos, como a população está conseguindo sobreviver? Os cortes de energia continuam? Como os hospitais estão conseguindo atender a enorme quantidade de feridos?

Nora  Fernandez Espino:  A situação é de catástrofe, já era de grave precariedade antes desta nova operação lançada por Israel há 27 dias, e o que estão padecendo agora é abertamente uma catástrofe que já está provocando mortes, não apenas pelos ataques diretos de Israel, senão também pelos indiretos, ou, dito com outras palavras, os ataques não diretamente militares como a impossibilidade de acesso à água potável, a falta de medicamentos e equipamento médico, escassez de alimentos e a alarmante situação sanitária provocada pela falta de água para higiene, de desinfetantes, locais onde proteger as pessoas que ficaram sem seus lares e a convivência com restos humanos e de animais que não foram retirados ainda de baixo dos escombros, o que, junto às altas temperaturas de verão tornam Gaza um caldo de cultivo para todo tipo de infecções que já estão começando alarmar à população. Esta situação se agrava com a falta de energia devido ao ataque sobre a única central geradora de Gaza.

OM: A situação das crianças em Gaza e na Cisjordânia é extremamente preocupante, há inúmeras denúncias de detenções ilegais e inclusive tortura de crianças como prática regular e sistemática. Especificamente, neste massacre em curso em Gaza, tem quem diga que se trata de uma “guerra contra a infância palestina” pois Israel tem atacado premeditadamente campos de refugiados, hospitais e escolas. Poderia nos falar do impacto de tudo isto na vida das crianças?

Nora  Fernandez Espino:  Sem dúvida, as vítimas da ocupação e suas metodologias aplicadas tanto em West Bank como em Gaza, são todos os palestinos mas especialmente as crianças. Já há muitos estudos realizados por profissionais que apresentam resultados alarmantes das sequelas que as políticas de apartheid, de castigos como prisão e tortura em crianças de poucos anos, e demais práticas de humilhação permanente, discriminação, insegurança, destruição de lares e pobreza infligidos aos palestinas deixarão sequelas permanentes para as gerações nascidas sob ocupação israelense.

OM: Desde o suposto sequestro dos três colonos judeus, usado como pretexto para esta ofensiva, vimos uma série de mentiras sendo divulgadas na imprensa ocidental para mostrar Israel como vítima e justificar os bombardeios. Qual é a sua opinião sobre a construção desta justificativa justamente no momento em que estava se desenvolvendo mais um dos chamados “diálogos”.

Nora  Fernandez Espino: No dia 23 de abril desse ano, estando eu em Gaza, foi firmado um pre-acordo de Unidade Nacional que terminaria com o enfrentamento entre o Hamas e Al Fatah, esse dia eu fui entrevistada pela rede Press TV de Irã sobre qual era minha opinião em relação à reação tanto de Netanyahu como de Obama, que minutos depois de firmado o acordo entre as facções palestinas, declararam publicamente que isso “não ajudaria nos esforços que Kerry estava realizando em nome do governo americano para restabelecer as negociações entre Israel e Palestina” e que consequências eu considerava que este acordo poderia trazer para Gaza, o que eu respondi sem pensar um minuto: Gaza vai pagar um preço muito caro por este acordo. Dito e feito, nesse mesmo dia e nos dias seguintes vimos dentro de Gaza movimentos dos grupos de Resistência porque houve incursões de unidades de artilheria israelense dentro da Buffer zone e além dela, nas regiões de Khanyunes e Rafah, no sul de Gaza. Obviamente essa era a reação primeira a modo intimidatório, mas a partir desse instante se preparou toda a sequência de mentiras e provocações, lançando uma campanha de ódio e vingança em West Bank que estavam dirigidas a criar o preâmbulo de uma nova e mais mortífera e destrutiva operação contra toda a Palestina, mas principalmente sobre Gaza, a qual ainda não terminou.

OM: Em relação ao cessar-fogo. Tem havido várias notícias e desmentidos. O  cessar-fogo que pode ser aceito pela Resistência Palestina contempla o fim do bloqueio econômico e de entrada de bens e serviços na Faixa de Gaza, poderá Israel aceitar essa condição? Qual é a opinião da população em relação ao cessar-fogo e as condições apresentadas pelo Hamas?

Nora  Fernandez Espino: Viver sob bloqueio é uma morte lenta. O bloqueio tem matado mais palestinos que a própria ação militar. A falta de remédios, de liberdade, de mobilidade, o desespero, o deterioro permanente da qualidade de vida, a impossibilidade de tratar adequadamente doenças que não seriam fatais mas que em Gaza viram doenças mortais. Tudo isto leva a convicção de continuar lutando a todo custo até que o bloqueio seja levantado. Infelizmente, além da vontade inquebrantável está a solidão com a que Gaza está lutando esta mal chamada “guerra”. O tempo está contra Gaza, embora tenham humilhado no terreno o suposto exército mais poderoso do mundo que mostrou ser habilidoso apenas para bombardear desde aviões, tanques e drones para assassinar civis desarmados, no corpo a corpo, o Hamas e a Resistência conseguiram colocar o inimigo em retirada mais de uma vez, mas como eu disse, o tempo é mais um inimigo de Gaza, enquanto os israelenses recebem reforços, dinheiro e armamento, a Resistência deve administrar seus recursos e usar deles com a maior precisão e inteligencia ao mesmo tempo que eles e a população são atingidos pela agressão constante da falta de insumos básicos que se agrava a cada instante. Além do cessar-fogo e suas condições, que lamentavelmente não tem como ser garantidas porque não se pode fazer nenhum acordo com Israel, que tem quebrado historicamente todos os acordos, negociações, tratados e tréguas sistematicamente, está a intenção dos mais de 1.8000 mártires contados até hoje e os mais de 10.000 feridos e uma Gaza transformada em ruínas: que não seja em vão! Para Gaza sobreviver precisa sair do bloqueio e para isto falta não apenas a (inexistente) vontade política dos organismos internacionais, senão uma milagrosa RESPONSABILIDADE que surja de algum setor e que possa equilibrar um pouco este embate sangrento e desigual.

OM: Como os habitantes de Gaza e Cisjordânia tem conseguido manter contato com o exterior nestes dias? A internet continua ativa? As linhas telefônicas estão funcionando? Celulares?

Nora  Fernandez Espino: A internet, como a energia elétrica e os telefones, estão permanentemente intermitentes devido a que os geradores ficaram sem combustíveis e consequentemente as baterias que precisam ser carregadas se esgotam e isto torna tudo muito difícil. A companhia telefônica anunciou que cortará os serviços mas até agora isto não aconteceu, portanto continuam se comunicando com o exterior mas com muita dificuldade.

OM: A ONU tem condenado diversas vezes Israel, agora haverá uma investigação sobre possíveis crimes de guerra, mesmo assim Israel tem ignorado todas as resoluções do organismo e inclusive atacado escolas, comboios e funcionários da ONU.Considera que a ONU tem algum poder para parar Israel?

Nora  Fernandez Espino: Não, decididamente por parte das Nações Unidas pode vir apenas algum pano quente para não cair tão baixo perante a opinião pública mas nenhuma solução profunda pode surgir dali. Não haverão sanções e por essa razão Israel viola cada uma das leis internacionais com total impunidade e despreocupação.

OM: Quais são as suas perspectivas em relação a esta ofensiva e a um possível futuro levantamento do bloqueio a Gaza? Como a comunidade internacional pode contribuir para aliviar o sofrimento da população de Gaza?

Nora  Fernandez Espino: A única medida consistente que a comunidade internacional pode adotar para apoiar a Palestina é o BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções). A exigência aos governos para romper acordos comerciais e acadêmicos com o estado de apartheid, a comunidade mobilizada nas ruas, a ida de voluntários internacionais para trabalhar no terreno são ferramentas importantíssimas mas principalmente e mais que nenhuma outra o BDS porque é o que pedem todas as associações políticas e partidos de toda Palestina. O BDS é unanimidade quando se pede apoio da comunidade internacional..

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