Por Claudio Gallo, Russia Today – Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Se saltarmos fora por um minuto do rio infindável de notícias, podemos ver que já estamos mergulhados bem fundo na 4ª Guerra Mundial.
Começou em 1989 com a queda do Muro de Berlim, que marcou o fim da 3ª, também chamada “Guerra Fria”. O último capítulo da 4ª Guerra Mundial é, obviamente, a fracassada tentativa de expulsar a Rússia da Crimeia, mas, até agora, o estágio mais simbólico ainda é o bombardeio pela OTAN contra a Iugoslávia, que começou dia 24/3/1999, há exatos 15 anos. Foi uma guerra contra Slobodan Milosevic, mas também uma guerra para mudar rumo ao leste a influência e as fronteiras da OTAN.
A Operação Força Aliada, como a OTAN a batizou, consistiu de 78 dias de bombardeio ininterrupto contra a Iugoslávia de Milosevic, com intensidade progressiva, passando, os alvos, de militares, para a infraestrutura civil. Morreram cerca de 200 civis sérvios, como “dano colateral” (contra cerca de 300 que morreram no Kosovo, quase todos albaneses étnicos), enquanto a OTAN virtualmente não teve baixas durante as operações, só alguns soldados mortos em pressupostos acidentes.
A guerra ‘perfeita’
Foi a Guerra Perfeita. O historiador militar britânico John Keegan arrependeu-se quase teatralmente no Daily Telegraph pela velha fé que sempre dedicara aos soldados de infantaria: “Há algumas datas na história das guerras que marcam autênticos pontos de virada (…) Agora temos um novo ponto de virada para marcar no calendário: 3/6/1999, quando a capitulação do presidente Milosevic provou que se pode vencer uma guerra só com poder aéreo.”
Guerra muito limpa, com muitas bombas inteligentes capazes de rachar a Sérvia e só atingir os maus, como sugeriu a propaganda incansável. Apresentar, à opinião pública ocidental, aquela guerra de agressão dentro da Europa Oriental como Guerra Justa não foi, de início, tarefa fácil. Mas os Persuasores Ocultos já tinham, a favor deles, a experiência da Guerra do Golfo de George H. W. Bush. Se a Guerra do Golfo foi a primeira guerra televisionada, vista pela gentil seleção das câmeras da CNN, a guerra da Iugoslávia foi a primeira guerra da internet.
Tinham de achar um gatilho simbólico e acharam: o massacre de Racak, uma vila no Kosovo, onde 45 albaneses étnicos foram mortos pelo exército sérvio, em resposta à morte, a tiros, de quatro policiais sérvios. A narrativa da OTAN fez crer que o bombardeio seria consequência de limpeza étnica de sérvios, mas a verdade foi exatamente o contrário disso: o gatilho para aquela guerra foi a intervenção da OTAN em algumas operações contra a população do Kosovo, no contexto da guerra contra separatistas do Exército de Libertação do Kosovo [ing. KLA] apoiado por EUA e Alemanha.
O deputado do Partido Labour britânico, Tony Benn (que faleceu há alguns dias), disse no Parlamento: “Seja qual for a legalidade ou a moralidade da guerra lançada contra a Iugoslávia, o bombardeio piorou gravemente a crise de refugiados.”
Richard Gott do (acima de qualquer suspeita) Guardian escreveu que “os repentinos deslocamentos de populações do Kosovo foram disparados pelos bombardeios feitos pela OTAN e pela decisão tomada por governos ocidentais de impor condições impossíveis ao estado soberano sérvio.” Como dito naqueles dias, sempre pelo Guardian: “O KLA foi reabastecido com armas contrabandeadas através da fronteira da Albânia e reocupou vilas que as forças de segurança sérvia já haviam esvaziado.”
Sobre Racak também o (acima de qualquer suspeita) Times teve algumas dúvidas: “A realidade do que aconteceu em Racak continua encoberta por declarações e contradeclarações. O que se sabe é que quatro policiais sérvios foram mortos nos arredores da vila em emboscada feita pelo Kosovo Liberation Army (KLA). Subsequentemente, pelo menos 40 albaneses étnico da vila foram mortos a tiros numa emboscada feita pelos sérvios de madrugada. Os sérvios dizem que todos os mortos eram guerrilheiros do KLA mortos em ação. Os albaneses dizem que eram civis, assassinados depois de capturados.”
Mas não basta um gatilho-pretexto. Para convencer gente você precisa de um conjunto de ideias, porque, apesar da morte de todas as ideias declarada pelo neoliberalismo triunfante, as ideias estão mais vivas do que nunca. A ideia que faltava, então, chamou-se Direitos Humanos. Sejamos claros: quem pode ser contra ‘direitos humanos’? Mas uma coisa são os direitos humanos pelos quais foi morto o bispo guatemalteco Juan Gerardi, assassinado por esquadrões da morte em 1998, por exemplo; e outra coisa é ‘direitos humanos’ como ideia defendida por George W. Bush e Tony Blair.
A ‘humanidade’ como pretexto
Na Grã-Bretanha, para pavimentar o caminho para aquela operação, apareceu em 1997 o New Labour Manifesto. Ali se criou uma ‘política exterior ética’: “O partido Labour quer que a Grã-Bretanha seja respeitada no mundo pela integridade com que conduz suas relações exteriores. Faremos da proteção e da promoção de direitos humanos uma parte central de nossa política externa. Trabalharemos para a criação de uma corte criminal internacional permanente para investigar genocídios, crimes de guerra e crimes contra a humanidade.”[1]
“Quem fala de ‘humanidade’ trapaceia” – escreveu Pierre-Joseph Proudhon, então citado por Carl Schmitt. Whoever Says Humanity é também título do livro que Danilo Zolo, professor de Filosofia e Direito e de Filosofia do Direito Internacional na Universidade de Florença escreveu naqueles dias.
“No início dos anos 1990s” – diz Zolo –, “a ‘intervenção humanitária’ passou a ser um elemento chave da estratégia internacional dos EUA. Os EUA diziam que a “segurança global” exigia que as grandes potências responsáveis pela ordem mundial passassem a ver como antiquado o princípio de Westphalia, da não interferência na jurisdição doméstica de estados nacionais. A guerra lançada pelos EUA contra a República Federal da Iugoslávia – a guerra no Kosovo em 1999 – finalmente estabeleceu o intervencionismo humanitário como prática. A partir de então a motivação dita humanitária seria tomada explicitamente como causa justa para guerra de agressão. E os EUA resolveram que o uso da força por razões humanitárias seria legítimo… apesar de estar em oposição à Carta das Nações Unidas, aos princípios do estatuto e do julgamento do Tribunal de Nuremberg e em oposição, de fato, a toda a lei internacional em geral.”
O filósofo italiano Costanzo Preve deu ao seu livro sobre o bombardeio pela OTAN o título de “O Bombardeio Ético”. Ali, Preve escreveu:
“Os EUA criaram uma situação trágica na qual a filosofia dos direitos humanos universais conflita diretamente com uma caricatura distorcida deles: a ideologia de que se exportariam direitos humanos pela violência armada. No sentido grego original, a palavra tragédia faz referência a situação absolutamente sem saída ou esperança, na qual qualquer decisão, seja qual for, é má decisão. A questão dos direitos humanos é, provavelmente, a mais trágica de nossos tempos.
Por um lado, todos, em todo o mundo têm de ser educados para os direitos humanos. Ainda mais, essa educação tem de ser filosoficamente ancorada num diálogo universal real, sem o preconceito obsceno de alguma ‘superioridade’ ocidental, particularmente a versão mais desprezível daquele preconceito, que nos chega como ordem divina exarada do castelo na colina de Ronald Reagan. Por outro lado, a total subserviência da ONU aos EUA e a seus repugnantes governos fantoches levou a uma condição de ilegalidade internacional rampante.”
Ironicamente, o momento de Bomba-bomba-bomba-contra-Milosevic coincidiu na Itália com a chegada ao poder do primeiro primeiro-ministro saído do velho Partido Comunista, Massimo D’Alema. O ex-presidente da República Francesco Cossiga escreveu: “A chegada do ‘comunista’ D’Alema ao Palazzo Chigi (sede do governo) aconteceu com pleno apoio de Washington, em troca da garantia de que a Itália não se retiraria da Guerra do Kosovo.”
Ainda mais ironicamente, o bombardeio começou no mesmo ano em que nasceu o euro.
Com o ataque contra a Iugoslávia, o governo Clinton aproveitou a ocasião para demonstrar ao mundo a inconsistência política da Nova Europa, sempre dependente dos EUA. Ao combater a favor da ideologia dos Direitos Humanos no Kosovo, a Europa estava, de fato, obedecendo à agenda imperial.
Para citar o filósofo italiano Diego Fusaro:
“Com o colapso da estrutura bipolar do universo, iniciou-se nova fase de conflitos, todos diferentes, e, ao mesmo tempo, todos já dentro da 4ª Guerra Mundial. Essa é guerra geopolítica e cultural declarada pela Monarquia Universal (MU) contra o resto do mundo. Uma guerra contra todos os povos e nações que não estão dispostos a submeter ao poder da MU, i.e. a suas políticas de dominação mundial mediante o formato mercadoria.”
Claudio Gallo é jornalista. Trabalha atualmente como editor de Cultura de La Stampa, onde é também editor internacional e correspondente em Londres. Sua principal área de interesse é a política do Oriente Médio.
[1] Esse Manifesto pode ser lido (ing.) em http://labourmanifesto.com/1997/1997-labour-manifesto.shtml [NTs].