7/6/2018, The Saker, Unz Review, The Vineyard of the Saker
O tópico das ações russas na Síria continua a fascinar e a gerar muita polêmica. Faz sentido – a questão é extraordinariamente importante em muitos níveis, inclusive no nível pragmático e no nível moral, e hoje quero concentrar-me estritamente no nível pragmático, deixando de lado, por enquanto, considerações morais/éticas/espirituais. Além disso, assumirei, para facilitar o argumento, que o Kremlin age em uníssono, que não há Integracionistas Atlanticistas no governo russo, nem 5ª coluna no Kremlin nem lobby sionista a exercer grande influência na Rússia. Futuramente enfrentarei essas questões, porque não tenho nenhuma dúvida de que o tempo e o desenrolar dos eventos comprovarão o quanto essas reservas são na realidade politicamente motivadas.
Mas para o objetivo dessa análise, podemos assumir que vai tudo bem no Kremlin e assumir que a Rússia é plenamente soberana e protege sem limitações os próprios interesses nacionais.
Tudo isso posto, o que sabemos sobre o que está acontecendo na Síria?
Assumo que é óbvio que Rússia e Israel têm algum tipo de acordo. Que há algum tipo de entendimento foi admitido pelos dois lados, mas claramente também há mais coisas acontecendo, que ainda não foram enunciadas integralmente. Os israelenses, como sempre, já se vangloriam de uma suposta vitória total; os artigos exibem manchetes como “In Syria, Putin and Netanyahu Were on the Same Side All Along” [Na Síria, Putin e Netanyahu sempre estiveram do mesmo lado], com um subtítulo em que se lê “Putin está pronto para livrar-se do Irã, para contentar Israel e salvar a vitória de Assad”. Será?
O caótico mundo de declarações e afirmativas contraditórias
Examinemos aquela tese de um ponto de vista puramente lógico. Primeiro, quais eram inicialmente os objetivos israelenses? Como expliquei em outro artigo, os israelenses tinham, inicialmente, os seguintes objetivos:
- Pôr abaixo um estado árabe secular forte, com suas estruturas políticas, forças armadas e serviços de segurança.
- Criar caos e horror totais na Síria, que justificaria que Israel criasse uma “zona de segurança” não só no Golan, mas que avançasse mais para o norte.
- Disparar uma guerra civil no Líbano, jogando legiões de doidos Takfiri contra o Hezbollah.
- Deixar que os Takfiris e o Hezbollah se dessangrassem uns os outros até a morte, depois criar uma “zona de segurança”, mas dessa vez no Líbano.
- Impedir que se criasse um eixo xiita Irã-Iraque-Síria-Líbano.
- Quebrar a Síria em várias regiões por religião e etnia.
- Criar um Curdistão que pudesse depois ser usado contra Turquia, Síria, Iraque e Irã.
- Possibilitar que Israel se tornasse a principal potência em todas as negociações no Oriente Médio e forçar o Reino da Arábia Saudita, o Qatar, Omã, Kuwait e todos os demais a ter de recorrer a Israel para qualquer projeto de gasoduto ou oleoduto.
- Gradualmente isolar, ameaçar, subverter e eventualmente atacar o Irã com ampla coalizão de forças regionais.
10.Eliminar todos os centros de poder xiita no Oriente Médio.
Paremos nesse ponto, para fazer uma pergunta bem simples: se Putin e Netanyahu estivessem desde sempre no mesmo lado, o que Putin teria feito para ajudar os israelenses? Trabalho com a resposta óbvia e indiscutível: fez absolutamente nada. Quando os russos iniciaram sua intervenção (muito limitada, mas também muito efetiva) na Síria todos os planos 1-10 acima já estavam em estado avançado e quase plenamente realizados!
Verdade inegável é que Putin fez gorar completamente o plano inicial de Israel para a Síria.
De fato, Hezbollah e Irã já estavam na Síria, lutando desesperadamente para ‘tapar os buracos’ num front sírio que começava a colapsar. Assim, é o caso, no mínimo, de dar a Putin os créditos por ter forçado os israelenses a desistir do “plano A” e a ir para o plano “B” que já analisei, e que pode ser resumido nos seguintes termos:
Primeiro passo, use sua máquina de propaganda e agentes infiltrados para reiniciar o mito sobre um programa militar nuclear iraniano inexistente. E não importa que haja, assinado e legalmente vigente, o chamado “Acordo Nuclear Iraniano” [oficialmente, “The Joint Comprehensive Plan of Action“, JCPOA] firmado por todos os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e Alemanha (P5+1) e até pela União Europeia! (…) Se Trump diz que o Acordo Nuclear Iraniano é coisa terrível… então é.
Acordem! Estamos vivendo em tempos “pós-Skripal” e “pós-Douma” – se algum líder anglo (ou sionista) diz “altamente provável”, ele imediatamente convoca as massas a manifestar “solidariedade” instantânea, sob pena de ser acusado de “antissemitismo” ou de distribuir “teorias limítrofes de conspiração” [orig. fringe conspiracy theories] (vocês já viram o filme). Quer dizer: o primeiro passo é reiniciar ex nihilo o golpe do programa militar nuclear iraniano (…) e mandar os norte-americanos zumbis para lá, para matarem iranianos…
Como já expliquei detalhadamente aqui, a Rússia não tem qualquer obrigação moral de proteger seja quem for, seja onde for, não no Oriente Médio e, com certeza, não na Síria e/ou Irã. Já expliquei também com muitos detalhes aqui por que Putin tem também muitas razões pragmáticas para não envolver a Rússia em qualquer grande guerra no Oriente Médio.
Por fim, como expliquei aqui, os israelenses estão claramente tentando atrair o Irã, a cada alvo iraniano (ou dito com mais precisão, a cada alvo ligado ao Irã ou que o Irã apoie) na Síria. Esperam que acabe a paciência do Irã e que os iranianos venham a retaliar com suficiente poder de fogo que justifique não só um ataque contra alvos (de valor relativamente baixo) ligados ao Irã na Síria, mas o próprio território iraniano, o que levará a retaliação garantida do Irã contra Israel, o que gerará o Grande Prêmio da Loteria: ataque massivo dos EUA ao Irã.
Mas… consideremos mais uma vez as ações russas. Se Putin estivesse “com Netanyahu desde o início”, estaria ajudando os israelenses a fazer o que estão fazendo (tentando atrair os iranianos), certo? Mas o que Putin realmente faz?
Tudo começou com uma declaração do ministro Lavrov de Relações Exteriores, que declarou que todas as forças estrangeiras devem deixar a Síria. Tanto quanto sei, não há citação direta da declaração de Lavrov, só paráfrases e interpretações. Lavrov também fez, depois, alguns comentários de esclarecimento. Melhor começar por perceber que mesmo antes do comentário de Lavrov sobre “todas as forças estrangeiras”, o mesmo Lavrov disse também “todas as forças dos EUA devem deixar a Síria depois da derrota das forças terroristas“. Será que posso lembrar a todos também que também Israel ocupa ilegalmente as Colinas do Golan sírias, há anos, e que o exército de Israel encaixa-se perfeitamente na definição de “forças estrangeira na Síria”? E ainda melhora, segundo os sírios e, sejamos francos, segundo também o bom-senso e a lei internacional: os sírios dizem que todas as forças estrangeiras devem deixar a Síria exceto quem seja legalmente chamado, pelo governo sírio, a permanecer.
Assim, quando os russos dizem que todas as forças estrangeiras incluindo os iranianos (se se assume que Lavrov tenha realmente disso isso) devem deixar a Síria, dizem-no sem autoridade legal ou qualquer outra autoridade para impor o que dizem, sem que haja Resolução do Conselho de Segurança da ONU que avalize o que digam os russos. Considerando que Israel e EUA não dão importância alguma à lei internacional ou ao CSONU, pode acontecer até de aparecer Resolução, aplicada só aos iranianos e ignorada pelos israelenses. O truque aqui é que na realidade há bem poucas “forças” iranianas na Síria. Há muitos “conselheiros” (que não seriam considerados “força”) e muito maior número de forças pró-Irã, que não são absolutamente “forças iranianas”.
Há também o Hezbollah, mas o. Claro que os israelenses dirão que o Hezbollah é “força iraniana”, mas não passa de sandice. E, para aumentar a confusão, os russos agora estão sendo bonzinhos e dizem que “claro, a retirada de forças não sírias tem de ser ação mútua, tem de ser via de duas mãos“.
Sugiro que podemos parar de ouvir todas as possíveis paráfrases e interpretações, e concordar que, sim, os russos, com suas declarações, criaram santa (ou nada santa) confusão. De fato, minha opinião é que o que parece ser santa (ou nada santa) confusão, é ambiguidade deliberada e muito atentamente construída.
Segundo numerosas fontes russas, toda essa retórica tem a ver com o sul da Síria e a linha de contato (não é fronteira, em termos legais) entre Síria e Israel. A coisa parece ser a seguinte: as forças pró-Irã e o Hezbollah saem do sul e, em troca, os israelenses deixam os sírios, apoiados por força aérea russa e “conselheiros” voltar ao controle do sul da Síria, mas sem novas tentativas de expulsar os israelenses das colinas do Golan que Israel ocupa ilegalmente.
Desnecessário dizer que os sírios também estão insistindo que, como parte do acordo, as forças dos EUA que estão no sul da Síria façam as malas e caiam fora. Francamente, a menos que os EUA tenham planos de manter pequenos (e inúteis) enclaves norte-americanos dentro de território controlado pela Síria, não vejo sentido algum em os EUA permanecerem. Não só isso, mas a Jordânia parece ser parte desse acordo.[1] E eis a melhor parte: há provas muito consistentes de que Hezbollah e Irã também são parte do acordo. E… adivinhem. Também os turcos.
Com certeza tudo leva a crer que os russos conseguiram, sim, alguma espécie de grande acordo regional. E se for assim, esse acordo também explicaria as negativas tensas em Israel e no Irã, seguidas de mais confirmações (também aqui).
Para tornar as coisas ainda mais confusas, tem-se agora Stoltenberg (logo ele?!) a dizer que a OTAN não deve ajudar Israel no casos de ataque iraniano. Considerando-se que o secretário-geral da OTAN tem zero de poder; que 80% da OTAN pertencem aos EUA; e que os EUA tem hoje uma força de tipo “armadilha de fio enterrado” [ing. tripwire] dentro de Israel e condições suficientes para se declarar sob ataque se Israel for atacada… tudo isso é conversa fiada. Mas, sim, é cada vez mais engraçado o movimento de “aumentar o caos”.
E há também o aparente plano sírio para chutar os EUA do norte da Síria plano que, previsivelmente, Tio Sam não aprecia. Claro que os dois lados estão novamente conversando.
Se tudo isso ajuda a convencê-lo, leitor, da tese de que “Putin e Netanyahu estiveram do mesmo lado desde o começo”, gostaria de saber o que terei de fazer para demovê-lo dessa convicção, porque, para mim, isso só pode ser uma dentre as seguintes três coisas:
- Foi firmado algum tipo de grande acordo regional; ou
- Está em processo de ser construído algum tipo de grande acordo regional; ou
- Foi firmado algum tipo de grande acordo regional, mas ninguém confia em ninguém, e todos estão tentando melhorar para si mesmos as condições do acordo. E, claro, todos querem livrar a respectiva cara, seja negando qualquer acordo, seja declarando vitória, especialmente os anglo-sionistas.
Assim, a pergunta-chave é: há alguma prova – absolutamente qualquer prova de que Putin e/ou Assad está/estão “livrando-se” do Irã?
Saiamos portanto do reino das declarações e comunicados, de volta ao mundo real
Comecemos por uma pergunta simples: o que deseja o Irã, acima de qualquer outra coisa?
Minha hipótese é que a prioridade absoluta, n. 1 indiscutível entra as urgências do Irã, é evitar ataque norte-americano massivo contra o Irã.
Pela via inversa, disparar tal ataque contra o Irã é o objetivo n.1 indiscutível dos israelenses. E nem se pode dizer que façam segredo disso. A ideia mais recente é de Israel “é criar uma coalizão militar contra o Irã” ao mesmo tempo em que tenta agradar a OTAN, unindo-se a exercícios militares anti-Rússia na Europa.
Não porque o inexistente programa nuclear iraniano ameace Israel, mas porque o Irã mostra ao mundo um modelo civilizacional mais bem-sucedido – e portanto é concorrente perigoso simultaneamente contra o Império Anglo-sionista e contra a versão saudita-wahhabista do Islã.
Além disso, diferente (infelizmente) da Rússia, o Irã ousa cometer o “crime dos crimes”, a saber, o Irã publicamente denuncia Israel como estado racista e genocida, cujas políticas afrontam toda a humanidade civilizada. Por fim (outra vez infelizmente diferente da Rússia) o Irã é estado realmente soberano, que lidou com sucesso com seus ‘5ª-colunistas’ e não se deixou apanhar nas garras de ferro dos tipos que reinam no FMI/Banco Mundial/Organização Mundial do Comércio (já escrevi sobre isso semana passada e não vou repetir).
Creio também que o Irã também cultiva, como alta prioridade, apoiar todos os povos oprimidos do Oriente Médio. Resistir contra a opressão e a injustiça é imperativo corânico, e creio que, na interpretação iraniana do livro santo dos muçulmanos, esse dever estende-se também a não xiitas sunitas e até cristãos e judeus. Contudo, porque sei que essa ideia dispara automaticamente todos os tipos de acusações as mais furiosas, de que eu estaria sendo ingênuo ou, até, de que eu seja propagandista do xiismo, concederei que ajudar xiitas oprimidos na região seria talvez mais importante para os líderes iranianos do que ajudar todos os demais oprimidos do mundo. Em termos seculares, significa que o Irã tentará proteger e ajudar os xiitas no Iraque, na Síria e no Líbano – e não vejo nenhum erro nessa ideia.
Na verdade, considerando a bela generosidade que o Hezbollah demonstrou no confronto contra o Exército Sírio Livre no sul do Líbano em 2000, e o fato de que forças de segurança sírias estão atuando com máximo cuidado nas partes da Síria que aceitaram o acordo russo (o que preocupou muitíssimo vários analistas russos), acho que forças apoiadas pelo Irã na luta para libertar a Síria do jugo do Daech são o melhor que qualquer um poderia desejar.
Além disso, verdade é que, com todos os seus erros noutros campos, o regime Ba’athist na Síria sempre foi tolerante com as minorias, e o Hezbollah sempre protegeu absolutamente todo o povo libanês, independente de confissão religiosa ou etnia (há de haver quem não concorde; mas estudo Hezbollah e Irã já há várias décadas, e cheguei à conclusão de que, diferentes da maioria dos atores políticos, o Hezbollah e o Irã são realmente dignos de crédito e de confiança quando declaram as próprias intenções).
Tudo isso considerado, quem é a maior ameaça aos xiitas e, creio eu, a todos os povos do Oriente Médio? Os takfiris do Daesh, claro.
E o que todas as variantes do possível “grande acordo regional” têm em comum? O objetivo de eliminar da Síria os Daesh & Co. Sendo assim, como isso seria contrário aos interesses do Irã? Não seria nem é, evidentemente.
A verdade é que não encontro absolutamente prova alguma de que “Putin e Netanyahu sempre estiveram juntos desde o início”. O que vejo é que está sendo construído algum tipo de acordo entre várias partes, no qual todos provavelmente tentam empenhadamente passar a perna nos demais: Realpolitik no pior que pode ser, no ponto de cinismo máximo. OK. Mas absolutamente não é a Rússia traindo o Irã.
O que todos parecem empenhados em fazer é o que o ferreiro Vakula fez em Noite de Natal, de Gogol[2]: enganar o diabo. Na Rússia, o diabo é conhecido como “лукавый” que significa “o mal”, mas também “o dissimulado”, o “espertalhão”, o “inteligente perverso”. Tentar enganar o diabo é tarefa perigosa e dificílima, e, pessoalmente, também me parece moralmente muito questionável. Mas mesmo sem comprometer a visão de época, hoje neutra em matéria de valores e suposta “realista”, também é possível desmontar a noção de que “Putin trai o Irã”, considerando só razões puramente cínicas e “pragmáticas”, sem ter de recorrer a absolutamente nenhum valor mais alto.
Para os que não tenham visto, recomendo muito esse vídeo (legendas em ing.) de Ruslan Ostashko, discutindo o que Israel pode (ou não pode) oferecer à Rússia e a Putin.https:
Ostashko está absolutamente certo. A verdade é que Israel, diferente do Irã, tem muito pouco a oferecer a Putin ou à Rússia. Não significa que Israel não tenha influência sobre o Kremlin (tem, com absoluta certeza) mas aquela influência é toda “porrete”, sem nenhuma “cenoura”. – É uma das falhas conceituais da posição dos que negam a existência da 5ª coluna sionista dentro da Rússia: vivem a negar a existência do “porrete” mas não têm cenoura a oferecer, o que faz as políticas russas parecerem ao mesmo tempo contraditórias e inexplicáveis, o que cria a necessidade dos mais complexos contorcionismos mentais para explicá-las).
Mas o “porrete” de Israel, embora inegavelmente grande, desaparece à frente da “cenoura” gigante do Irã: não só recursos imensos e bilhões de dólares/rublos/rials/euros a serem convertidos em energia e armas e muitos setores da economia. Há também o fato de que o Irã é realmente a maior potência regional em todo o Oriente Médio: talvez não tão grande a ponto de impor a própria vontade aos demais, mas com certeza suficientemente grande para pôr abaixo qualquer grande plano ou política que não aprove. Além do mais, agora que as sanções internacionais contra o Irã foram oficialmente levantadas (apesar de os EUA terem-se oposto oficialmente), o Irã pode integrar-se e tornar-se influente membro da Organização de Cooperação de Xangai (além, possivelmente, de outros países do Oriente Médio). Tudo isso torna a “cenoura” iraniana muito atraente para a Rússia. Há também um “porrete” iraniano conceitual: se Israel consegue o que quer, e o Irã é massiva e perversamente atacado pelo Império Anglo-sionista, e disso resulta ou o caos ou crise severa, que impacto teria esse resultado sobre a Rússia e seus aliados? E, embora eu não acredite nem por um instante que seja possível, digamos, que o Império ponha no poder um regime pró anglo-sionistas em Teerã e derrube a República Islâmica – que efeito teria isso sobre a segurança nacional russa? Seria pesadelo absoluto, não?
Considere-se o relacionamento entre Rússia e Turquia antes da tentativa de golpe contra Erdogan. Com certeza, esse relacionamento era muito pior que o relacionamento que há hoje entre a República Islâmica e a Rússia? E mesmo assim, quando os EUA tentaram derrubar Erdogan, o que fez a Rússia? A Rússia deu o mais integral apoio a Erdogan e até, segundo alguns, garantiu-lhe proteção física durante umas poucas horas. Se a Rússia pôs-se ao lado de Erdogan contra o Império, por que a Rússia não se poria ao lado da República Islâmica, mesmo que se considerem só os interesses dos próprios russos?
Para conhecer uma excelente análise iraniana da aliança Rússia-Irã, leiam Aram Mirzaei.
Conclusão
A simples verdade é que, declarem China, Rússia, Irã, Síria e Hezbollah o que declararem no plano político, todos esses são dependentes uns dos outros e não podem, separados dos demais, trair seja quem for, sem que o Império apanhe cada traidor um a um, até liquidá-los todos.
Para usar a expressão de Franklin – todos têm de se agarrar uns aos outros para não serem enforcados separadamente? Não significa que se amam todos apaixonadamente ou que sempre partilhem os mesmos objetivos? Até certo ponto, podem também jogar uns contra os outros; podem até tentar algum acerto “com o outro lado” com os anglo-sionistas (…), mas os fatos em campo e a correlação de forças no Oriente Médio limitará o escopo dessas ‘minitraições’, pelo menos hoje e no futuro visível.
Sim, há um fator saudita a levar em conta. Diferente dos israelenses, os sauditas oferecem muitas “cenouras”. Mas os sauditas são arrogantes demais, já se estão intrometendo nos interesses, não só na Síria, mas também no Qatar, e o ramo saudita de Islã é realmente perigo mortal para a Rússia. Nesse momento, os Integracionistas Atlanticistas e os Soberanistas Eurasianos alcançaram um determinado tipo de equilíbrio no Kremlin. Os Integracionistas Atlanticistas tentam separar a União Europeia e os EUA, e fazer muito dinheiro; e os Soberanistas Eurasianos ficaram com o trabalho de cuidar das questões de segurança nacional, especialmente em relação ao Sul; mas esse equilíbrio é inerentemente instável e imediatamente ameaçado por qualquer ataque anglo-sionista de maiores proporções. Ah, sim, há um lobby sionista na Rússia e, sim, ele atua como uma 5ª coluna, mas não – enfaticamente não – não é suficientemente forte para desconsiderar completamente os interesses financeiros das elites do business russo nem, e ainda menos, os interesses fundamentais da segurança nacional russa. Esse é uma das maiores diferenças entre EUA e Rússia: a Rússia, embora apenas parcialmente soberana, está longe de ser protetorado ou colônia de Israel. E enquanto a Rússia mantiver sua soberania, mesmo que parcial, ela não ‘se livrará’ do Irã, sejam quais forem os gritos de Israel e suas ameaças.
Minha avaliação pessoal é que Putin está jogando jogo muito complexo e potencialmente perigoso. Está tentando passar a perna não num, mas em muitos “diabos” e ao mesmo tempo. Além do mais, há a evidência de que os norte-americanos, que já não eram “confiáveis para acordos” (ru. недоговороспособны), desde Obama, Trump e seus patrões neoconservadores tornaram-se ainda muito menos confiáveis. Quanto aos israelenses, fariam o próprio Satanás parecer honestíssimo, e são ideologicamente incapazes de honestidade (e até de decência). Francamente, não confio um milímetro em Erdogan e não acho que os russos tampouco confiarão nele, algum dia. Chamem-me de ingênuo, mas acho que Assad já foi modificado por essa guerra, e se ele, de fato, algum dia colaborou com a CIA no passado, acho que doravante será um bom aliado dos russos. Quanto ao aiatolá Ali Khamenei e Hassan Nasrallah, vejo-os como homens honrados que manterão qualquer aliança formal com a qual se comprometam (entendimentos informais e circunstanciais temporários em entendimentos mútuos são outra coisa).
Também os vejo como geoestrategistas brilhantes e lúcidos: os dois dão-se integralmente conta de que o Irã e Hezbollah *precisam* da Rússia para sobreviver. Assim sendo, a política de Putin, embora perigosa, não estão de modo algum condenada ao fracasso: Putin está tentando salvar a Síria das garras dos anglo-sionistas, ao mesmo tempo em que evita uma guerra regional. O tempo está a favor de Putin, com as políticas (dito em termos bem leves) erráticas de Trump (ou a ausência de políticas) infligindo tremendo dano, todos os dias, ao Império (leiam essa excelente análise de Dmitri Orlov, aqui).
Honestamente, não sei se a perigosa estratégia de Putin funcionará. Acho que nenhuma outra pessoa saberia (exceto os bajuladores ignorantes, claro). Mas sei que, mesmo que a imagem de Bibi Netanyahu em Moscou com uma fita de São Jorge provoque náusea à minha consciência, nada disso indica absolutamente que Netanyahu e Putin estariam trabalhando juntos ou que a Rússia estar-se-ia “livrando do Irã”. Como sempre, os israelenses desfilam acintosamente sua arrogância. Que desfilem. Lembrem que o único e inevitável resultado no passado desse tipo de húbris sionista não passou de “oy vey!“.
Por fim, há o fato isolado mais importante: o Império Anglo-sionista e Rússia permanecem em guerra, e já lá vão pelo menos quatro anos, ou mais. Essa guerra ainda é 80% informacional, 15% econômica e 5% cinética, mas mesmo assim é guerra muito real, e está em escalada. Enquanto a Rússia mantiver alguma soberania, ainda que parcial, a Rússia oferecerá modelo civilizacional alternativo, mesmo que imperfeito; a Rússia, assim, continuará a ser ameaça existencial contra o Império; e o Império permanecerá como ameaça existencial contra toda a potência civilizacional russa.
Embora imensamente importante para Israel, toda a questão iraniana é apenas show colateral para os líderes transnacionais do Império que veem Rússia e China como os verdadeiros principais competidores, especialmente quando unidos no relacionamento simbiótico em que hoje estão. Daí as crises na Ucrânia e na Península Coreana, daí os repetidos alertas de possível guerra nuclear de grande escala (vejam o recente artigo de Eric Zuesse aqui ou os vários artigos de Paul Craig Roberts em seu website; vejam também aqui a excelente análise de Dan Glazebrook sobre a tentativa de Trump para repetir, na Coreia, “a farsa de Rambouillet“). Ainda que Putin consiga trazer a UE para mais perto da Rússia e afastá-la dos (visivelmente insanos) EUA, e ainda que consiga impedir que os anglo-sionistas ataquem diretamente o Irã, só conseguirá convencer ainda mais os líderes anglo-sionistas imperiais de que ele, Putin, e a Rússia, são o mal total, que têm de ser eliminados. Os que esperaram que se constituísse algum modus vivendi entre o Império e a Rússia insistem em se autoenganar, porque a própria natureza do Império impossibilita qualquer arranjo desse tipo.
Além disso, como Orlov apontou corretamente – a hegemonia do Império já entrou em rápido colapso. A máquina de propaganda do Império nega e tenta ocultar os fatos, e os que nela creem não veem – mas os líderes do Império todos compreendem bem o que se passa; daí a escalada que se vê pelo mundo, em todas as frentes, desde que os neoconservadores assumiram o poder na Casa Branca.
Se os neoconservadores continuarem na rota atual, e não vejo qualquer indício de que estejam considerando mudar alguma coisa, nesse caso a questão resume-se a quando/onde o que temos hoje levará, antes do colapso, a uma guerra total. O seu palpite vale tanto quanto o meu.
[assina] The Saker
[1] Ver também “Pressão de EUA-sauditas sobre Jordânia abre caminho para o Irã”, 7/6/2018, Moon of Alabama, traduzido em Blog do Alok (NTS).
[2] GÓGOL, Nikolai Vasilievich. Noite de Natal. In: O Capote e outras novelas de Gógol. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990, pp. 115-165.
Traduzido por Vila Vudu