19/2/2016, Pepe Escobar, Strategic Culture Foundation
“Às vezes me pergunto se estamos em 2016, ou se continuamos em 1962” – disse o primeiro-ministro russo Dmitry Medvedev a 60 ministros de Relações Exteriores e Defesa, na 52ª Conferência de Segurança de Munique, sábado passado, e de modo algum foi novidade.
Medvedev chamou de Nova Guerra Fria, o que alguns de nós temos chamado, já há algum tempo, de Guerra Fria 2.0. E, corretamente, o primeiro-ministro russo identificou Ucrânia e Síria como novos pontos de destaque.
Medvedev também recordou o que o presidente Putin dissera àquela mesma conferência de Munique há nove anos, que a obsessão dos EUA com um sistema de mísseis de defesa gerava o risco de reacender a Guerra Fria; agora “o quadro é ainda mais sombrio: os desenvolvimentos a partir de 2007 foram piores do que o previsto.” E foi elegantemente eufemístico, ao observar que “as políticas da OTAN relacionadas à Rússia permanecem pouco amistosas e opacas”. Três dias antes, o secretário-geral da OTAN Jens Stoltenberg anunciara que a OTAN – sob ordens do Pentágono – aumentará sua presença na patrulha naval do Mar Negro.
Como seria de prever, mídia-empresa ocidental rotulou de hiperbólica a avaliação de Medvedev, ou que ele estaria “explorando ansiedades europeias”. Nonsense. Fatos em campo estão abrindo caminho rumo a uma estrada perigosamente escorregadia, da “Nova Guerra Fria” em direção à possibilidade aterrorizante, de arrepiar, de uma Guerra Quente pela Síria – instigada pelas “políticas” do Pentágono e do CCG-OTAN.
As avaliações periódicas, elas, sim, hiperbólicas, que a OTAN faz da política exterior russa não passam de boataria para disseminar o medo. O que se discute é se o Pentágono e o complexo industrial-militar desejam uma grande guerra bem quente que reanime a economia dos EUA, hoje em espetacular processo de implosão –, e ofereça assim a linha de fuga perfeita para os gigantes das finanças e para políticos comprados e pagos, que poderiam culpar a guerra pelo desastre econômico, não o cassino financeiro.
Querem falar sério? Heavy metal?
Medvedev alertou bem claramente que qualquer intervenção por solo, na Síria, pela coalizão que os EUA comandam e que supostamente estaria combatendo contra o ISIS/ISIL/Daech – falava da Turquia – desencadearia nova guerra. É a linha vermelha russa que Lavrov demarcou muito claramente nas muitas reuniões que tem tido com Kerry. Medvedev fez aumentar o suspense, ao não informar se o navio patrulha Zelyony Dol que a Rússia acaba de enviar à Síria transporta ogivas nucleares para os seus mísseis cruzadores Kalibr.
É mais que óbvio que o Pentágono – assim como o governo Obama – sabem perfeitamente do gambito desesperado do sultão Erdogan da Turquia, de uma ofensiva militar ao longo da fronteira turco/síria. O que ainda não se vê com muita clareza é até que ponto o Pentágono/OTAN “apoiaria” o gambito.
Não há prova indiscutível – pelo menos por enquanto – de que alguma possível, se não iminente invasão pela Turquia, no norte da Síria, estaria sendo controlada diretamente, por controle remoto, por Washington. Nesse cenário, Washington estaria novamente “liderando pela retaguarda”, mecanismo de suporte para turcos e sauditas usados como bucha de canhão.
Ao mesmo tempo, o que absolutamente não vazou das incontáveis reuniões Lavrov-Kerry, mais telefonemas Obama-Putin, é o ponto a que chegam as consequências contra as quais Moscou alertou, para o caso de um movimento turco alucinado. Nesse jogo de sombras – e campanha de desinformação – há em Washington quem pareça compreender as implicações dos avisos que os russos já deram.
O sultão Erdogan calcula que, faça ele o que fizer, sempre terá integral apoio da OTAN. Entrementes, como já analisado, todas as forças russas estão em alerta total, incluindo a Frota do Mar Negro, o que se traduz em prontidão para combate, no caso de o sultão Erdogan enlouquecer definitivamente.
Os falcões do Pentágono e a nebulosa de griffes de think-tanks neoconservadoras calculam que Moscou temeria uma guerra em dois fronts, contra a Turquia e a OTAN; e que, assim, acabaria por retroceder na Síria. Mais nonsense. Se se chegar a isso, a Turquia pode ser posta em nocaute num piscar de olhos, pela Rússia. E se começarmos a falar em guerra tipo heavy metal realmente quente, – ainda que hipoteticamente – a Europa pode ser atropelada em três semanas pelas forças com que a Rússia conta no Front Ocidental, segundo fontes militares alemãs. E a OTAN seria exposta como o que realmente é: fanfarronice de Bruxelas.
E o Partido da Guerra? Está desesperado? Até que ponto?
A incansável – na verdade, irracional – demonização de Putin, combinada com a obsessão da think-tank-elândia neoconservadora com uma “agressão russa” combina perfeitamente com um padrão que está em desenvolvimento já há alguns anos. Essencialmente, a “política” consiste em avançar ininterruptamente a OTAN na direção da fronteira leste da Rússia. E que se lixe o risco real de a Guerra Fria 2.0 ser convertida em guerra nuclear.
Em termos do Novo Grande Jogo na Eurásia, o que obceca o governo dos EUA em Washington é separar, custe o que custar, Rússia e Alemanha. E impedir que a Rússia alinhe-se plenamente à China. E esse mantra continuará a ser repetido, seja quem for o novo inquilino da Casa Branca a partir de janeiro 2017. Em resumo: sabotar e sabotar, sem parar nunca, a integração da Eurásia. A principal subtrama é relegar a Rússia ao papel de potência regional – não, de modo algum, global.
A incansável demonização de Putin é só a face ‘propaganda & marketing’ desse consenso no governo dos EUA. Já foram retirados do armário e repostos em uso todos os atavios do “Império do Mal” – de apresentar Putin como “o novo Hitler”, até o meme infindável da “agressão russa”.
E a religião oficial passa a ser “contenção” – do Báltico à Romênia, atravessando a Anatolia, até o Cáucaso e o Cáspio. Washington já configurou Polônia, Romênia e especialmente a Turquia como seus cães-de-ataque chaves.
A grave crise Turquia-Rússia detonada pelo ataque de Ancara contra o Su-24 russo foi como presente para o governo dos EUA em Washington. Uma das – graves – consequências dessa crise pode ter sido o bombardeamento definitivo do projeto do gasoduto de gás natural “Ramo Turco” [Turkish Stream] – o que é como apunhalar pelas costas a integração da Eurásia.
Moscou sabe muito bem que o odioso processo de demonização – não só contra Putin, mas que também se traduz na mais obscena russofobia – não diminuirá. Porque as apostas estão altas demais. O complexo industrial-militar precisa ter sempre algum inimigo “imperial” poderoso: os cabeças-de-toalha nas cavernas do Afeganistão ou algum falso “Califato” nunca passaram de piada. É a integração da Eurásia – Rússia, China e Irã aliados à Alemanha – que tem de ser impedida a qualquer custo.
Mas a parceria estratégica Rússia-China avança, inabalada: a Alemanha quer muito subir a bordo do trem da Nova Rota da Seda; e os “4+1” – Rússia, Síria, Irã, Iraque plus Hezbollah – realmente viraram a mesa do golpe da ‘mudança de regime’ na Síria. Assim sendo, a Rússia será o Inimigo Primordial – ou “uma ameaça aos EUA em todas as esferas” – como diriam os linhas-duras –, o perigo que pairará sobre todo o ocidente, um símbolo de perigo eterno.
O que estamos perto de descobrir é se o Partido da Guerra nos EUA está suficientemente desesperado, a ponto de converter a fronteira Turquia-Síria na nova Sarajevo, e iniciar uma Nova Guerra Quente letalmente imprevisível.
Perfeito.