19/3/2020, David Harvey, Blog
Ao tentar interpretar, compreender e analisar o fluxo diário de notícias, tendo a pôr o que esteja acontecendo, contra o pano de fundo de dois modelos de como o capitalismo funciona, modelos distintos, mas com intersecções. O primeiro nível é um mapeamento das contradições internas da circulação e acumulação de capital como fluxos de valor monetário à procura de lucro ao longo dos diferentes “momentos” (como Marx os chama) de produção, realização (consumo), distribuição e reinvestimento.
Este é um modelo da economia capitalista como espiral, de expansão e crescimento sem fim. Vai-se tornando bastante complicado à medida que é elaborado, por exemplo, pela lente das rivalidades geopolíticas, dos desenvolvimentos geográficos desiguais, das instituições financeiras, das políticas estatais, das reconfigurações tecnológicas e da teia em constante mutação das divisões do trabalho e das relações sociais.
Vejo esse modelo, porém, inserido num contexto mais amplo de reprodução social (nas famílias e nas comunidades), numa relação metabólica contínua e em constante evolução com a natureza (incluindo a “segunda natureza” da urbanização e do ambiente construído) e com todo o tipo de formações culturais, científicas (baseadas no conhecimento), religiosas e sociais contingentes que as populações humanas normalmente criam no espaço e no tempo.
Esses últimos “momentos” incorporam a expressão ativa dos anseios, necessidades e desejos humanos, a ânsia por conhecimento e por significação e a permanente busca por realização, num contexto de arranjos institucionais mutáveis, contestações políticas, confrontos ideológicos, perdas, derrotas, frustrações e alienações, tudo isto trabalhado num mundo de marcada diversidade geográfica, cultural, social e política.
Esse segundo modelo constitui, por assim dizer, a minha hipótese de trabalho do capitalismo global como formação social distinta; o primeiro tem a ver com as contradições dentro do motor econômico que move essa formação social ao longo de alguns caminhos da sua evolução histórica e geográfica.
Quando, dia 26/1/2020 [aqui, cronologia da datas, pela OMS], li pela primeira vez sobre um vírus Corona que estava ganhando terreno na China, pensei imediatamente nas repercussões para a dinâmica global da acumulação de capital.
Sabia, dos meus estudos do modelo econômico, que bloqueios e rupturas na continuidade do fluxo de capital resultariam em desvalorizações; e que se as desvalorizações se generalizassem e se aprofundassem, isso assinalaria o início de crises. Também estava bem ciente de que a China é a segunda maior economia do mundo e de que efetivamente salvou o capitalismo global após 2007-8. Assim sendo, qualquer impacto sobre a economia da China teria sérias consequências para uma economia global que, de qualquer modo, já estava em péssimas condições.
Movimentos de protesto estavam ocorrendo em quase todo lugar (de Santiago a Beirute), muitos dos quais focados no fato de que o modelo econômico dominante não estava funcionando bem para a massa da população.
Esse modelo neoliberal assenta cada vez mais no capital fictício e vasta expansão na oferta de dinheiro, e na criação de dívida. O modelo já está diante do problema de insuficiente demanda efetiva para realizar os valores que o capital é capaz de produzir. Assim sendo, como poderia o modelo econômico dominante, com sua legitimidade flácida e saúde delicada, absorver e sobreviver aos impactos inevitáveis do que se poderia converter em pandemia?
A resposta dependeria muito de quanto tempo a ruptura durasse e de o quanto se disseminaria, pois, como Marx apontou, a desvalorização não ocorre porque as mercadorias não possam ser vendidas, mas porque não podem ser vendidas a tempo.
Há muito tempo recusei a ideia de “natureza” como exterior e separada da cultura, da economia e da vida diária. Assumo visão mais dialética e relacional da relação metabólica com a natureza. O capital modifica as condições ambientais da sua própria reprodução, mas fá-lo num contexto de consequências involuntárias (como as alterações climáticas) e no contexto de forças evolutivas autônomas e independentes que perpetuamente remodelam as condições ambientais. Deste ponto de vista, não existe desastre verdadeiramente natural. É verdade que os vírus nunca param de mudar. Mas as circunstâncias nas quais uma mutação passa a ameaçar a vida dependem de ações humanas. Há aí dois aspectos relevantes.
Primeiro, condições ambientais favoráveis aumentam a probabilidade de mutações vigorosas. É plausível, por exemplo, esperar que sistemas intensivos ou imprevisíveis de oferta de alimentos em áreas subtropicais úmidas possam contribuir para isso. Tais sistemas existem em muitos lugares, incluindo a China ao sul do Yangtse e o Sudeste Asiático.
Em segundo lugar, as condições que favorecem a transmissão rápida através dos corpos hospedeiros variam muito. Populações humanas de alta densidade parecem ser alvo fácil para hospedeiros. É bem conhecido que epidemias de sarampo, por exemplo, só florescem em centros populacionais urbanos maiores, e esgotam-se rapidamente em regiões escassamente povoadas. O modo como os seres humanos interagem uns com os outros, como se deslocam, disciplinam-se ou se esquecem de lavar as mãos afeta o modo como as doenças são transmitidas.
Em tempos recentes, a Síndrome Aguda Respiratória Severa, SARS, a gripe aviária e a gripe suína parecem ter saído da China ou do Sudeste Asiático. A China também sofreu muito com a febre suína no ano passado, que forçou o abate em massa de suínos e a escalada dos preços da carne suína. Não digo isso para acusar a China. Há muitos outros lugares onde são altos os riscos ambientais para mutação e difusão de vírus. A gripe espanhola de 1918 pode ter saído do Kansas; e a África pode ter incubado o HIV/AIDS; e o Ebola certamente começou no Nilo Ocidental, enquanto a dengue parece florescer na América Latina. Mas os impactos econômico e demográfico da disseminação do vírus dependem de já haver fissuras e vulnerabilidades, pré-existentes, no modelo econômico hegemônico.
Não me surpreendeu muito que o COVID-19 tenha sido inicialmente encontrado em Wuhan (embora não se saiba se realmente originou-se ali). Visivelmente os efeitos locais seriam substanciais; e, dado que se trata de importante centro de produção, provavelmente haveria repercussões econômicas globais (embora naquele momento eu não tivesse ideia da magnitude delas).
A grande questão era como ocorreriam contágio e difusão, e quanto tempo perdurariam (até que uma vacina pudesse ser encontrada). Experiência anterior já mostrou que uma das desvantagens da crescente globalização é o quanto se tornou impossível impedir a rápida difusão internacional de novas doenças. Vivemos em mundo altamente conectado, onde quase todos viajam. As redes humanas de difusão potencial são vastas e abertas. O perigo (econômico e demográfico) era que a ruptura durasse um ano ou mais de um ano.
Embora tenha havido queda imediata nos mercados acionários globais quando irromperam as notícias iniciais, aquela queda, surpreendentemente, foi seguida por um mês ou mais de mercados que atingiam novos máximos. Tudo parecia fazer crer que os negócios estavam normais em todos os lugares, exceto na China. Parecia que experimentaríamos uma repetição da SARS que acabou por ser rapidamente contida e teve baixo impacto global, apesar de ter elevada taxa de mortalidade e de ter gerado pânico desnecessário (em retrospectiva) nos mercados financeiros.
Quando o COVID-19 apareceu, a reação dominante foi pintar a síndrome como repetição da SRAS, tornando o pânico redundante.
O fato de a epidemia ter-se propagado na China, que rapidamente e implacavelmente se moveu para conter os primeiros impactos, também levou o resto do mundo a tratar o problema, erroneamente, como algo que se passa “lá”, portanto fora da vista e da mente (reação que foi acompanhada por alguns sinais preocupantes de xenofobia anti-China em certas partes do mundo). A cunha que o vírus meteu na história até ali triunfante da China foi recebida até com alegria em certos círculos do governo Trump. Entretanto, logo começaram a circular histórias de interrupções nas cadeias de produção globais que passavam por Wuhan. Essas primeiras histórias, sim, foram ou quase completamente ignoradas ou foram tratadas como problemas exclusivos de determinadas linhas de produtos ou corporações (como a Apple). As desvalorizações eram locais e particulares, não sistêmicas. Os sinais de queda da demanda dos consumidores também foram minimizados, embora corporações, como McDonalds e Starbucks, que tinham grandes operações dentro do mercado doméstico chinês, tivessem de fechar as portas lá, por um tempo.
A sobreposição do Ano Novo chinês e do surto do vírus mascarou impactos durante todo o mês de janeiro. Essa resposta complacente foi gravemente equivocada.
As primeiras notícias da propagação internacional do vírus foram ocasionais e episódicas, com um surto grave na Coreia do Sul e em alguns outros pontos críticos, como o Irã. Foi o surto italiano, que provocou a primeira reação violenta.
O crash da Bolsa, que começou em meados de fevereiro, oscilou um pouco, mas em meados de março levou a uma desvalorização líquida de quase 30% nas Bolsas em todo o mundo.
A escalada exponencial das infecções provocou uma série de respostas frequentemente incoerentes e, por vezes, de claro pânico. O Presidente Trump fez-se de Rei Canuto ante uma potencial maré crescente de doenças e mortes. Algumas das respostas à crise surpreenderam. Fazer o Federal Reserve baixar taxas de juros diante de um vírus pareceu estranho, mesmo quando se reconheceu que o movimento destinava-se a aliviar os impactos no mercado, não a deter o avanço do vírus. As autoridades públicas e os sistemas de saúde foram apanhados com falta de pessoal, praticamente em todo o mundo.
40 anos de neoliberalismo na América do Norte, do Sul e na Europa deixaram as massas totalmente expostas e despreparadas para enfrentar uma crise de saúde pública desse tipo, apesar de os receios anteriores, da SARS e do Ebola, terem garantido fartas quantidades de aviso, além de lições convincentes sobre o que seria necessário fazer.
Em muitas partes do mundo suposto “civilizado”, governos locais e autoridades regionais/estaduais, que sempre estiveram na linha de frente da defesa em emergências de saúde pública e segurança desse tipo, haviam já sido privados de financiamento, por efeito de uma política de austeridade destinada a financiar cortes fiscais e garantir subsídios às corporações e aos ricos.
A indústria de medicamentos, “Big Pharma”, tem pouco ou nenhum interesse na pesquisa não remunerada sobre doenças infecciosas (como as doenças provocadas por toda a classe de vírus corona, que são conhecidos desde os anos 60). A Big Pharma tampouco investe em prevenção. E tem pouco ou nenhum interesse em investir na preparação para uma crise de saúde pública. Big Pharma só gosta ter de inventar curas. Quanto mais doentes estamos, mais eles ganham.
A prevenção não contribui para aumentar o valor das ações. O modelo business imposto à provisão de saúde pública eliminou qualquer excesso de capacidade de resposta, que seria indispensável em caso de emergência. A prevenção sequer era um campo de trabalho sedutor o suficiente para que justificasse parcerias público-privadas.
O Presidente Trump cortara o orçamento do Centro de Controle de Doenças e dissolveu o grupo de trabalho sobre pandemias no Conselho Nacional de Segurança, no mesmo espírito em que cortou todo o financiamento da pesquisa, inclusive sobre as mudanças climáticas.
Se eu quisesse ser antropomórfico e metafórico, concluiria que o COVID-19 é a vingança da natureza, contra mais de 40 anos de maus-tratos grosseiros e abusivos, sempre contra a Natureza, entregue nas mãos de um extrativismo neoliberal violento e não regulamentado.
É talvez sintomático que os países menos neoliberais, China e Coreia do Sul, Taiwan e Singapura, tenham até agora atravessado a pandemia em melhor forma do que a Itália, embora o Irã desminta a universalidade desse princípio. Houve muitas evidências de que a China lidou bastante mal com a SARS, com muitas opiniões desencontradas e negação inicial, mas dessa vez, afinal, o presidente Xi moveu-se rapidamente para exigir transparência, tanto nos relatórios como nos testes, como fez a Coreia do Sul. Mesmo assim, se perdeu tempo valioso na China (quaisquer poucos dias fazem toda a diferença). Notável, no caso da China, contudo, foi o confinamento da epidemia à província de Hubei, com Wuhan ao centro. A epidemia não se deslocou para Pequim, nem para o Ocidente, nem ainda mais para o Sul. As medidas tomadas para confinar geograficamente o vírus foram draconianas. Pode-se dizer que seria praticamente impossível, por razões políticas econômicas e culturais, replicá-las em outro lugar do mundo. Relatos vindos da China sugerem que os tratamentos e as políticas foram tudo, menos descuidados. Além disso, China e Cingapura impuseram seus poderes de vigilância pessoal em níveis invasivos e autoritários. Mas eles parecem ter sido extremamente eficazes no conjunto, embora os modelos sugiram que, se as ações de combate à doença tivessem sido iniciadas apenas alguns dias antes, muitas mortes poderiam ter sido evitadas. Esta informação é importante: em qualquer processo de crescimento exponencial há um ponto de inflexão a partir do qual a massa em ascensão sai completamente de controle (note aqui, mais uma vez, o significado da massa em relação à taxa). O fato de Trump ter-se atrasado por tantas semanas pode ter custado preço muito alto, em vidas humanas perdidas.
Os efeitos econômicos estão agora fora de controle, dentro da China como fora dela. As rupturas abertas ao longo das cadeias de valor das corporações e em certos setores revelaram-se mais sistêmicas e substanciais do que se pensava originalmente.
Pode acontecer, como efeito de longo prazo, que se encurtem ou diversifiquem as cadeias de abastecimento, ao mesmo tempo que se avança para formas de produção menos intensivas em mão de obra (com enormes implicações para o emprego) e para uma maior dependência de sistemas de produção artificiais inteligentes.
A ruptura das cadeias de produção implica dispensa ou deslocalização de trabalhadores, o que diminui a procura final, enquanto a demanda por matérias-primas diminui o consumo produtivo. Esses impactos no lado da demanda já produziriam, só eles, pelo menos, uma recessão suave.
Mas em outros pontos haveria maiores vulnerabilidades Os modos de consumismo que explodiram depois de 2007-8 fracassaram, com consequências devastadoras. Esses modos basearam-se em se reduzir, para o mais próximo possível de zero, o tempo de turn over do consumo. O fluxo de investimentos nessas formas de consumismo teve tudo a ver com a máxima absorção de volumes de capital exponencialmente crescentes, em formas de consumismo que tinham o mais baixo tempo possível, de rotatividade. O turismo internacional foi emblemático. As visitas internacionais aumentaram de 800 milhões para 1,4 bilhão entre 2010 e 2018. Essa forma de consumismo instantâneo exigiu investimentos massivos em infraestrutura de aeroportos e companhias aéreas, hotéis e restaurantes, parques temáticos e eventos culturais, etc. Esse ponto para acumulação de capital morreu afogado; as empresas aéreas estão perto da falência, hotéis estão vazios, e o desemprego em massa nas indústrias hoteleiras é iminente. Comer fora de casa deixou de ser viável, e restaurantes e bares estão fechando em muitos locais. Até empresas que fornecem comida para levar para casa viraram negócio arriscado.
O vasto exército de trabalhadores contratados por curtos períodos ou ocupados em outras modalidades de trabalho precário está sendo demitido, sem meios visíveis de apoio. Eventos como festivais culturais, torneios de futebol e basquetebol, concertos, convenções empresariais e profissionais e até reuniões políticas em torno de eleições são cancelados. Essas formas de “consumismo dependente de eventos” foram encerradas. As receitas dos governos locais afundaram. Universidades e escolas privadas estão fechando.
Grande parte do modelo que foi a vanguarda do consumismo capitalista contemporâneo tornou-se inoperável sob nas condições atuais. E gorou o impulso em direção ao que Andre Gorz descreve como “consumismo compensatório” (no qual se supõe que trabalhadores alienados ‘recarregariam as baterias’ em férias compradas como pacote fechado numa praia tropical) foi embotado.
Mas as economias capitalistas contemporâneas são 70% ou até 80% impulsionadas pelo consumo. A confiança e o sentimento dos consumidores tornaram-se, nos últimos 40 anos, a chave para mobilizar a demanda efetiva; e o capital tornou-se cada vez mais impulsionado pela demanda e pelas necessidades. Essa fonte de energia econômica não era sujeita a flutuações selvagens (com raras exceções, como a erupção vulcânica islandesa que bloqueou voos transatlânticos durante algumas semanas).
Mas o COVID-19 não está gerando qualquer tipo de flutuação selvagem: está gerando uma ruptura violentíssima no coração da forma de consumismo predominante nos países mais afluentes. A forma espiral de acumulação interminável de capital está colapsando para dentro, de uma parte do mundo para cada outra não contígua. A única coisa que pode salvar aquela espiral é um consumismo de massa financiado e inspirado pelo governo, criado e posto a operar a partir do nada. Isso exigirá que toda a economia dos EUA seja socializada, por exemplo, mas sem se falar de socialismo.
Há um mito conveniente, segundo o qual doenças infecciosas não reconhecem classes ou outras barreiras e fronteiras sociais. Como em muitos desses ditos, há aí alguma verdade. Na epidemia de cólera do século 19, a transgressão das barreiras de classe foi suficientemente dramática para gerar o nascimento de um movimento de saneamento e saúde públicos (que se profissionalizou), que durou até os dias de hoje. Se esse movimento foi concebido para proteger todos, ou só as classes mais ricas, nem sempre ficou claro. Mas hoje a diferença de classes nos efeitos e impactos sociais contam uma história diferente. Os impactos econômicos e sociais são filtrados através de discriminações ‘naturais costumeiras’ que se evidenciam em toda parte.
Para começar, a força de trabalho que se espera que cuide dos números crescentes de doentes é tipicamente altamente sexuada, racializada e etnizada na maioria das partes do mundo. Isso reflete a força de trabalho baseada na classe que se encontra, por exemplo, em aeroportos e outros setores logísticos.
Essa “nova classe trabalhadora” está na vanguarda e suporta o peso de ser a força de trabalho exposta ao maior risco de contrair o vírus, por causa dos próprios empregos; ou de ser demitida sem recursos, por causa da retração econômica imposta pelo vírus.
Há, por exemplo, a questão de quem pode e quem não pode trabalhar em casa (‘home work’). Isso agrava a fissura social, como também a agrava a questão de quem pode isolar-se ou ficar em quarentena (com ou sem remuneração) em caso de contato ou infecção.
COVID-19: “Pandemia de classe, de gênero e racializada”
Assim como vi os terremotos da Nicarágua (1973) e da Cidade do México (1995) como “terremotos de classe” [ing. class-quakes], também o progresso do COVID-19 exibe todas as características de uma pandemia de classe, de gênero e racializada. Por mais que os esforços de mitigação estejam convenientemente camuflados na retórica de que “estamos todos juntos nisto”, as práticas, particularmente de governos nacionais, sugerem motivações mais sinistras.
A classe trabalhadora contemporânea nos EUA (composta predominantemente de afroamericanos, latinos e mulheres assalariadas) enfrenta a terrível situação de ter de ‘escolher’ a contaminação em nome da importância de se manterem características chave do abastecimento (como mercearias abertas), para fugir do desemprego sem benefícios (como adequada atenção à saúde).
O pessoal assalariado (como eu) trabalha em casa e recebe o salário como antes, enquanto os CEOs voam em jatos e helicópteros particulares.
As forças de trabalho na maioria das partes do mundo, há muito tempo foram socializadas para que homens e mulheres comportem-se como bons sujeitos neoliberais (o que significa culparem-se eles mesmos e elas mesmas, ou Deus, se algo der errado; mas nunca ousar sugerir que o capitalismo seja o problema).
Mas mesmo esses bons sujeitos neoliberais podem ver que há algo errado com o modo como se está respondendo à essa pandemia.
Por quanto tempo isso dura?
A grande questão é: por quanto tempo isso dura? Talvez até mais de um ano, e quanto mais tempo durar, maior a desvalorização, inclusive da força de trabalho.
Os níveis de desemprego subirão, quase certamente, para níveis comparáveis aos da década de 1930, na ausência de intervenções estatais massivas que terão de operar a contrapelo do fundamentalismo neoliberal. As ramificações imediatas para a economia, bem como para a vida social diária, são múltiplas. Mas nem todas são más.
Na medida em que o consumismo contemporâneo tornava-se excessivo, aproximava-se do que Marx descreveu como “consumo excessivo e insano, significando, por sua vez, pelo monstruoso e bizarro, a queda” de todo o sistema. A imprudência desse consumo excessivo desempenhou papel importante na degradação ambiental. O cancelamento dos voos aéreos e a restrição radical do transporte e da circulação têm tido consequências positivas no que diz respeito às emissões de gases com efeito de estufa. A qualidade do ar em Wuhan melhorou muito, como também em muitas cidades dos EUA. Os locais de ecoturismo terão um tempo para se recuperar do pisoteamento feroz. Os cisnes voltaram aos canais de Veneza. Na medida em que o gosto pelo consumo excessivo imprudente e sem sentido é refreado, pode haver alguns benefícios a longo prazo. Menos mortes no Monte Everest podem ser uma coisa boa. E embora ninguém o diga em voz alta, o viés demográfico do vírus pode acabar por afetar as pirâmides etárias, com efeitos a longo prazo nos encargos da segurança social e no futuro da “indústria dos cuidados”. A vida quotidiana vai abrandar, e para algumas pessoas será uma bênção. As regras sugeridas de distanciamento social podem, se a emergência continuar por tempo suficiente, levar a mudanças culturais. A única forma de consumismo que quase certamente será beneficiada é o que eu chamo de economia “Netflix”, que, seja como for, destina-se a apertadores de controle remoto, que vivem aos saltos, indo e vindo, de série em série.
Na frente econômica, as respostas têm sido condicionadas pela modalidade de êxodo do crash de 2007-8. Isso implicou uma política monetária extremamente frouxa, combinada com o salvamento dos bancos, complementada por aumento dramático do consumo produtivo mediante expansão massiva do investimento em infraestruturas na China. Nada disso pode ser repetido na escala necessária. Os pacotes de salvamento criados em 2008 concentraram-se nos bancos, mas também implicaram a nacionalização de fato da General Motors. Talvez seja significativo que, diante do descontentamento dos trabalhadores e do colapso da demanda do mercado, as três grandes empresas automotivas de Detroit estejam fechando, pelo menos temporariamente.
Se a China não pode repetir seu papel de 2007-8, o fardo da saída da atual crise econômica desloca-se agora para os Estados Unidos, e aqui está a ironia final: as únicas políticas que funcionarão, tanto econômica quanto politicamente, são muito mais socialistas do que qualquer coisa que Bernie Sanders possa propor; e esses programas de resgate terão que ser iniciados sob a égide de Donald Trump, presumivelmente sob a máscara de “Fazer a América Grande Novamente”. Todos aqueles republicanos que tão visceralmente se opuseram ao resgate de 2008 terão de reconhecer a derrota, ou desafiar Donald Trump. Esse, se ainda conta com se salvar, cancelará as eleições por motivo de calamidade nacional e proclamará um império presidencial para salvar o capital e o mundo do quebra-quebra e da revolução.
Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga
Claude Fahd Hajjar