1 DE MARÇO DE 2016
O Conselho da Paz dos Estados Unidos (USPC), membro do Conselho Mundial da Paz, entrevistou Bashar Ja’afari, representante permanente da Síria nas Nações Unidas, em 19 de fevereiro, pouco antes do acordo para o cessar-fogo no país árabe, de 23 de fevereiro. Ja’afari é também o chefe da delegação síria nas negociações denominadas “Genebra 3”, que em 27 de fevereiro inauguraram o cessar-fogo com perspectivas de compromisso pelo combate ao terrorismo e a unidade nacional em torno da reconstrução da Síria. Leia a entrevista a seguir, que aconteceu em Nova York.
- (USPC): Com sinceros agradecimentos por nos permitir ter essa entrevista com você, apesar de sua agenda extremamente atribulada, por favor comece por dar-nos uma visão global do estado das coisas no que diz respeito à crise síria hoje.
Dr. Ja’afari: Deixe-me informá-lo tão simples quanto possível. Se houver um ponto de viragem na situação agora, será o seguinte: Os inimigos da Síria passaram da fase I à Fase II. A Fase I foi de algum modo limitada a uma guerra por procuração na Síria. A Fase II é definitivamente uma guerra direta. E é assim que podemos interpretar ameaças do governo turco de envolvimento militar direto dentro da Síria. Os sauditas, é claro, devem ser tidos em conta na mesma linha. A Jordânia nunca parou de enviar terroristas a partir do sul. Os israelenses estão profundamente envolvidos por lidar com a Frente Al-Nusrah e tratar os seus homens feridos nos hospitais israelenses, como você sabe. Assim, se não houver nada de novo agora, estariam se movendo a partir da Fase I à Fase II, da guerra por procuração para a guerra e envolvimento militar direto nos assuntos internos da Síria.
A delegação russa (na ONU) pediu esta manhã consultas urgentes no Conselho (de Segurança) para discutir as ameaças turcas de envio de tropas turcas à Síria. A reunião acontece esta tarde. Essa seria a segunda reunião convocada pelos russos entre os membros do Conselho de Segurança no prazo de 48 horas. Ontem eles convocaram uma reunião e hoje eles chamam para outra reunião. Moscou está definitivamente muito ciente da interferência militar e ameaças turcas porque os russos, como se sabe, estão monitorando a situação muito de perto, com as nossas próprias forças aéreas.
A questão principal seria por que os turcos e os sauditas estão fazendo isso. É claro que o Catar está se escondendo no meio. Os jordanianos estão fazendo o seu negócio sujo como sempre, mas em silêncio. Então, nós falamos sobre os mesmos grupos, mas que desta vez estão fazendo as coisas descaradamente. A resposta é: eles ficaram histéricos após os graves avanços militares de nosso exército, porque conseguimos limpar a cidade de Aleppo e chegar à fronteira turca. Nosso Exército libertou, esta manhã, o último foco de terroristas na fronteira sírio-turca, na governadoria de Latakia. E agora estamos limpando a fronteira sírio-turca na governadoria de Idlib, que é o centro dos terroristas internacionais reunidos pelo regime turco na fronteira sírio-turca. Aleppo será liberada muito em breve. O mesmo no sul: Muitas ofensivas terroristas no sul falharam. Nosso exército tem a vantagem no sul, junto à fronteira com a Jordânia, bem como na área de separação na zona ocupada de Golã, da Síria, e Israel.
Então, estão ficando histéricos porque temos conseguido sérios avanços militares no terreno, com a ajuda de nossos aliados, os russos, iranianos, e as forças de resistência, isto é, o Hezbollah, e outras forças nacionais no terreno. Encurralado por esses avanços militares no terreno, o governo turco e o governo saudita reagiram de forma muito agressiva, tentando levar a situação a um grau mais elevado, de modo que seus aliados – os estadunidenses, os britânicos, os franceses – seriam obrigados a acomodar suas preocupações. Mas eles falharam porque mesmo os Estados Unidos, mesmo a Grã-Bretanha, mesmo a Alemanha e até mesmo a França pediram que os turcos não agravem (a confrontação) e não bombardeiem os curdos sírios junto à fronteira.
De alguma forma a políticas equivocadas dos sauditas e dos turcos relativas à Síria levaram a um impasse, a um nó, no terreno, do lado dos terroristas, quero dizer. Parece que as intenções reais de Riad, Ancara e Amã, assim como de Israel, é sabotar e minar as chances de sucesso em Genebra no âmbito daquilo que chamamos as conversações indiretas sírias, conhecidas como Genebra III. Os sauditas não foram entusiastas e ainda não são entusiastas de qualquer solução política para a crise síria. Eles ainda estão favorecendo a opção de enviar torrentes de terroristas para a Síria através do território turco. Os turcos, é claro, estão encarregados dos assuntos logísticos e de formação desses mesmos terroristas; o Catar está pagando a conta, também, e está cobrindo todo o cenário através da emissora Al-Jazira e seus canais afiliados. É uma guerra aberta no momento. Não há mais desculpas para dizerem que eles não sabem o que está acontecendo – todos sabem o que está acontecendo.
Mesmo muitos relatórios do Conselho de Segurança afirmaram que existem milhares de mercenários estrangeiros operando na Síria. Sabemos até mesmo suas nacionalidades. Nós fornecemos às subcomissões do Conselho de Segurança que lidam com o combate ao terrorismo registros e fotos desses estrangeiros – nomes, nacionalidades, todos os detalhes, milhares de nomes e fotos. Claro que aqui estamos falando daqueles que foram mortos pelo Exército sírio. Os nomes são limitados apenas àqueles que estão operando dentro do território sírio. Mas há ainda outros milhares que operam na Síria e no Iraque.
É por isso que todo mundo está encurralado atualmente, porque o jogo acabou. Sem mais mentiras ou propaganda, pode acontecer. Mesmo a CNN e outros meios de comunicação estadunidenses e europeus falam sobre o que está acontecendo na Síria. Temos recebido em Damasco muitas delegações parlamentares franceses, todas criticando as políticas equivocadas do governo francês em relação à Síria. Recebemos quase semanalmente delegações turcas, vindo de Ancara e Istambul, criticando as políticas do governo Erdogan. Enquanto eles estão na Síria, em Damasco mesmo, eles aparecem na TV síria e criticam as políticas turcas equivocadas.
A explosão de um carro bomba matou mais de 15 pessoas na cidade síria de Homs, em dezembro de 2015. Foto: AFP
Então, estamos em um ponto de viragem no momento. Ou vamos para a armadilha da escalada procurada pelos sauditas, israelenses e os turcos, ou vamos pela solução política no quadro de Genebra. Mas para este acordo político, é preciso cumprir primeiro os pré-requisitos de Viena II e a Resolução do Conselho de Segurança 2254, que diz que De Mistura (enviado especial da ONU para a crise síria) deve elaborar duas listas: de quem é terrorista e quem é oposição. Se ele não cumprir esta missão sagrada, nada iria deslanchar. Nada iria deslanchar porque as pessoas estão buscando misturar as cartas e pescar em águas turvas, como se diz, de modo que ninguém sabe quem é terrorista e quem é oposição.
Como conciliar estas negociações, por um lado, e as tentativas militares turcas e sauditas intensificadas para intervir na Síria, por outro lado? Parece que há muito eles pensavam ter a vantagem na guerra, estavam dispostos a entrar em negociações, mas agora que o Exército sírio está tendo a vantagem na guerra, eles estão mudando para o que você chamou de Fase II . Será que eles ainda estão dispostos a negociar sob essas condições transformadas?
Não, não. Como eu disse no início, a escalada turco-saudita deve-se principalmente ao fato de que eles estão histéricos. O Exército sírio alcançou vitórias em todas as frentes, junto à fronteira turco-síria, bem como a fronteira sírio-jordaniana e a fronteira sírio-israelense. Este tipo de escalada tem apenas uma justificação: principalmente o fracasso da política turca, fracasso da política saudita e o fracasso da política jordaniana. Mas estes três países vizinhos da Síria não teriam tido a coragem de assumir essa escalada ao nível mais alto se Washington lhes tivesse dito para não fazê-lo.
Então, o mestre do jogo é Washington. Washington deve dizer a esses aliados que já basta. Que brincar com o sangue sírio e cometer este derramamento de sangue na Síria chegou a um grau intolerável e deve parar. Precisamos nos engajar em uma solução política, mas para nos engajarmos nesse acordo político precisa-se de parceiros credíveis. Não é preciso lidar com elementos traiçoeiros, agentes e espiões. É preciso alcançar um acordo político com a oposição nacional – pessoas que se importam com resgatar o seu país dos mercenários e terroristas vindos de todo o mundo com a ajuda do dinheiro dos Estados do Golfo e da logística dos turcos. É por isso que eu disse que estamos em um ponto de inflexão: ou vamos para uma solução política ou vamos para escalada militar.
Por que a Arábia Saudita insiste tanto em um confronto com a Síria?
Devemos também lançar alguma luz sobre as razões que motivaram os sauditas a abrir a caixa de Pandora, o que significa ameaçar enviar tropas para a Síria. Os sauditas fracassaram no Iêmen catastroficamente, como você sabe. Hoje, as forças iemenitas têm centenas de prisioneiros sauditas. Doze oficiais de alto nível sauditas dos quartéis-generais assinaram uma carta conjunta ao príncipe pedindo-lhe para não entrar em qualquer outra desventura militar na Síria, porque eles são incapazes de continuar sua agressão contra o Iêmen. Quando os sauditas afirmam erroneamente que gostariam de enviar tropas para a Síria, acho que eles são loucos ou meros sonhadores, ou eles são políticos amadores. Mas em todo casos este vai ser outro escândalo a ser somado ao escândalo do Iêmen e ao escândalo iraquiano. Os sauditas têm falhado em todas as frentes – Iêmen, Síria, Iraque, Palestina – e agora perderam a confiança de todos, exatamente como Erdogan.
É por isso que os sauditas estão agora tentando reunir outra onda de mercenários internacionais – e chamam-lhes a “Aliança Islâmica”, que não é islâmica nem é uma aliança, mas uma continuação da recolha de lixo de todo o mundo que chamam de “forças islâmicas”. Na verdade, os sauditas nunca pararam de enviar terroristas à Síria sob esse rótulo de grupos “islâmicos”. Portanto, não há novidade a este respeito, a não ser que o nível de loucura dos sauditas atingiu um alto grau de irresponsabilidade.
O regime saudita parou de pagar salários aos médicos na Arábia Saudita. Oficiais de alto nível, como eu disse, são energicamente contra qualquer desventura militar após o fracasso no Iêmen. Eles têm enormes problemas domésticos na parte oriental da Arábia Saudita, bem como em outros lugares. Como você sabe, o preço do petróleo caiu para um nível baixíssimo. Os sauditas estão quase em falência no momento. Estão enfrentando enormes desafios, econômica, política e socialmente, por causa da violação dos direitos humanos, como você sabe, e a execução do Sheikh Nimr Baqir al-Nimr, etc., etc. Estão somando fracasso após fracasso e ainda são teimosos, insistem em cometer os mesmos erros, vez após outra. Mas desta vez, como o jornal britânico The Independent colocou ontem, a Arábia Saudita vai ser desintegrada em breve.
Voltando para negociações reais, sabemos que foram postergadas desde o início. Quais são os obstáculos para este processo nesta fase? O que está impedindo as negociações de realmente irem pra frente?
Em primeiro lugar, não se trata de negociação. Trata-se de discussões indiretas, conversações indiretas. Essa foi a opção escolhida pelo próprio De Mistura, o enviado especial. Ele queria que fosse assim, e nós concordamos. Este é o número um: não se trata de negociação; trata-se de conversações indiretas.
Em segundo lugar: tudo foi muito mal organizado em Genebra III. Quando fomos para lá, nos engajamos imediatamente após a nossa chegada em Genebra. Duas horas após o desembarque no aeroporto de Genebra, fomos ao nosso encontro com De Mistura no Palais de Nations, que é sede das Nações Unidas. Mas a outra delegação, que é o chamado grupo de Riad, não chegou até quatro dias depois. E quando eles chegaram, não foram até De Mistura. Ele foi até eles no hotel.
Além da suposta delegação do grupo de Riad, cujos nomes foram encaminhados para De Mistura, outro homem veio de Riad com 102 outras pessoas a bordo de uma companhia aérea saudita. Eles nem sequer observaram ou respeitaram o quadro – a forma, esqueça a substância – dessas conversações indiretas. Então, as coisas não decolaram porque a organização foi muito ruim. O enviado especial não tratou todos em pé de igualdade, em acordo com as disposições da resolução 2254 e a Declaração de Viena. Ele mimou o grupo de Riad em detrimento de outras delegações. Ele não se classificava, como os outros, como delegações. Ele considerou a delegação de mulheres como conselheiras para ele. Considerou a delegação da sociedade civil como conselheiros. Não lidou com a oposição interna nacional vinda de Damasco. Não lidou com o grupo de Moscou e o grupo de Cairo em pé de igualdade com o grupo de Riad. Então, ele cometeu muitos erros e estava sob enorme pressão de Washington, dos sauditas, dos turcos e dos franceses. É por isso que as coisas não decolaram, porque não havia combustível para esse míssil de conversações indiretas em Genebra III decolar.
Conferência sobre a situação da Síria em outubro de 2015, em Viena. Foto: EPA
Estivemos com ele duas vezes, falando oficialmente. Sentei-me com ele duas vezes em reuniões oficiais, com a minha delegação, claro. Ele reconheceu isso e disse que o governo sírio foi disciplinado, organizado, etc., etc. Assim, ele elogiou a nossa participação. Mas, uma e outra vez, ele veio a Genebra, convidou os terroristas para vir a Genebra, o homem da Jaysh al-Islam (Exército do Islã), que veio de Riad com o grupo de Riad. É uma organização terrorista, mas ele ainda insistiu em convidar esses terroristas. Ele convidou outro terrorista do Ahrar al-Sham (Harakat Ahrar ash-Sham al-Islamiyya, “Movimento Islâmico dos Homens Livres do Levante”), também, que trabalha para os turcos. Havia muitos escândalos e todos esses escândalos levaram a este impasse e encruzilhada. Então as coisas não decolaram e não tivemos quaisquer discussões formais. Como ele as chamava, as conversações exploratórias – eu as chamei conversações preparatórias – para Genebra III não começaram em Genebra.
Qual é a chave para abrir esse bloqueio? Quem tem a chave?
De Mistura tem a chave. Washington tem a chave. Os britânicos, os franceses, os russos, todo mundo tem a chave, porque eles devem elaborar a lista de quem é terrorista e quem é oposição. Isso é a chave de qualquer sucesso.
Você acha que haverá qualquer acordo sobre isso?
Eu espero, eu espero. Acho que lá (De Mistura) entendeu esse ponto. Ele compreendeu que, sem identificar quem é terrorista e quem é oposição, as coisas não podem decolar. Espero que ele tenha entendido.
Então, como você vê o futuro a partir daqui?
Não sabemos ainda. Como eu lhe disse, se o regime turco insistir em enviar tropas para a Síria, isso significaria uma enorme escalada na área, que provocaria não só uma guerra regional, mas uma guerra internacional – uma guerra mundial, infelizmente.
Erdogan está brincando com fogo, com todo mundo. Seu primeiro-ministro criou e inventou essa política errada chamada “política problema zero” com os vizinhos da Turquia. Agora, ele acabou tendo uma “política de completo problema” com todos os vizinhos da Turquia. Ele também tem péssimo relacionamento com seu melhor aliado, Washington, com os europeus – França, Grã-Bretanha, Alemanha, Chipre, Armênia, Irã, Iraque, com a Síria e quem mais? Bulgária. Nenhum vizinho da Turquia tem uma relação normal com Ancara. Então, Erdogan não pode estar certo e todo mundo errado.
O regime turco chegou a chantagear os europeus com este fenômeno chamado de “refugiados sírios”, por exemplo. Ele deixou os fluxos dos chamados imigrantes invadirem a Europa, a fim de chantagear os europeus: ou vocês me permitem estabelecer esta zona de exclusão aérea na parte norte da Síria, ou eu vou inundá-lo com os refugiados – não apenas da Síria, porque sírios são apenas 20 por cento daqueles que foram para a Alemanha, mas de todo o mundo: afegãos, eritreus, sudaneses, todo mundo afirma que é sírio hoje em dia. Todos são recolhidos pelos turcos na Turquia e enviados para a Europa como refugiados sírios.
A política turca fracassou. A chantagem acabou. Agora, eles estão escalando (a tensão), militarmente falando e devem assumir a responsabilidade pelas consequências de seu ato. Mas seus melhores aliados devem detê-los. Se queremos salvar, manter e resgatar a paz em todo o mundo, a pressão – pressão séria – deve ser exercida sobre Erdogan e seu primeiro-ministro.
Mas a Turquia é um Estado membro da OTAN. O que essas potências ocidentais estão fazendo agora? Qual é o seu papel neste processo? Sauditas e turcos não podem realmente estar agindo tão independentes.
Graças a Deus a OTAN não engoliu as políticas turcas relativas à Síria. A OTAN até mesmo negou qualquer assistência ao Erdogan. A Alemanha retirou os mísseis da fronteira sírio-turca. A OTAN não está feliz com os malfeitos de Erdogan na área. E este é um bom sinal. Mas, ainda assim, as coisas podem não ser limitadas e restritas a esta pressão política. Washington e os europeus devem dizer a Erdogan que já basta. Ele está ameaçando desencadear uma terceira guerra mundial.
O que as pessoas nos países ocidentais, especialmente nos Estados Unidos e na Europa, podem fazer para pressionar por uma solução política para a crise síria e evitar mais uma a guerra, desta vez mais devastadora?
Os estadunidenses e europeus devem cuidar do seu próprio interesse. Se os turcos entrarem na Síria, um confronto militar turco-russo vai entrar em erupção imediatamente. Um confronto militar sírio-turco vai entrar em erupção imediatamente. Os iranianos não ficariam em silêncio. Você verá que o Egito não vai permanecer em silêncio. Iraque não vai ficar quieto. Vai ser um grande problema para todos. Então, a questão principal: É do interesse de todos não interferir? Não exercer pressão sobre os sauditas e os turcos a este respeito? É do interesse dos EUA provocar uma terceira guerra mundial com a Rússia agora? Acho que não.
Muito obrigado Dr. Ja’afari.
Fonte: Cebrapaz
Tradução: Moara Crivelente
Publicado no site Resistência