Por Fedra Rodríguez Hinojosa.*
Parece quase infantil afirmar que a guerra afeta todas as esferas sociais (inclusive as artes), dado o seu caráter axiomático. No entanto, essa asseveração perde sua obviedade quando começamos a perscrutar os efeitos de ações bélicas dentro de cada cultura e de cada uma das esferas em questão. As noções de justiça e reconstrução, bem como o olhar em direção ao futuro e à reavaliação de valores morais e sociais, não serão as mesmas para todas as comunidades.
Desde o início da revolta contra o Presidente Bashar al-Assad, em março de 2011, a dor e o silêncio se mesclam às incertezas e esperanças na Síria de hoje, um panorama que se reflete de modo variado num dos âmbitos que atua como instrumento de mudança social: a literatura.
Escritores sírios expatriados ou ainda em território nacional tomam diferentes caminhos e posturas, mas convergem na produção de novos movimentos literários e meios de expressão, alternando memória social, escritos breves e silêncio. Mas este último, para alguns deles, não significa ausência, pelo contrário, é uma forma de recobrar as forças e repensar convicções. Ao sair da reticência, produzem textos curtos, poesias e documentários dirigidos aos conterrâneos e, principalmente, à comunidade internacional, considerada omissa e até mesmo cínica, como declara Fawwaz Haddad, autor de God’s Soldiers (2010), romance ainda sem tradução no Brasil, que descreve a busca de um pai pelo filho que se juntou às milícias da Al-Qaeda. Sem se colocar a favor ou contra o regime de al-Assad, Haddad defende diretamente a discussão aberta do futuro dos países árabes, sempre oculto atrás das cortinas da política global.
Dentro dessa perspectiva, o autor Khaled Khalifa também destaca a omissão do Ocidente diante das tragédias vividas pelo Oriente Médio. Mais ainda, em entrevista a Anders Hastrup, do Louisiana Museum of Modern Art Channel, Khalifa critica a postura de políticos e jornalistas ocidentais que desejam ver o conflito na Síria “com etiquetas negras, sem ver as outras cores da revolução”. Embora seja contra o regime atual, pois viu seu livro In Praise of Hatred (2006) ser proibido no país, o escritor nascido em Aleppo acredita que apoiadores ou oposicionistas devem repensar conceitos sem influências externas para que, após os tempos de tormenta, haja o nascimento de uma nova Síria. Ao invés de amaldiçoar a revolução ou simplesmente falar dela, os intelectuais, junto a outros elementos da sociedade, precisam encontrar um ponto de convergência para superar a crise, evitando que o turbilhão da política internacional envolva ainda mais o mundo árabe, inviabilizando sua recuperação imediata.
No que diz respeito à produção literária desde 2011, há um consenso: não é possível escrever romances agora. Não há espaço ou tempo para longas digressões ou para o realismo mágico que costuma pontuar a literatura síria contemporânea. A escrita de um romance pode levar anos e as considerações geradas a partir de uma guerra não são um material para ser lançado de forma imediata, como algo corriqueiro. Prova disso é que a maioria dos romances publicados nos anos 2000 e mais recentemente têm como pano de fundo as mudanças e períodos de transição do país, vividos entre 1960 e 1990, algo que poderíamos chamar de “prosa retroativa”. Por exemplo, In the Eye of the Sun (2011), de Ibtisam Ibrahim Teresa, relaciona eventos do passado com o presente. Igualmente, o polêmico livro de Khaled Khalifa, que levou 13 anos para ser escrito, tem como cenário a subida ao poder de Hafez al-Assad, sua confrontação com a Irmandade Muçulmana e o massacre em Hama, em 1982.
Fica claro, então, que agora é necessário agir de forma mais rápida e direta. Assim, Khalifa, Haddad, Nihad Sirees e Samar Yazbek, apenas veem a possibilidade de realizar documentários, escrever em blogs ou produzir poesias e narrativas curtas. Aliás, muitas dessas poesias são levadas às ruas ou escritas em cantos das principais cidades, como um chamamento à mudança, à exaltação da identidade nacional. Sirees também crê que as redes sociais terão papel importante neste momento; ele mesmo já publicou contos em sua página no Facebook, chamando a atenção para o drama atual de seu país.
Por sua vez, Yazbek, autora de Woman in the Crossfire: Diaries of the Syrian Revolution (2012), diz que seus esforços não se limitam ao campo das artes. Fundou em 23 de junho de 2012, em Paris, a Soriyat for Development, uma ONG dirigida às mulheres da Síria, para que tenham voz ativa no espaço cultural e político.
Então a prosa longa não terá mais espaço na Síria até o fim da guerra, concluiriam os mais apressados. A resposta é direta: a literatura se recria e, portanto, continuará de qualquer modo dando voz aos filhos da guerra.
*Doutora em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade de Sevilha, Espanha, Fedra Rodríguez Hinojosa atua como tradutora, redatora, revisora e pesquisadora acadêmica no campo da Literatura e Cultura Árabe. Integra o corpo editorial e a equipe de pareceristas de revistas e sites como a (n.t.) Revista Literária em Tradução, a Catalysta Ed., de Nova York, USA e a African Studies Review, da Universidade de Massachusetts, USA.
Como fazer para ter acesso a esta produção literária em língua francesa? Seria a oportunidade de contribuir, pelo ensino da literatura, curso de literatura francófona, por exemplo, curricular, ou com mini cursos ou palestras…Sou coordenador de um centro de pesquisas em Literaturas e culturas franco-afro-americanas que tem a lingua francesa como ponte, mot de passe.