9/4/2019, Andrei Martyanov, Blog.
A essa altura, ninguém mais se deveria surpreender pelas guerras comerciais ensandecidamente declaradas pelo governo Trump a torto e a direito. Em muitos aspectos o modo de Trump abordar questões de relações e comércio internacional faz lembrar as convulsões de um paciente gravemente ferido, numa Unidade de Tratamento Intensivo, e não deve ser tratado como se fossem golpes de caso pensado. Como já escrevi várias vezes, Trump não tem estratégia. Daí mais uma vez, aí está, com ameaças e uvas verdes:
O que a matéria não diz, claro, é que a reação dos EUA é sintomática, e visa a mitigar o efeito do gorila de várias toneladas que está na sala – o 737 Max da Boeing, absolutamente FUBAR [Fuck*d Beyond All Repair, “Fodido além de qualquer possibilidade de conserto”]. Tudo só tem a ver com Boeing e Airbus:
Não importa como se deseje explicar a situação, não há como duvidar de que a Airbus beneficiou-se da situação do 737 Max a qual, por piores que tenham sido as centenas de mortos em dois acidentes de avião, foi ainda exacerbada pelo comportamento inepto do pessoal de Relações Públicas da empresa Boeing, que deixou a questão rolar por tempo demais, para que se pudesse cogitar de recuperação sensível; e tentou fingir que resolvia alguma coisa com publicidade máxima – em vez de admitir que havia problema com 737 Max. A Boeing acabou aprisionada no desastre de Relações Públicas, que está tendo ramificações graves para a principal fonte de dinheiro da Boeing, e não importa o que digam os especialistas, reais ou pressupostos. Nada, até aí tem qualquer coisa a ver com aqueles proverbiais “subsídios”. Sejam quais forem as percepções e as versões midiáticas – a Boeing também é “subsidiada” por contratos com o governo. Nada de errado nisso. De onde se vê que toda essa conversa de “subsídios” nada mais é que conversa fiada de ‘relações públicas’ para consumo dos fundamentalistas pró-livre comércio. Os EUA acusarem a Airbus de se beneficiar de subsídios é o clássico roto falando do rasgado. Melhor faria a Boeing, se lembrasse sua “vitória” sobre a Airbus.
Desnecessário dizer, os aviões comerciais da Boeing são item principal, ao lado de automóveis e semicondutores, da pauta de exportação industrial global high-tech dos EUA. São também artigo prestigioso, suporte da imagem de dominação econômica dos EUA. Agora foi atingido com força, um grande golpe; e Trump decidiu lidar com a questão segundo as melhores tradições dos magnatas espertalhões do mercado imobiliário em New York. Obviamente a comunidade global não opera sobre esses princípios, e Washington tem recebido ‘recados’ sobre isso, com frequência crescente. É quando entra a Rússia.
A Rússia pode oferecer à Turquia o jato de combate SU-57? É possível. Erdogan diz que a Turquia muito apreciaria ter, no final, o S-500. Assim sendo, sabe-se lá o que Putin e Erdogan discutiram a portas fechadas, mas é claro que mesmo o S-400 basta para vedar os céus sobre a Turquia protegendo o país de qualquer ataque, ainda que Ankara ou Istanbul venham a ser bombardeadas pelos próprios aliados da Turquia na OTAN. Essa questão, com a compra do S-400 pela Turquia, contudo, é apenas um de vários agentes gigantescamente irritantes para os EUA, dentre os quais está a compra, pelo Egito, dos SU-35s, contra a qual virão as sanções dos EUA, com certeza absoluta; ou a Índia, a qual, além de comprar os amaldiçoados S-400, acrescentou hoje uma nova fornada de tanques T-90, às 464 unidades já contratadas (em ru.). Mais do que suficiente para dar cobertura à Rússia.
Mas aí é que está: Trump e seus conselheiros agem como se os EUA fossem ainda a usina de produção industrial que foram logo depois da 2ª Guerra Mundial. Aqueles EUA já não existem, desapareceram para sempre. Sequer os EUA que havia nos anos 1990s sobreviveram até hoje.
Trump pode começar por fazer uma avaliação acurada do estado em que está a economia dos EUA, economia real, claro, para compreender o processo pelo qual os EUA converteram-se no maior importador de bens manufaturados em todo o planeta – 2,1 trilhão.
Mas, claro, há o lado político negativo de todas estas guerras comerciais – as pessoas, pelo mundo, não são estúpidas: muita gente vê como sinal de fraqueza essas convulsões, o comportamento errático e as ameaças que os EUA vivem de fazer. Nisso, acertam perfeitamente: são, sim, sinal de fraqueza.
Nem tarifas nem guerras comerciais ajudarão a tirar os EUA do profundo buraco econômico em que afundou. Trump parece não compreender isso. Tampouco parece compreender o processo pelo qual os EUA vão tombando na irrelevância geopolítica, frente ao fato consumado da multipolaridade e de a Eurásia ter encontrado sua específica via de desenvolvimento. Nesse desenvolvimento, só restam duas opções aos EUA: integrar-se ou tentar sabotar o desenvolvimento. Já vimos em que direção os EUA caminham. Pode acontecer de isso mudar, mas não enquanto estiverem no poder as ‘elites’ norte-americanas que lá estão hoje.
Será que pelo menos veem o ponto a que eles próprios chegaram economicamente e geopoliticamente? Alguns, claro, veem e sabem bem disso. Mas nem os que sabem – nem esses têm a habilidade, o intelecto e a paixão necessárias para mudar o rumo dos EUA, pô-los na melhor direção com vistas a garantir as melhores condições possível para a maioria do povo dos EUA. Daí o bullying, as ameaças, a violência, os braços e pernas quebrados, os mortos de fome, as sanções, que continuam e continuarão, a cada dia com menos efeito e resultados mais pífios.
A questão principal hoje, crucial, é impedir – tão logo os que ainda estão no poder nos EUA compreendam completamente que perderam a força, a ‘pegada’ – uma guerra global, que os EUA podem começar, como alguma espécie de último recurso.
Meu palpite, e não passa disso, palpite, é que Putin ainda não falou sobre todas as novas armas russas. Algo me diz que a temporada das surpresas apenas começou a começar.
Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga