7/12/2020, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation
“Se você tomar a pílula azul, continuará nessa vida de trabalho sem fim.”
(Imagem) Pílula azul = Trump / Pílula vermelha = Biden
(Legenda) “E a pílula vermelha…?”
“Mesma coisa, sabor morango.”
(Vídeo, no Twitter)[1]
Biden diz que quer – mediante diplomacia – conseguir um acordo nuclear com o Irã, quer dizer, um JCPOA ‘Plus + Plus’. Europeus, desesperados concordam e promovem essa aspiração. Mas os ‘protocolos do acordo’ que sua ‘Equipe A’ herda da era Obama já traziam em si sementes de fracasso.
E agora, quatro anos passados, o fracasso já parece garantido – em primeiro lugar pelos reféns que Biden já ofereceu à boa sorte; em segundo (e motivo decisivo), pelo fato de que o ‘mundo’ hoje já não é o ‘mundo’ de antanho. A ‘cadeira’ à cabeceira da mesa da liderança global já não é ‘direito adquirido’ dos EUA. Israel já não é a mesma Israel. E o Irã – certamente – já não é o mesmo Irã (que era no início da iniciativa Obama). O mundo avançou. Os últimos quatro anos não podem ser simplesmente expurgados como aberração sem consequências para os primeiros protocolos e que permaneceriam válidos hoje.
A marca que Trump imprimiu nos EUA e no mundo não pode ser ‘normalizada’. Metade dos EUA, nos últimos anos, passou a ser de defensores de “América em primeiro lugar”, como Pat Buchanan destaca, creia o establishment o que quiser. No confronto entre nacionalismo e globalismo, o globalismo perdeu metade dos EUA.
Se seguidos rigorosamente, os protocolos – procedimentos implícitos – para ‘um acordo’, no ambiente que se tem hoje, inevitavelmente levarão Biden ou Harris, ou quem seja presidente, até o ponto final do protocolo: As a negociação não produzir o resultado necessário, a ameaça de uma opção militar voltará à mesa.
Para ser bem claro, há quem espere por isso. Muita gente de juízo são, não quer esse resultado. É provável que, nesse estágio inicial, a Equipe ‘A’ de Biden apenas espere que não se chegue àquele resultado. Mas esperar não é estratégia.
O que são os tais protocolos, e quais são essas mudanças globais separadas, que levarão Biden pelo ‘túnel’ que, afinal, levará à ‘opção militar’ – a qual, afinal, nem chega a ser ‘opção verdadeira’?
Os protocolos remetem à antiga ‘doutrina Wohlstetter’ que enunciava que, dado que não havia diferença técnica essencial entre enriquecimento [de urânio] para finalidades pacíficas e enriquecimento para utilização em armas, ‘atores não dignos de confiança’, como o Irã, tinham de ser impedidos de enriquecer [urânio] sempre – em todos os casos. Muitos ainda hoje, no establishment da política exterior dos EUA influenciado por Israel, ainda seguem a visão de Albert Wohlstetter.
Alguns iranianos discordaram dessa doutrina: Não, garantiram ao Ocidente (ainda em 2003): monitorado e verificado, o baixo-enriquecimento poderia ser solução confiável que vedaria a necessidade da ‘opção militar’ (Obama, naquele momento, procurava escapar da ‘opção militar’; ao mesmo tempo, Netanyahu advogava a favor de ataque exclusivamente israelense, ao Irã).
O ataque pretendido por Netanyahu só foi evitado (em 2009) graças à férrea oposição do então chefe do Mossad – o temível Meir Dagan. Até que, finalmente, Obama aceitou a ideia do enriquecimento limitado verificável, e aceitou limitar o tempo do ‘teste’, com as chamadas Sunset Clauses, as quais, esgotado o prazo, e sem infração, derrubavam as limitações.
Mas a sombra de Wohlstetter persistia, e levou os protocolos de Obama a aceitar ação militar como resposta devida, caso o Irã, no prazo de 12 meses se encaminhasse para algum avanço suposto nuclear (porque o Irã seria ‘ator não dignos de confiança’).
Certo ou errado, já naquele momento Obama compreendeu que a dinâmica do protocolo podia leva-lo para uma opção militar (com ou sem participação de Israel).
O que, afinal, tornava tão problemáticos os protocolos? O ponto era que jamais deram qualquer atenção às reais questões subjacentes, e essas, para começo de conversa, tornaram-se hoje muito, muito, muito mais agudas. Essas questões permanecem ‘não ditas’, por mais que sejam muito presentes.
A primeira delas é que ninguém – inclusive Israel – acredita que armas nucleares, sejam quais forem, sejam ameaça real no Oriente Médio. A Região é pequena demais – um amálgama apertado de seitas e interessem em competição. É mais um ‘cadinho’ que não deixa ver alvos ‘limpos’ para armas nucleares estratégicas. Nem ideólogos israelenses creem que o Irã consideraria matar 6,5 milhões de muçulmanos palestinos, para atingir Israel.
O que realmente assusta Israel é o arsenal iraniano de mísseis convencionais. E esses não são considerados no acordo. (Nunca teria havido qualquer acordo se esses mísseis fossem incluídos na negociação, dada a memória muito recente, no Irã, da vida sob ataque dos mísseis e armas químicas de Saddam).
A segunda questão oculta derivou do medo (real) entre os sunitas, de um Irã xiita ressurgente e energizado, em tempos do declínio já de longo prazo e da exaustão visível das velhas elites sunitas otomanas. O poder real da Revolução Iraniana e o subsequente renascimento dos xiitas apavorou as monarquias do Golfo.
Essa tensão é profunda, e a natureza dela permanece na maior parte mal entendida no Ocidente: os sunitas, ao longo do último milênio viram-se como natural ‘partido do governo’. – Foram (e ainda creem que sejam) ‘o Establishment’, para quem prefira essa denominação. Os xiitas, por outro lado, sempre foram desdenhados (e correspondentemente desdenhados). – Foram sempre ‘os deploráveis’ (na terminologia dos EUA). E assim como o establishment nos EUA despreza Trump e seu exército popular, há tensões similares no Oriente Médio. As monarquias do Golfo odeiam os ‘deploráveis’ e os temem (e temem qualquer inversão do poder).
E procuraram proteção dos EUA contra o surgimento de seus ‘deploráveis’ (xiitas) locais. A ‘bomba’ nuclear sempre foi e ainda é a alavanca com que contavam para arrancar de Washington o que quisessem – mesmo que realmente não acreditassem em ameaça alguma. Vale o mesmo para Israel: armas e subsídios chovem sobre os israelenses, além de conseguirem aquela danosa, dolorosa ‘contenção’ do Irã.
Aí está o ‘paradoxo do protocolo’: por duas décadas, Washington esteve absorta na tarefa de deter uma ‘Grande Ameaça’ em grande medida ilusória, enquanto o Irã ia silenciosamente montando milhares de quase invisíveis micro agentes de contenção (do tamanho do menor dos drones) bem debaixo do nariz de todos eles.
Nenhuma iniciativa diplomática tipo ‘Biden’ & JCPOA++ resolverá qualquer dessas questões que permanecem sob a mesa – o que implica dizer que iniciativas como a de Biden agora não serão aceitas por Israel (nem pelo Golfo).
A volta dos EUA à diplomacia – por mais que o sucesso seja improvável – só faz exacerbar aqueles medos. E a ‘Equipe A’ dos Democratas está entregando à própria sorte muitos possíveis reféns. Não satisfeita com buscar um novo acordo nuclear – que limite o enriquecimento e o número de centrífugas – os norte-americanos à Biden ainda querem arrancar do acordo as atuais cláusulas ‘Sunset’. Querem restrições à política externa do Irã; querem cortar as garras de aliados do Irã; querem controle sobre armas convencionais (mísseis balísticos). E TAMBÉM querem envolvimento direto, no processo, de Israel e dos Estados do Golfo. Em resumo: apostaram demais e deram na vista.
Será que Washington nada aprendeu da experiência palestina? As equipes de negociadores dos EUA em Oslo supuseram que bastaria que os palestinos ‘garantissem’ a Israel que não haveria perigo, para que Israel aceitasse a solução de dois estados – em no próprio interesse demográfico do estado judeu. Mas erraram: quanto mais ‘segurança’ Israel arrancava dos palestinos, mais segurança desejava. Agora acontecerá o mesmo, no caso do Irã. Israel é insaciável.
Assim sendo, o que fazer das novas realidades?
Israel permanece como o eixo em torno do qual gira a política exterior dos EUA. No período desde que a equipe Obama deixou o governo, muitos dos ex-membros sugeriram que os fracassos de Obama (i.e. não ter conseguido fazer acontecer o objetivo de 2 Estados) teriam sido resultado de haver na equipe membros excessivamente ‘Israel-cêntricos’ (“advogados pró Israel”, nas palavras de um daqueles obamistas). Mas, vale a pena repetir, a Israel de hoje já não é a Israel da era Obama.
Já não existe ‘partido da paz’ israelense (com qualquer tipo de apelo político significativo). A Direita linha-dura e os setores ortodoxos são hoje o bloco chave de poder ‘oscilante’. Não há em Israel quem desafie a linha de Netanyahu contra o Irã (na verdade, até veteranos ex-servidores públicos israelenses de ‘esquerda’ /liberais louvaram o assassinato de Fakhrizadeh). O mesmo se aplica à questão palestina. Netanyahu simplesmente retirou essas questões da agenda doméstica em Israel. Tornaram-se assuntos nacionais ‘resolvidos’. Se Netanyahu deixasse a cena política, a política israelense mudaria significativamente, dadas as tendências já fixadas ali? É pouco provável.
Quanto ao Irã, as condições que Netanyahu quer ver firmadas no acordo JCPOA estão mais próximas das 12 linhas vermelhas (maximalistas) de Pompeo, que de qualquer coisa que se assemelhe à ‘abordagem de Obama’. O Irã diz – em termos definitivos – que não aceitará qualquer nova condição para relançar o JCPOA. Israel diz – em termos definitivos – que jamais aceitará o JCPOA no formato que tem hoje.
Nos dois manuais, no de Obama e agora no de Biden, sempre esteve conceitualmente aberta a janela para possível ação militar (caso o Irã corra na direção de uma ‘arma’ (na formulação dos EUA) e, do ponto de vista de Israel, caso o Irã corra para enriquecer urânio a 90%, o que lhe dá capacidade bélica).
Dada a lógica das duas formulações, dos EUA e de Israel, a ação militar entrará inevitavelmente em séria consideração. Será que a ‘Equipe A’ de Biden crê que ataque limitado a instalações nucleares do Irã seria opção realista, sem desencadear guerra mais ampla? Se não, estará a ‘Equipe A’ disposta a considerar guerra mais ampla – a serviço de Israel? Deve-se esperar que não.
O Mossad e algumas agências ocidentais de inteligência veem o Irã à beira de um colapso econômico e da implosão política – sempre a partir da ideia de que o Irã estaria dilacerado pela insatisfação popular.
Mas Rússia e China veem o Irã de outro modo. Para elas, o Irã aparece simultaneamente como eixo em torno do qual gira a Iniciativa Cinturão e Estrada (ajudam a financiar itens do ‘cinturão’), e como coração de uma ‘terra central’ da estratégia de energia norte-sul. Também reconhecem a significativa contribuição do Irã para a segurança regional. – Isso demarca importante diferença em relação às análises ocidentais, que raramente consideram esse aspecto.
Menos discutível, contudo, é a verdadeira transformação ocorrida dentro do Irã. Ali, o centro de gravidade deslocou-se. Nas eleições parlamentares de 2020, a facção dos ‘Principistas’ (conservadores) obteve vitória sem precedentes, vencendo 221 de 291 assentos com voto no parlamento iraniano. E é provável que o próximo presidente – a ser eleito em meados de 2021 – saia desse grupo. O Irã adotou sua própria Ostpolitik. Está desenvolvendo opções que o afastam dos EUA e da Europa, e culturalmente é mais nacionalista.
Jovens e idosos hoje, todos desconfiam igualmente da Europa e dos EUA – quando, no início da era Obama havia otimismo genuíno sobre a possibilidade de uma reaproximação com Ocidente. Esse otimismo já vai longe. A economia iraniana, embora não esteja prosperando, adaptou-se à realidade. Importante é que o Irã transformou-se – literalmente – em termos das próprias capacidades militares convencionais. Essa mudança chave impõe uma questão crucialmente decisiva: por que, exatamente, o Irã desejaria hoje um novo acordo nuclear? A que preço?
Tom Friedman do NY Times (que absolutamente não é amigo do Irã) surpreendentemente acerta, pelo menos, em parte do que escreve:
“Com o assassinato [de Mohsen Fakhrizadeh], presumivelmente obra de Israel, o Oriente Médio promete complicar o trabalho de Joe Biden desde o primeiro dia. Presidente-eleito, Biden conhece bem a região, mas se eu pudesse dar-lhe um pequeno conselho seria o seguinte: Esse Oriente Médio não é o mesmo que você deixou há quatro anos …
Sim, Israel e os estados árabes sunitas querem garantir que o Irão jamais possa desenvolver uma arma nuclear. Mas há hoje especialistas militares em Israel que lhe diriam que a possibilidade de obter uma bomba atômica não é o que os mantém acordados à noite – pela suficiente razão de que não veem a possibilidade de Teerã servir-se da bomba. Seria suicídio, e os clérigos que governam o Irã não são suicidários.
Mas são homicidas.
E as novas armas preferidas do Irã para homicídio são mísseis teleguiados de precisão que os iranianos usaram contra a Arábia Saudita e que continuam a tentar exportar para seus ‘procuradores’ no Líbano, no Iêmen, na Síria e no Iraque, e que são ameaça de potencial homicídio contra Israel, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Iraque e forças dos EUA na região. (O Irã tem uma rede de instalações para fabricação de seus próprios mísseis teleguiados de precisão.)
Se Biden tentar apenas reiniciar a negociação do acordo nuclear com o Irã nos termos de antes – e desiste da pressão que pode fazer com sanções econômicas extremas sobre o Irã, antes de obter algum acordo sobre a exportação, pelo Irã, de mísseis teleguiados de precisão – desconfio de que encontrará forte resistência de Israel, dos EAU e da Arábia Saudita.
Por quê? Tudo está na palavra “precisão”. Na guerra de 2006 no Líbano, o Hezbollah, milícia aliada do Irã, teve de disparar 20 foguetes tontos, desorientados, terra-terra, na esperança de causar dano a um único alvo israelense. Com mísseis teleguiados de precisão fabricados no Irã, o Hezbollah — em teoria — precisa disparar um único foguete contra cada um de 20 diferentes alvos em Israel, com alta probabilidade de causar danos a todos seus alvos (…).
Por isso Israel [está tentando] impedir que Teerã consiga sua meta de virtualmente cercar Israel com agentes seus no Líbano, na Síria, no Iraque e em Gaza, todos armados com mísseis teleguiados de precisão (…). “Pense na diferença em versatilidade entre os telefones fixos e os smartphones,” observou Karim Sadjadpour, senior fellow de Carnegie Endowment: “Passamos as duas últimas décadas dedicados a impedir que o Irã chegasse à grande arma, mas a ameaça real e imediata que o Irã gera contra países vizinhos está nas milhares de armas inteligentes que tem conseguido multiplicar.”
Em parte, Friedman acerta: O assassinato de Fakhrizadeh foi provavelmente carta formal enviada por Netanyahu ao pessoal de Biden, para avisar que, de todo o espectro dos ‘acordos’, Israel olha mais para a ‘opção militar’ que dê fim a qualquer ‘acordo’, em vez de aceitar algo, no outro ponto extremo do espectro, que se pareça a resultado à moda de um JCPOA.
A questão ‘sob a mesa’ é a força militar convencional já provada do Irã, não algumas supostas bombas nucleares. E por isso Israel insistirá em pressão máxima – quer dizer mais (não menos) sanções extremas que EUA imponha ao Irã, para impor limitações à fabricação de armamento convencional, tanto quanto ao programa nuclear. E isso absolutamente dará em nada – porque o Irã não aceitará coisa alguma desse tipo. “Vai ser muito, muito difícil negociar”, diz Friedman. “É complicado”. É fato.
Prosseguir negociações pelos velhos protocolos de Obama inevitavelmente levará Biden diretamente para a explícita ameaça da ‘opção militar’ (o que parece combinar precisamente com os objetivos de Netanyahu).
Paradoxalmente, é precisamente essa nova capacidade convencional ‘inteligente’ dos iranianos que pode acabar por fazer Biden desistir da tal ‘opção militar’ – o medo de disparar guerra regional que pode destruir os estados do Golfo. E é essa transformação acontecida no Irã que indica o motivo pelo qual a ‘opção militar’ sequer chega a ser uma verdadeira opção: opção militar endossada pelos EUA é opção tipo ‘pílula vermelha’ para toda a região.
Qualquer novo acordo, Friedman avisa, ‘será muito muito difícil de negociar’. Friedman implica que a dificuldade estaria, para Biden, em persuadir os iranianos. Na verdade é o contrário: a dificuldade estará em Biden convencer Netanyahu a olhar a verdade, olhos nos olhos: a opção pela ‘pílula vermelha’ destruirá também Israel.*******
[1] Epígrafe acrescentada pelos tradutores.
Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga