3/10/2014, [*] Robert Parry, Consortium News
Traduzido por Vila Vudu
O ataque químico organizado pelo “ocidente” e realizado pelos “rebeldes” na Síria assassinou mais de 1000 pessoas entre adultos e crianças |
No final do verão de 2013, a Washington oficial apressava-se a “sentenciar” que o presidente da Síria Bashar al-Assad (do mal) havia disparado barragem de mísseis contendo gás sarín, e assim massacrado centenas de civis em áreas próximas de Damasco controladas pelos rebeldes.
Era inconcebível para virtualmente todas as pessoas “que contam” em Washington que pudesse haver outra interpretação para os eventos de 21/8/2013. O colunista de segurança nacional do Washington Post, David Ignatius até explicou a razão “do grande quadro” pela qual o presidente Barack Obama era obrigado a lançar bombardeio punitivo contra o governo de Assad, porque, ao usar armas químicas, o presidente sírio cruzara a “linha vermelha” de Obama.
O que será o mundo quando as pessoas começarem a duvidar da credibilidade do poder dos EUA. Infelizmente, estamos descobrindo a resposta na Síria e em outras nações nas quais os líderes já concluíram que podem desafiar os EUA já fartos de guerras, sem pagar o preço.
Usar poder militar para manter a credibilidade da nação pode soar como ideia antiquada, mas é absolutamente relevante no mundo real onde todos vivemos. Já se tornou óbvio em semanas recentes que o presidente Obama(…) precisa demonstrar que há consequências para quem cruze uma “linha vermelha” norte-americana. Sem isso, a coerência do sistema global começa a dissolver-se − escreveu Ignatius, uma semana depois do incidente do gás sarín.
Naquele momento, poucos de nós levantaram questões sobre o “pensamento de grupo” dentro da Washington oficial sobre os ataques com sarín, em parte porque não faria sentido algum, para Assad, ter convidado inspetores da ONU para examinar os locais de outros ataques com gás, que Assad atribuía à oposição, e, em seguida lançar mais um grande ataque a poucas milhas do hotel ao qual estavam chegando os inspetores.
Também ouvi de dentro da inteligência dos EUA que alguns analistas da CIA tinham as mesmas dúvidas e suspeitavam que o suposto alto número de foguetes carregados com gás sarín (que era então a principal “prova” contra as forças do presidente Assad) havia sido muitíssimo aumentado, e que o pânico entre a população poderia ter inflado as dimensões do ataque.
Mas a razão mais forte para duvidar da Washington oficial talvez fosse a muito apressada conclusão segundo a qual Assad seria culpado de tudo que já vinha acontecendo dentro da oposição síria ao longo de dois anos, a saber, a radicalização e a conversão em força jihadista sunita hiper violenta, que se preparava para ataques brutais contra civis para derrubar o governo secular de Assad e impor em Damasco um estado islamista.
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Blindados pela propaganda
Praticamente nenhuma das pesquisas, estudos e avaliações feitas em Washington detectou essa mudança, porque estavam todos já cegos, de uma cegueira geopolítica infligida pela propaganda dos neoconservadores, que insistiam em que a única via aceitável para interpretar a guerra civil síria seria ver Assad na posição de “o bandido”, e os rebeldes na posição de “os mocinhos”.
Afinal, “mudança de regime” na Síria é item presente há muito tempo na agenda dos neoconservadores; há tanto tempo quanto é item da agenda de Israel, que quer derrubar Assad porque é aliado de Irã e do Hezbollah libanês. No início da guerra na Síria, a dura resposta de Assad ao que ele sempre chamou de “terrorismo”, mas era conhecido nos EUA como “oposição síria” havia induzido também os “liberais intervencionistas” do governo de Obama para o campo dos “mudadores de regime”.
Nesse quadro, a ideia de que algum grupo sírio rebelde extremista poderia deliberadamente matar civis, como provocação para atrair um ataque militar dos EUA contra as defesas de Assad – e assim abrir caminho para uma vitória dos rebeldes – nunca conseguiu penetrar o quadro de referências que a Washington oficial aceitava. Em agosto de 2013, a opinião dominante nos EUA ensinava que os rebeldes sírios eram forças “do bem”.
Ao longo do ano passado, contudo, a realidade, pelo menos em parte, afinal, começou a impor-se. O caso do gás sarín contra o presidente Assad foi praticamente desmontado pelo relatório que a ONU publicou, depois de só haver sido encontrado um único foguete com gás sarín, e de cientistas independentes terem concluído que aquele único foguete carregado com gás teria alcance máximo de cerca de dois quilômetros – o que implicava que ataque algum poderia ter partido da base síria suspeita, localizada a cerca de nove quilômetros de distância.
O repórter investigativo Seymour Hersh também soube, de fontes muito bem postadas, que a comunidade de inteligência dos EUA já começara a suspeitar de extremistas rebeldes que estariam trabalhando ao lado de setores de linha-dura, na inteligência turca [ver “Was Turkey Behind Syria-Sarín Attack?”].
Mas muita “gente importante” do mundo oficial nos EUA, inclusive os editores dos jornais New York Times e Washington Post, continuaram a insistir que Assad tinha de ser o responsável pelo ataque com sarín. “Noticiavam” essa opinião deles próprios, como se fosse fato estabelecido. E sabe-se que essa gente não é dada a admitir os próprios erros.
Caixas de munição chegam para a Frente al-Nusra na Síria |
Uma mudança de paradigma
Ao longo do último ano porém, o paradigma de interpretação do conflito sírio começou a mudar. Em setembro de 2013, muitas forças rebeldes sírias repudiaram a oposição “moderada” e abraçaram, em vez dela, a Frente al-Nusra da al-Qaeda, força jihadista muito agressiva na qual se haviam reunido os combatentes mais efetivos contra Assad.
Então, em fevereiro de 2014, a liderança da al-Qaeda começou a falar de uma força jihadista ainda mais brutal, já chamada Estado Islâmico do Iraque e Levante [Síria] (ing. ISIS ou ISIL). Esse Estado Islâmico promoveu estratégia de indizível brutalidade, como meio para intimidar rivais e afastar os ocidentais, do Oriente Médio.
O ISIL começou a existir depois da invasão dos EUA ao Iraque em 2003, quando o jordaniano Abu Musab al-Zarqawi organizou a chamada “al-Qaeda no Iraque”, uma milícia sunita hiper violenta que atacava xiitas iraquianos e destruía suas mesquitas, espalhando uma viciosa guerra sectária por todo o Iraque.
Depois da morte de Zarqawi em 2006 – e com o afastamento de sunitas iraquianos menos extremistas – a al-Qaeda no Iraque sumiu de cena, até reaparecer na guerra na Síria, já transfigurada como Estado Islâmico e de volta também ao Iraque, numa grande ofensiva militar no verão passado.
Entre notícias de que o Estado Islâmico promove massacres e degola de reféns norte-americanos e britânicos, novamente voltou a parecer crível que haja grupos rebeldes sírios suficientemente agressivos para obter gás sarin e fazer um ataque químico perto de Damasco, matando inocentes e com o projeto de atribuir o crime ao governo do presidente Assad.
Até Ignatius do Post já parece mais cético quanto ao movimento rebelde sírio; e sobre o serviço que prestam as várias agências de inteligência dos EUA e aliados que sempre forneceram dinheiro, armas e treinamento – até a milicianos dos grupos mais extremistas.
Posto de fronteira da Turquia com a Síria |
Abriram a porta
Em coluna na 5ª-feira, 2/10/2014, Ignatius critica não só a tal “oposição moderada” na Síria, mas também
(…) nações estrangeiras, como EUA, Turquia, Qatar, Arábia Saudita e Jordânia, que estão financiando essa mistura caótica de rebeldes armados dentro da Síria. Essas maquinações estrangeiras ajudaram a abrir a porta para que o grupo terrorista Estado Islâmico passasse a ameaçar a região.
Até Ignatius já reconheceu que a ideia de pintar a oposição síria como movimento de raízes locais, constituído de reformadores idealistas, foi erro grave. Escreveu:
Desde o início da revolta contra o presidente Bashar al-Assad em 2011, aSíria foi cenário de uma guerra por procuração que envolveu potências regionais (Turquia, Arábia Saudita e Qatar) que, todas, queriam derrubar Assad, mas também competiam entre elas como rivais regionais.
Em diferentes momentos, essas três nações forneceram dinheiro e armas a grupos sunitas rebeldes, armas que acabaram nas mãos de extremistas. (…) Os EUA, Arábia Saudita e Jordânia uniram forças em 2013 para treinar e armar rebeldes moderados num campo de treinamento mantido pela CIA, na Jordânia. Mas esse programa jamais foi forte o suficiente para unificar as quase 1.000 brigadas espalhadas pelo país. A desorganização resultante ajudou a desacreditar a aliança rebelde conhecida como Exército Sírio Livre.
Os comandantes sírios rebeldes têm também alguma culpa por esta estrutura em cacos. Mas o caos foi gravemente piorado pelas potências exteriores que trataram a Síria como playground para seus serviços de inteligência. Essa intervenção cínica faz lembrar intervenções semelhantes que muito contribuíram para devastar o Líbano, o Afeganistão, o Iêmen, o Iraque e a Líbia, em guerras civis assemelhadas. (…)
David Ignatius |
A história de como a Síria foi convertida em centro de pilotagem para agências de inteligência rivais, foi-me explicada por fontes aqui [em Istambul] e em Reyhanli, área de ação rebelde na fronteira turco-síria. Esforços externos para treinar e armar rebeldes sírios começaram há mais de dois anos em Istanbul, onde um ‘centro de operações militares’ foi criado, primeiro, num hotel próximo ao aeroporto.
Figura chave era um agente do Qatar, que ajudou a armar os rebeldes líbios que depuseram Muammar Gaddafi. Trabalhando com os qataris havia altos funcionários das inteligências turca e saudita. Mas a unidade interna das operações de Istambul acabou quando turcos e qataris começaram a apoiar grupos islamistas, que eles consideravam mais agressivos.
Aqueles jihadistas realmente surgiram como combatentes mais valorosos, mais duros – e o sucesso deles foi como um ímã para atrair mais apoio. Os turcos e qataris insistem que não apoiaram intencionalmente o grupo extremista Frente al-Nusra ou o Estado Islâmico. Mas armas e dinheiro enviado para brigadas islamistas mais moderadas acabaram em mãos desses grupos terroristas, e turcos e qataris fizeram-se de cegos.
Quanto ao crescimento desses radicais, Ignatius cita uma fonte da inteligência árabe, que disse ter “alertado um funcionário do Qatar, que respondeu: “Enviarei armas para a al-Qaeda, se ajudar a derrubar Assad”. Essa determinação de derrubar Assad a qualquer custo provou-se muito perigosa. “Os grupos islamistas cresceram e ficaram cada vez mais fortes, e o Exército Sírio Livre só fez enfraquecer cada vez mais” – recordou a fonte da inteligência árabe.
É hora de revelar a verdade sobre o gás sarín
Baseados nessa informação, a ideia de haver extremistas anti-Assad capazes de usar gás sarín – possivelmente com ajuda da inteligência turca, como Hersh denunciou – e lançar um ataque de pura provocação, com o objetivo de conseguir que o exército dos EUA destruísse o exército de Assad e abrisse caminho para uma vitória dos rebeldes já começa a fazer pleno sentido.
Afinal de contas, lá em Washington, a estratégia de propaganda de culpar Assad só convenceu os sempre influenciáveis neoconservadores que, em agosto de 2013 empurraram adiante o caminhão dos que pregavam “guerra-já” e forçaram ao silêncio qualquer um que duvidasse da versão segundo a qual Assad seria sempre “culpado de tudo”.
Israel assumiu a mesma posição sobre a Síria, aceitando até a vitória dos extremistas da al-Qaeda, se necessário para derrubar Assad e ferir seus aliados iranianos.
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Em setembro de 2013, o então embaixador de Israel nos EUA, Michael Oren, disse ao Jerusalem Post em entrevista, que:
O maior perigo para Israel é o arco estratégico que se estende de Teerã a Damasco e a Beirute.
E via o regime Assad como pedra de apoio daquele arco…
(…) Sempre quisemos que Bashar Assad partisse. Em matéria de bandidos, sempre preferimos bandidos que não fossem apoiados pelo Irã, a bandidos apoiados pelo Irã.
Disse que era assim, mesmo no caso dos bandidos não apoiados pelo Irã serem apoiados pela al-Qaeda.
Assim sendo, o perigo que advém dos extremistas sunitas já foi rebaixado, e o foco volta a ser derrubar Assad. Não surpreende que tenha havido tanta “surpresa” nos think-tanks da Washington oficial, quando o Estado Islâmico abriu nova frente no Iraque e expulsou de lá o exército iraquiano treinado pelos EUA. Mais uma vez, os neoconservadores conseguiram manter os olhos dos norte-americanos absolutamente cegos para uma verdade inconveniente.
Mas os neoconservadores ainda não acertaram as contas que têm a acertar, pelo impressionante fiasco na Síria, que eles ajudaram a criar. No momento, estão ocupadíssimos reescrevendo a narrativa: começaram a acusar Obama de ter esperado demais para armar os rebeldes sírios; e a insistir para que Obama, em vez de bombardear alvos do Estado Islâmico na Síria, passe a atacar a força aérea síria e crie uma zona aérea de exclusão, para que os rebeldes possam marchar sobre Damasco.
A temeridade enlouquecida de tal estratégia deveria ser óbvia para todos. Mas, se Obama tivesse sucumbido às demandas dos que queriam intervenção no verão de 2013 e atacasse o exército de Assad, talvez tivéssemos hoje a al-Qaeda ou o Estado Islâmico no controle de Damasco. [Ver Consortiumnews.com, “Neocons’ Noses into the Syrian Tent”].
Melhor fará Obama se romper o sigilo que veda o acesso aos relatórios de inteligência dos EUA sobre o ataque com gás sarín dia 21/8/2013, incluindo as manifestações de discordância de vários analistas da CIA que não consideraram demonstrada a responsabilidade de Assad. Essa informação lançaria luz consideravelmente nova sobre como a ação de serviços de inteligência turcos e árabes — com a ajuda de neoconservadores – tornou possível o surgimento e o crescimento do Estado Islâmico.
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[*] Robert Parry é um jornalista investigativo norte-americano. Recebeu Prêmio George Polk de Reportagem Nacional em 1984 por seu trabalho na Associated Press sobre o caso Irã-Contras quando descobriu envolvimento de Oliver North. Trabalhou como correspondente em Washington para a Newsweek. Em 1995 fundou o ConsorctiumNews, um espaço de noticiário liberal online dedicado ao jornalismo investigativo. De 2000 a 2004, trabalhou para agência Bloomberg. Parry escreveu vários livros, incluindo Lost History: Contras, Cocaine, the Press & “Project Truth” (1999) e Secrecy & Privilege: Rise of the Bush Dynasty from Watergate to Iraq (2004).