25/10/2015, Stephen Gowans, What is left
Tradução Vila Vudu
Em discurso proferido nos subúrbios do sul de Beirute dia 23/10/2015, Sayyed Hassan Nasrallah, secretário-geral do Hezbollah, organização da Resistência com base na comunidade xiita do Líbano, fez uma descrição do imperialismo dos EUA que combina em grande medida com o que dizem anti-imperialistas da esquerda secular ocidental.
O Hezbollah foi criado no início dos anos 1980s para pôr fim à ocupação de Israel no Líbano. Com a saída de Israel em 2000 e a subsequente nova tentativa de ocupar o Líbano em 2006 impedida por combatentes do Hezbollah, essa organização da Resistência continua a ser a mais vigilante sentinela contra outras agressões que venham de Israel. Atualmente, o Hezbollah ajuda o Exército Árabe Sírio em sua luta de vida ou morte contra grupos sectários extremistas, dentre os quais o ISIS e a Frente al-Nusra. Esses grupos são desdobramentos da al-Qaeda e ameaçam existencialmente a comunidade xiita no Líbano, o que explica por que o Hezbollah decidiu envolver-se no conflito.
Abaixo (em itálicos) um resumo, que pode ser ampliado, do que disse Nasrallah [1].
Os EUA querem o Oriente Médio sob a dominação deles: dominação política, militar, de segurança, econômica e cultural.
Washington usa Israel como instrumento para promover essa agenda.
Israel depende dos EUA para sua própria existência. Se o apoio financeiro, econômico e militar que Washington dá a Telavive deixar de existir, Israel desaparecerá.
Vítimas de Israel são os palestinos e os libaneses, dois povos que sofreram ocupação e massacres das mãos de Israel.
A culpa pelos crimes de Israel, portanto, é mais de Washington, patrão de Israel, do que de Netanyahu e de seu exército de terroristas.
Assim sendo, palestinos e libaneses são as primeiras e principais vítimas do projeto norte-americano de dominação no Oriente Médio, projeto do qual Israel é instrumento.
A política externa dos EUA visa a saquear o petróleo, o gás e todas e quaisquer riquezas da região. É política comandada pelos donos do petróleo e das empresas de armas, não por ONGs de direitos humanos.
Na verdade, toda a conversa de Washington sobre direitos humanos e democracia é absolutamente sem sentido. As maiores ditaduras na região são mantidas e patrocinadas pelos EUA. Essas ditaduras violam direitos humanos e não respeitam eleições (casos de Egito, Arábia Saudita, Qatar e Bahrain – todos aliados dos EUA).
Os aliados dos EUA na região nada são além de capatazes locais comandados por um rei ou um presidente que presta contas a Washington. Decisões sobre guerra, paz, política externa e mercados são tomadas exclusivamente pelos EUA, sem consultar os tais supostos ‘aliados’.
Os aspectos punitivos da política externa dos EUA visam todos e quaisquer que se recusem a submeter-se à dominação dos norte-americanos, ou seja, que se recusam a converter-se em extensões locais do governo de Washington (e, por implicação, extensões das grandes empresas de petróleo e armas que dominam o governo de Washington). País que tome decisões próprias, considerando os próprios interesses de seus próprios cidadãos é país que, para os EUA, não tem direito de existir, é inaceitável.
Por exemplo, toda a hostilidade de Washington contra o Irã pode ser rastreada até o momento em que o Irã decidiu ser país livre e independente dos EUA, que comanda e controla a própria economia e preserva a dignidade do próprio povo. O Irã rejeita a hegemonia dos EUA; assim sendo, é inaceitável para Washington.
Washington lança guerras à distância, que são combatidas por países vassalos ‘procuradores’ dos EUA, contra todos e quaisquer países que trabalhem para serem fortes e independentes. Atualmente, os EUA fazem guerras por procuração no Oriente Médio, contra todos e quaisquer que se recusem a submeter-se à dominação norte-americana. Atualmente, os vassalos procuradores dos EUA são jihadistas islamitas sunitas extremistas, takfiris (entre os quais incluem-se o ISIS e a Frente al-Nusra, que nasceram e prolongam a al-Qaeda, que os propagandistas nos EUA agora travestiram como rebeldes “moderados”). O verdadeiro líder e coordenador dos takfiris são os EUA, ajudados por vassalos-aliados regionais (Turquia, Arábia Saudita e Qatar).
Hoje, Washington diz-nos que se não formos escravos dos EUA, seremos sitiados e nos enviarão terroristas suicidas-bombas.
A guerra em curso hoje nada tem a ver com reformas, democracias, direitos humanos, eliminação da pobreza ou combate à ignorância; e só tem a ver, exclusivamente, com subjugar todos quantos rejeitem as ambições hegemônicas dos EUA.
Nasrallah chama Israel de “ferramenta para implementar a hegemonia dos EUA” no Oriente Médio. Faz lembrar uma observação do professor palestino Walid Khalidi: “Para muitos árabes, Israel é cabeça-de-praia do imperialismo dos EUA no Oriente Médio e sua executora” – conclusão que nada tem e não razoável, dadas as evidências.
Nasrallah descreve a política externa dos EUA como erguida sobre um modelo universalista da liderança dos EUA, que não deixa espaço algum para que outros países definam soberana e autonomamente o próprio caminho.
Há pelo menos uma pessoa próxima da política externa dos EUA que reconhece essa visão como perfeitamente acurada. Ana Montes, que, na véspera do 11/9 era a principal analista do Pentágono para assuntos de Cuba, e que denunciou a política externa dos EUA por “jamais ter respeitado o direito de Cuba de traçar o próprio caminho na direção de alcançar os próprios ideais cubanos de igualdade e justiça” [2] – comentário em tudo semelhante ao de Nasrallah, para quem Washington não admite que o Irã seja “país livre e independente” que comanda e controla a própria economia e preserva a dignidade do próprio povo; e pune países que “buscam ser independentes e fortes.”
Montes lutou sem sucesso para compreender por que Washington continuava a “ditar como os cubanos deveriam eleger os próprios governantes, quem poderia e quem não poderia governar os cubanos, e que leis seriam mais ‘apropriados’ para os cubanos em sua própria terra” – assim como muitos sírios devem estar lutando para compreender a insistência de Washington para que o presidente que os sírios elegeram ‘saia do governo’, por que os EUA tanto insistem em ditar aos sírios quem devem eleger e como devem ser eleitos e, principalmente, quem os sírios ‘não podem’ eleger de modo algum.
“Por que”, Montes indagou, “não podemos deixar que Cuba siga a própria jornada, exatamente como os EUA vimos fazendo já há dois séculos?”
E por que Washington não pode deixar Síria e Irã viverem como prefiram?
Pela análise de Nasrallah, essa resposta é clara. Nem a Síria nem o Irã, como tampouco Cuba, podem controlar as respectivas economias, por que isso conflita com aspirações da elite oligárquica empresarial, que é quem – não os cidadãos, nem os eleitores, nem, sequer, os eleitos! – domina a política nos EUA.
Indignada ante a total ausência de “tolerância e compreensão em Washington quanto aos modos e vias que outros escolham para si”, Montes fez o que lhe ordenou sua consciência e forneceu a autoridades cubanas a inteligência reunida em plataformas de escutas clandestinas que espiões norte-americanos haviam implantado em Cuba, para dificultar ainda mais o exercício legítimo da autodeterminação dos cubanos.
Por esse seu trabalho para impedir que se consumassem uma injustiça e um crime, a Dra. Montes foi condenada a quase 25 anos de prisão por espionagem. Foi chamada de “a mais importante espiã de que vocês jamais ouviram falar” [3], mas está também entre as mais importantes prisioneiras de consciência em todo o mundo, mas com a qual a Anistia Internacional nunca se preocupou.
É mais um caso da lista enorme de casos em que o imperialismo dos EUA agiu com violência, mas cuja vítima as muito falhadas e comprometidas ONGs de direitos humanos não ajudaram nem jamais ajudarão. Mais uma prática infame dessas ONGs, dentre muitas outras que se podem listar, como:
• Ter criticado Wikleaks por vazar segredos dos EUA; [4]
• Ter propagandeado, sem qualquer evidência ou prova, que o Irã teria um programa de armas nucleares; [5]
• Ter feito sumir no relatório que a ONG Anistia Internacional publicou sobre “o sistema de saúde pública em ruínas da Coreia do Norte”, as sanções que os EUA impuseram e mantêm contra a Coreia do Norte – o mais amplo e longevo programa de guerra econômica jamais imposto em toda a história da humanidade. Em vez de apontar causas reais e demonstráveis, a ONG Anistia Internacional atribuiu as dificuldades que a saúde pública enfrenta na Coreia do Norte a decisões tomadas por Piongueangue – praticamente o mesmo que atribuir a morte de incontáveis crianças iraquianas durante os anos 1990s, a Saddam Hussein, não ao regime de sanções imposto pelos EUA; [6]
• Ter nomeado a funcionária do Departamento de Estado dos EUA Suzanne Nossel para o cargo de diretora executiva da Anistia Internacional EUA. Nossel apoiou a ilegal invasão dos EUA ao Iraque, além de também ter apoiado opção militar para coagir o Irã a desistir de seu pleno direito, nos termos da lei internacional, de processar urânio para finalidades pacíficas; [7]
• Ter sempre limitado suas ‘denúncias’ e ‘diagnósticos’, no caso de agressões militares cometidas pelos EUA, à questão de se as agressões ‘respeitaram’ regras da guerra, nunca de se configuraram violação da lei internacional [8].
A ONG Anistia Internacional prioriza o conceito de jus in bello (justiça dos atos, pelos critérios da guerra), e jamais considera ou reconhece o conceito de jus ad bellum (justiça das causas da guerra). Com essa estratégia-golpe, a ONG livra-se de ter de denunciar todos os mais terríveis crimes cometidos por EUA e aliados, porque as guerras de Washington e de seus subalternos quase invariavelmente agridem todas as linhas e alíneas de qualquer padrão de jus ad bellum;
• Ter ‘exigido’ embargo internacional de armas para o governo sírio, mas não para os terroristas aliados dos EUA, que continuam a receber armas dos EUA e aliados, dentro os quais a Arábia Saudita, abominação universal em matéria de direitos humanos. [9]
Apesar de a Anistia Internacional ter criticado o dossiê de atentados contra direitos humanos na África do Sul do apartheid, foi a única ONG, dentre todas as organizações de direitos humanos que jamais denunciou o próprio apartheid. [10] A ONG também se recusou a condenar o bombardeio pela OTAN, em 1999, contra a Iugoslávia [11], apesar de ter sido ato de predação imperial, que renegou todos os direitos de muitos iugoslavos inocentes à vida, à segurança da pessoa e ao trabalho.
A Anistia Internacional costuma ‘justificar’ sua omissão pelo argumento de que não é organização antiguerra… Como se guerra e direitos humanos não andassem sempre tão íntima e desgraçadamente intrincados.
Mas o mais importante serviço que a ONG Anistia Internacional jamais prestou à propaganda da política externa dos EUA aconteceu em 1991, quando a ONG emitiu um relatório sobre o andamento da Guerra do Golfo, no qual disseram que soldados iraquianos teriam arrancado bebês kuwaitianos de incubadoras. Foi mentira cerebrada pela filha do embaixador do Kuwait nos EUA, e divulgada pela empresa Hill & Knowlton de Relações Públicas, que havia sido contratada para lançar campanha de propaganda que galvanizasse o apoio da opinião pública a uma guerra dos EUA contra o Iraque.
Quando o presidente George H.W. Bush dos EUA apareceu na TV para anunciar que estavam concluindo os preparativos para iniciar a guerra ao Iraque, mostrou sua cópia do relatório da Anistia Internacional [12].
Washington promoveu o tema e as correspondentes ONGs de direitos humanos nos anos 1980s, como a bandeira a desfraldar na guerra de propaganda contra a União Soviética. Questões de direitos humanos aparecem sempre em todos os países que se recusem a submeter-se às ambições hegemônicas de Washington.
Não é perfeitamente previsível e esperável que uma organização dita de direitos humanos, com sede no ocidente, que aparentemente não viu qualquer inconveniente em indicar uma ex-funcionária do Departamento de Estado dos EUA para chefiar os seus escritórios nos EUA, tenha a função prioritária de conduzir a propaganda a favor dos EUA, de encobrimento dos crimes dos EUA, não de defesa de algum “direito humano”?
Os EUA e seus aliados seriam, segundo a narrativa preferencial – sempre amplamente apoiada e repetida pela ONG Anistia Internacional – campeões mundiais de direitos humanos, cujas agressões pelo mundo visariam os inimigos dos direitos humanos e, assim sendo, seriam sempre válidas, e até mesmo elogiáveis.
A ideia de que a política externa dos EUA seja inspirada em alguma defesa de algum direito humano, como Nasrallah mostra, é absoluto nonsense.
Descrição acurada da função instrumental que os direitos humanos desempenham na política externa dos EUA nos vem de um veterano funcionário do Departamento de Estado: “Países que cooperam conosco, ganham passe livre (em matéria de agredir direitos humanos). Os que não cooperam, são chicoteados o mais possível” [13].
A prisioneira de consciência Ana Montes, inexistente para a ONG Anistia Internacional, permanece desafiadora, apesar da década e meia de prisão, que cumpre na prisão feminina de mais alta segurança dos EUA. “A cadeia é dos últimos lugares que eu jamais escolheria para viver” – disse ela –, “mas há coisas na vida pela quais tudo vale a pena, até a cadeia” [14].
Como são pateticamente acanalhadas e covardes essas ONGs pró-imperialismo, como Anistia Internacional, comparadas à análise honesta e à coragem de Ana Montes.
Como é desprezível a colusão dessas ONGs, comparada à coragem moral de Nasrallah e dos demais incontáveis homens e mulheres que se opõem à ditadura internacional dos EUA, dos banqueiros, dos investidores bilionários, e dos fabricantes de armas. ONGs como Anistia Internacional servem a essa gente, que são proprietários delas, não, de modo algum, à defesa de algum direito humano.*****
David Rovic: “Canção para Ana Belen Montes“
NOTAS
1. “Zeinab Essa, “Sayyed Nasrallah vows from Sayyed Shudadaa Complex: We’re to defeat ‘Israel’, US-Takfiri scheme,” Alahed, October 24, 2015.
2. Montes statement, October 16, 2002, The Centre for Counter-Intelligence and Security Studies, The Ana Belen Montes Case, Latinamericanstudies.org, Studies http://www.latinamericanstudies.org/espionage/montes-articles.pdf
3. Jim Popkin, “Ana Montes did much harm spying for Cuba. Chances are, you haven’t heard of her,” The Washington Post Magazine, April 18, 2013.
4. John F. Burns and Ravi Somaiya, “WikiLeaks founder on the run, trailed by notoriety”, The New York Times, October 23.
5. Joe Emersberger, “Debating Amnesty about Syria and Double Standards”, MRZine, July 6, 2012.
6. Stephen Gowans, “2010 Amnesty International botches blame for North Korea’s crumbling healthcare,” what’s left, July 20, 2010.
7. Emersberger.
8. Daniel Kovalick “Amnesty International and the Human Rights Industry,” counterpunch.org, November 8, 2012.
9. Emersberger.
10. Francis A. Boyle and Dennis Bernstein, “Interview with Francis Boyle. Amnesty on Jenin”, Covert Action Quarterly, Summer, 2002. http://cosmos.ucc.ie/cs1064/jabowen/IPSC/php/art.php?aid=4573
11. Alexander Cockburn, “How the US State Dept. Recruited Human Rights Groups to Cheer On the Bombing Raids: Those Incubator Babies, Once More?” Counterpunch, April 1-15, 1999. http://cosmos.ucc.ie/cs1064/jabowen/IPSC/articles/article0005098.html
12. Boyle and Bernstein.
13. Craig Whitlock, “Niger rapidly emerging as a key U.S. partner,” The Washington Post, April 14, 2013.
14. Popkin.
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Mais um brilhante artigo. Parabéns Orientemidia.
Bravo !!