18/7/2022, Alastair Crooke, The Altworld
Legenda: A política de Putin de “limpar os estábulos de Augias”* do ‘capital ocidental predatório’ é música para os ouvidos do Sul Global
Claro que o conflito está decidido, para todos os efeitos – embora esteja longe de terminar. Claro que a Rússia prevalecerá na guerra militar – e na guerra política também –, o que significa que surja o que surgir na Ucrânia após a conclusão da ação militar, será ditado por Moscou, nos termos de Moscou.
Claramente, por um lado, o regime em Kiev entraria em colapso se tivesse termos ditados a ele por Moscou. Por outro lado, toda a agenda ocidental por trás do golpe de Estado Maidan em 2014 também implodiria. (É por isso que uma via de saída da rodovia, que não seja derrota ucraniana, é quase impossível.)
Este momento marca, assim, um ponto crucial de inflexão. Escolha possível para os EUA pode ser acabar com o conflito – e há muitas vozes pedindo acordo, ou cessar-fogo, com a intenção compreensivelmente humana de acabar com a matança inútil de jovens ucranianos enviados ao ‘front’ para defender posições indefensáveis, serem mortos cinicamente sem qualquer ganho militar, só para manter a guerra em andamento.
Embora racional, o argumento a favor de uma via de saída perde o ponto geopolítico maior: o Ocidente está tão fortemente investido na própria narrativa fantástica de algum suposto iminente colapso e russos humilhados, que se vê ‘preso’. Não pode avançar por medo de que a OTAN não esteja à altura da tarefa de confrontar as forças russas (Putin afirmou que a Rússia nem começou a usar toda a sua força). Mas firmar um acordo, voltar atrás, seria a desmoralização.
E ‘desmoralização’ traduz aproximadamente a perda do ocidente liberal.
O Ocidente, assim, tornou-se refém do próprio triunfalismo desenfreado, travestido de infoguerra. O Ocidente escolheu esse jingoísmo alucinado. Os conselheiros de Biden, no entanto, lendo as runas da guerra – dos implacáveis ganhos russos – começaram a vislumbrar outro desastre de política externa que se aproxima a passos largos.
Veem eventos que, longe de reafirmar a ‘Ordem baseada em ordens a serem obedecidas cegamente’, desnudam diante do mundo os limites do poder dos EUA – deixando a ribalta do palco não só para uma Rússia ressurgente, mas para uma Rússia que leva mensagem revolucionária para o resto do mundo (fato para o qual, contudo, o Ocidente ainda não despertou).
Além disso, a aliança ocidental vai-se desintegrando à medida em que se instala a fadiga da guerra, e as economias europeias veem-se cara a cara com recessão. A inclinação instintiva contemporânea de decidir primeiro e pensar depois (sanções europeias) meteu a Europa em crise existencial.
O Reino Unido exemplifica o enigma europeu mais amplo: a classe política do Reino Unido, assustada e em desordem, ‘determinada’ primeiro a esfaquear o próprio líder, logo em seguida dá-se conta de que eles não havia sucessor à mão, com seriedade bastante para gerenciar o neonormal, e sem nem ideia de como escapar da armadilha em que está aprisionado.
Nenhum deles atreve-se a se deixar desmoralizar publicamente diante da Ucrânia, nem têm solução à altura da recessão que se aproxima (exceto um retorno ao thatcherismo?). E o mesmo se pode dizer da classe política da Europa: são como veados paralisados pelos faróis de um veículo que se aproxima em alta velocidade.
Biden e uma certa rede de agentes que abrange Washington, Londres, Bruxelas, Varsóvia e os Bálticos veem a Rússia de uma altura de 30.000 pés acima do conflito na Ucrânia. Biden supostamente acredita que está(ria) em posição equidistante entre duas tendências perigosas e ameaçadoras que engolfam os EUA e o Ocidente: o trumpismo em casa; e o putinismo no exterior. Ambos, acredita ele, apresentam perigos claros e presentes para a ordem liberal baseada-em-ordens-a-serem-obedecidas-cegamente na qual (a Equipe) Biden acredita apaixonadamente.
Outras vozes – principalmente do campo realista dos EUA – não estão tão obcecadas com a Rússia; para eles [meninos enfrentam a Rússia e], ‘homens de verdade’ enfrentam a China. E só querem manter o conflito na Ucrânia num eterno impasse, se possível (mais armas), enquanto ativam o ‘pivô para a China’.
Em discurso no Hudson Institute , Mike Pompeo fez declaração de política externa que claramente mirava 2024 e sua posição de vice-presidente. A essência da coisa era China, mas o que ele disse sobre Ucrânia foi interessante: a importância de Zelensky para os EUA dependia de ele manter a guerra em andamento (ou seja, evitar a total desmoralização do ocidente[1]). Ele não se referiu explicitamente a ‘botas no chão’, mas ficou claro que ele não defendia tal medida.
Sua mensagem era armas, armas, armas para a Ucrânia e ‘seguir em frente’ – girando como pivô para a China AGORA. Pompeo insistiu que os EUA reconheçam Taiwan diplomaticamente hoje, independentemente do que ocorra (isto é, independentemente de se a ação desencadeie guerra com a China.) E incluiu a Rússia na equação, ao dizer simplesmente que Rússia e China devem ser efetivamente tratadas como um só país.
Mas Biden parece inclinado a deixar passar o momento e manter a trajetória atual. É o que desejam muitos dos participantes desse ‘empreendimento’ privado movido com dinheiro público. O ponto aqui é que há conflito entre as diferentes visões do Deep State [lit. “Estado Profundo”; preferimos traduzir por “Estado Permanente”. Afinal, o Deep State norte-americano não é profundo: está nas manchetes e nas fachadas de prédios e lojas e bancos, lojas, sempre com nomes, endereços e CNPJs bem conhecidos. Além disso, o Deep State nem é ruim por ser ‘profundo’ (se o fosse): é ruim por ser permanente, imutável, inalcançável pelos ‘pesos e contrapesos’ da democracia (NTs)].
Banqueiros influentes de Wall Street certamente não gostam das noções de Pompeo. Prefeririam desescalar com a China. Mas continuar é opção mais fácil, já que a atenção doméstica dos EUA volta-se para os problemas econômicos.
Fato aqui é que o Ocidente está completamente encalacrado: não pode nem avançar nem retroceder, impedido pelas próprias estruturas de política e de economia. Biden está preso na Ucrânia. A Europa está presa à Ucrânia e à beligerância europeia contra Putin; idem para o Reino Unido; e o Ocidente está preso em suas relações com Rússia e China. Mais importante é que nenhum deles pode atender às insistentes demandas de Rússia e China por uma reestruturação da arquitetura de segurança global.
Se não podem mover-se nesse plano de segurança – por medo do completo vexame e da completa desmoralização – não serão capazes de assimilar (sequer de ouvir – dada a ironia arraigada que acompanha qualquer palavra proferida pelo presidente Putin) que a agenda da Rússia vai muito além da arquitetura de segurança.
Por exemplo, o veterano diplomata e comentarista indiano, MK Badrakhumar, escreve:
“Depois do Sakhalin-2, [numa ilha no Extremo Oriente russo] Moscou também planeja nacionalizar o projeto de desenvolvimento de petróleo e gás Sakhalin-1, expulsando os acionistas americanos e japoneses. A capacidade do Sakhalin-1 é bastante impressionante.
Houve um tempo, antes de a OPEP+ estabelecer limites nos níveis de produção, quando a Rússia extraiu até 400 mil barris por dia, mas o nível de produção recente foi de cerca de 220 mil barris por dia.
A tendência geral de nacionalização das participações de capital americano, britânico, japonês e europeu nos setores estratégicos da economia russa está-se cristalizando como a nova política. A limpeza da economia russa, libertada do capital ocidental, deverá acelerar no próximo período.
Moscou estava bem ciente do caráter predatório do capital ocidental no setor de petróleo da Rússia – legado da era Boris Yeltsin –, mas teve de conviver com a exploração, pois não queria antagonizar outros potenciais investidores ocidentais. Mas agora, isso é história. O azedamento das relações com o Ocidente até quase o ponto de ruptura livra Moscou dessas inibições arcaicas.
Depois de chegar ao poder em 1999, o presidente Vladimir Putin iniciou a gigantesca tarefa de limpar os estábulos de Augias, removendo da Rússia o esterco da colaboração estrangeira no setor de petróleo. O processo de “descolonização” foi terrivelmente difícil, mas Putin conseguiu”.
No entanto, isso é apenas a metade. Putin continua a repetir em discursos que o Ocidente é o autor da própria dívida e da própria crise inflacionária (não a Rússia), o que gerou muita confusão no Ocidente. Deixemos que o professor Hudson explique por que grande parte do resto do mundo vê que o Ocidente tomou a ‘via errada’, em termos econômicos. Em resumo, Putin deixa implícito que a via errada pela qual o Ocidente optou levou-o a um ‘beco sem saída’.
O professor Hudson argumenta (parafraseado e reformulado; também aqui, art. trad. ao port.) que há essencialmente dois amplos modelos econômicos que correm ao longo da história:
“Por um lado, vemos sociedades do Oriente Próximo e asiáticas organizadas para manter o equilíbrio e a coesão sociais graças a controles impostos às relações de endividamento e à riqueza mercantil, mantidas subordinadas ao bem-estar geral da comunidade como um todo”.
Todas as sociedades antigas desconfiavam da riqueza, porque tendia a ser acumulada por uns poucos, à custa da sociedade em geral – e levava à polarização social e a grandes desigualdades de riqueza. Examinando a extensão da história antiga, podemos ver (diz Hudson) que o principal objetivo dos governantes da Babilônia ao sul da Ásia e ao leste da Ásia era impedir que uma oligarquia mercantil e credora surgisse e concentrasse a propriedade da terra. Esse é um dos modelos históricos.
O grande problema que o Oriente Próximo da Idade do Bronze resolveu – mas a antiguidade clássica e a civilização ocidental não resolveram – foi como lidar com dívidas crescentes (vencimentos periódicos de dívidas), sem polarizar a sociedade e, finalmente, empobrecer a economia, reduzindo a maior parte da população à dependência da dívida.
Um dos princípios-chave de Hudson é que o modo como a China está estruturada, como economia de ‘baixo custo’: habitação barata, educação subsidiada, assistência médica e transporte – significa que os consumidores têm alguma renda disponível gratuita sobrando – e a China como um todo passa a ser competitiva.
Mas o modelo de dívida financeirizada do Ocidente é de alto custo, com faixas da população cada vez mais empobrecidas e privadas de renda discricionária, após pagarem os custos do serviço da dívida.
A periferia ocidental, no entanto, sem a tradição do Oriente Próximo, ‘optou por outra via’ para permitir que uma oligarquia credora rica tomasse o poder e concentrasse a terra e toda a propriedade. Para fins de relações públicas, alegou ser uma ‘democracia’ e denunciou qualquer regulamentação governamental protetora como se caracterizasse, por definição, a ‘autocracia’.
Aí está o segundo grande modelo, mas, com seu excesso de dívidas e agora numa espiral inflacionária, ele também está encalacrado, sem meios para avançar.
Esse segundo modelo é o que ocorreu em Roma – em cujo rescaldo ainda estamos vivendo.
Tornar devedores pobres dependentes de credores ricos é o que os economistas de hoje chamam de “mercado livre”. É mercado sem freios e contrapesos públicos contra a desigualdade, a fraude ou a privatização do domínio público.
Essa ética neoliberal pró-credor, afirma o professor Hudson, está na raiz da Nova Guerra Fria de hoje. Quando o presidente Biden descreve esse grande conflito mundial destinado a isolar China, Rússia, Índia, Irã e seus parceiros comerciais eurasianos, ele caracteriza a disputa como luta existencial entre ‘democracia’ e ‘autocracia’.
“Democracia”, para ele, significaria oligarquia. E “autocracia” significaria para ele qualquer governo forte o suficiente para impedir que uma oligarquia financeira assuma o governo e a sociedade e imponha – pela força – regras neoliberais. Impedir que assim acontecesse, quem impediu foi Putin, na Rússia.
Ideal democrático para o Ocidente seria converter todo o mundo numa espécie de Rússia de Boris Yeltsin, onde os neoliberais norte-americanos tiveram liberdade para saquear toda a propriedade pública de terras, todos os direitos minerais e todos os serviços públicos básicos que lhes interessassem.
Mas hoje lidamos com tons de cinza – não há mercado algum verdadeiramente livre nos EUA; e China e Rússia são economias mistas, embora tendam a priorizar a responsabilidade pelo bem-estar da comunidade como um todo, em vez de imaginar que deixar os indivíduos entregues à própria sorte possa, de algum modo, resultar em máximo bem-estar nacional.
Aqui está o ponto: a economia de Adam Smith plus o individualismo estão enraizados no pensamento-do-tempo de hoje (al. no original zeitgeist) ocidental. Não vai mudar.
Mas a nova política do presidente Putin, de limpar os estábulos de Áugias, removendo da Rússia o esterco do ‘capital ocidental predatório’, e o exemplo dado pela Rússia, de sua metamorfose rumo a uma economia amplamente autossustentável, imune à hegemonia do dólar, é música para os ouvidos do Sul Global e para grande parte do resto do mundo.
Considerados conjuntamente com a liderança de Rússia e China no desafio que estão impondo ao suposto ‘direito’ do Ocidente de estabelecer ‘a ordem’ de dar ordens a outros países; de monopolizar os meios (o dólar) como base para a pagamentos do comércio entre estados; e com os BRICS e a Organização de Cooperação de Xangai (OCX) ganhando cada vez mais a confiança dos ‘de baixo’, os discursos de Putin revelam sua agenda revolucionária.
Uma questão permanece: como levar a termo uma metamorfose ‘revolucionária’, sem incorrer em guerra com o Ocidente. Os EUA e a Europa estão encalacrados. São impotentes para se renovar, pois as respectivas contradições estruturais, políticas e econômicas mumificaram o paradigma pelo qual se estruturam. Como então ‘soltar’ a situação, a não ser pela guerra?
A chave, paradoxalmente, pode estar na profunda compreensão que Rússia e China mostram ter das falhas do modelo econômico ocidental. O Ocidente está carente de catarse, para ‘desemperrar’.
“Catarse” pode ser definida como o processo de ‘se soltar’, de liberar angústias para, assim, encontrar alívio de emoções fortes ou reprimidas associadas a crenças.
Para evitar a catarse militar, parece que as lideranças russa e chinesa – entendendo as falhas do modelo econômico ocidental – devem então ‘tocar’ a testa do Ocidente, com uma catarse econômica.
Será dolorosa, sem dúvida, mas menos dolorosa que a catarse nuclear. Podemos lembrar o final do poema de CV Cafavy, À espera dos Bárbaros
Porque a noite caiu e os Bárbaros não vieram.
E umas pessoas que chegaram da fronteira
dizem que não há lá sinal de Bárbaros.
E agora, que vai ser de nós sem os Bárbaros?
Essa gente era uma espécie de solução. [Antes de 1911]”
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* O quinto dos trabalhos de Hércules: limpar os estábulos de Aúgias em um dia. Era serviço considerado humilhante, pior, portanto que os demais trabalhos, e impossível, dado que o gado era divino, fortíssimo e super saudável e produzia prodigiosas quantidades de esterco. Mas Hércules completou a tarefa em um dia (desviou o rio Alfeu, que correu por dentro dos estábulos e lavou-os perfeitamente). Graças a essa solução ‘criativa’, Hércules escapou de executar trabalho considerado indigno, o que lhe tiraria a imortalidade e não caiu em desgraça [NT].
[1] Os Zelenskis, marido e mulher, são assunto de capa da revista Vogue ed. de 26/7/2022): “Retrato da valentia”. É o ridículo, já obsceno, ao cruzar com o pornográfico. Tudo, claro, declarado ‘democrático’ by Vogue [NTs].
Fonte: BACURAU