Síria e o mar de hostilidade

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Russian Foreign Affairs' Minister Sergei Lavrov's meeting with U.S. Secretary of State John Kerry

12/2/2016, Pepe Escobar, Sputnik

Traduzido por Vila Vudu

Não poderia haver início mais adequado para o Ano Chinês do Macaco, em termos geopolíticos, que a pantomima [orig. monkey business] encenada* em Munique entre o secretário de Estado dos EUA John Kerry e o ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergei Lavrov.

A pantomima prossegue na Síria, agora sob uma vaga “cessação de hostilidades” – que não é cessar-fogo – a ser implementada até a semana que vem. Adiante, dado que tudo se passa no mundo real, as “hostilidades” inevitavelmente recomeçarão.

Como Lavrov destacou inúmeras vezes, “fizemos propostas para implementar um cessar-fogo, bem específicas”. E Washington e o combo saudita-turco concederam. Uma Casa de Saud encurralada, com medo – com suas levas de “rebeldes moderados” controlados por controle remoto já sendo varridas em solo – até tentou espalhar o boato ridículo de que enviaria tropas de combate em solo, codinome, bandos de mercenários, para “auxiliar no esforço dos EUA” contra o Daesh (ISIL/ISIS/EI).

A pantomima alcançou tal nível de insustentabilidade que o primeiro-ministro russo Dmitry Medvedev sentiu-se obrigado a dizer ao jornalista que o entrevistava para o Handelsblatt da Alemanha, que “Os norte-americanos e nossos parceiros [árabes] devem pensar bem: querem mesmo guerra permanente?”

O sultão Erdogan e a Casa de Saud, sim, com certeza querem – porque estão em frangalhos os sonhos de mudança de regime na Síria. Mas o caso do governo pato manco de Obama é muito mais complicado.

Fiel à marca registrada, sempre em modo de política-externa-sem-noção, não há muito que a Equipe Obama possa fazer, além de distribuir conversa fiada e boatos.

Os proverbiais “funcionários não identificados do governo dos EUA” em maratona de hora-extra de ‘entrevistas’ nos veículos da mídia-empresa ocidental puseram-se a repetir que o adiamento da tal “cessação de hostilidades” seria armadilha russa – porque Washington queria cessar-fogo imediato (claro que queria! Os “rebeldes moderados” telecomandados pela CIA também estão sendo varridos da Síria). Vassalos europeus e árabes encarregaram-se de distribuir ‘declarações’ segundo as quais Damasco e Moscou estariam “torpedeando os esforços de paz”.

Mas fato é que Kerry cedeu – na verdade, à realidade. Lavrov deve ter deixado absolutamente claros os dois pontos que os russos definem como não negociáveis: vencer a Batalha de Aleppo, em curso; e vedar completamente a fronteira Síria/Turquia, tornando-a absolutamente à prova de ressurgimento da “rodovia jihadi” e de jihadistas de qualquer tipo, “moderados” ou imoderados.

Entra em cena a central de boatos de Munique

Há um complexo eco histórico sobre a guerra na Síria que está sendo negociado em paralelo, na Conferência de Segurança de Munique – tradicionalmente dedicada à segurança global. Mas a questão mais premente é se o novo Pacto de Munique realmente se manterá.

Garantido é que o Daesh (ISIL/ISIS/EI) e a Frente al-Nusra, conhecida como al-Qaeda na Síria, continuarão a ser atacados por russos e norte-americanos, mesmo depois da “cessação de hostilidades”.

A coalizão “4+1” – Rússia, Síria, Irã, Iraque, plus Hezbollah – também continuará a atirar contra qualquer grupo remotamente conectado à Frente al-Nusra (e são legião).


O Exército Árabe Sírio (EAS), por seu lado, também intensificará os ataques contra
Daesh (ISIL/ISIS/EI). Chame de síndrome “todas as estradas levam a Raqqa”. Tão logo a fronteira Síria/Turquia for vedada – com considerável ajuda dos curdos do YPG – a marcha sobre Raqqa será inevitável.

Esse é o panorama em solo para os próximos poucos dias. Portanto, não surpreende que o combo saudita-turco esteja absolutamente desesperado: se sequer tentarem usar sua força aérea para ajudar os “rebeldes moderados” lá-deles, a força aérea deles será reduzida a cinzas pela Força Aérea Russa.

Entra em cena mais boataria produzida no Excepcionalistão, segundo a qual a OTAN estaria “explorando a possibilidade” de unir-se à coalizão que os EUA lideram pela retaguarda, contra o Daesh (ISIL/ISIS/EI).

Nonsense. O Pentágono já está implicado. Grandes potências da OTAN como França e Alemanha só querem arrancar-se de qualquer crise síria, não meter-se em guerra de contato. Todo o golpe gira em torno do sultão Erdogan da Turquia, que insiste desesperadamente, sem parar, meter também a OTAN na mesma frigideira, ainda que implique provocação contra os russos, com efeitos letais. Afinal, é o velho sonho – hoje em cacos – de criar uma “zona segura” na fronteira Turquia/Síria, que se recusa a morrer.

O sultão hostil

Por trás da pantomima de “cessação de hostilidades” há um fato inegável: o governo pato manco de Obama não dá sinal de querer escalar aquelas proverbiais “tensões” com Moscou, nem de querer empurrá-las para nível irreversivelmente crítico (a obsessão do Pentágono/OTAN com Guerra Fria 2.0 é outra história). Os céus sírios não serão prelúdio para guerra total EUA-Rússia.

Mas não significa que o Pentágono desistirá de tentar.

Ash “Império do Choramingas” Carter do Pentágono e Michael Fallon da Grã-Bretanha se reunirão com militares do CCG e da Turquia em Bruxelas. E adivinhem quem chefiará a delegação saudita: Príncipe Guerreiro Mohammed bin Salman, atual El Supremo da Casa de Saud no pé em que as coisas estão hoje (considerando as idas e vindas da sanidade mental do rei Salman), e ministro da Defesa, responsável pelo desastre saudita no Iêmen.


O Príncipe Guerreiro está lívido, aterrorizado ante o fracasso de seus ‘rebeldes’ controlados por controle remoto, devastados em terra pelo Exército Árabe Sírio e pela Força Aérea Russa. E o Iêmen parecerá nada, comparado ao que suas ‘Forças Especiais”, codinome mercenários, sofrerão, como alvos dos ataques de combatentes experientes do Exército Árabe Síria, do Irã e do Hezbollah.

A farsa complica-se. Os dois lados negarão, mas há canais secretos já ativados pela Casa de Saud e Moscou para demarcar claramente as áreas a serem controladas pelo Exército Árabe Sírio e alguns “rebeldes” aceitáveis, na organização da luta contra ISIS/ISIL/Daesh. Assim se prova que sauditas e russos podem unir esforços, desde que seja realmente para lutar contra o jihadismo hardcore.

Com o enlouquecido sultão Erdogan, por outro lado, nenhum acordo ou negociação é possível, longe disso. Especialmente depois que os curdos sírios do nordeste da Síria, do PYD – que Ancara define como “terroristas” –, inauguraram escritório oficial em Moscou, na 4ª-feira passada, a convite do presidente Putin.

Assim sendo, fiquem de olho nessa “cessação de hostilidades”. Porque as hostilidades à vera podem estar só começando.

Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como:  Sputinik, Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today e Al-Jazeera.


* Monkey Business é título de duas comédias clássicas: uma de 1931, com os irmãos Marx; a outra de 1952, dirigido por Howard Hawks (detalhes nos links). A tradução acima é tentativa. Correções e comentários são bem-vindos [NTs].

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