Se isso desanda, será o ‘Fim do Império’

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8/6/2020, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation

Dia úmido quente, sopra uma leve brisa morna. A fumaça e o gás lacrimogêneo rodopiam no ar denso, adocicado, e o sol talha o ar como foice, em ângulos agudos. Está-se formando um protesto de massa. Jovens conversam; pessoas andam de um lado para o outro. Ainda não se configurou completamente, mas já se sente a tensão crua do conflito iminente, palpável como a fumaça no ar. É visível: hoje haverá violência.

Não, não é a América. É o posto de passagem, sempre em ponto de ignição, entre a colônia de judeus radicais de Beit El na Cisjordânia e sua interface com a cidade Palestina de Ramallah. Entre as duas, está o exército israelense, à espera de que comecem as hostilidades. Aconteceu durante a Segunda Intifada Palestina; era momento em que todos esperavam guerra, e eu estava presente, encarregado de observar esse e outros confrontos em andamento, como representante da União Europeia.

Como sempre, ando para a área posterior da multidão que se aglomera, porque só dessa perspectiva pode-se compreender a natureza dos eventos. Observa-se em ação a organização, sem os discursos. Homens jovens posicionam calmamente e sem que ninguém os impeça, as pilhas de pedras que serão atiradas depois (praticamente sem qualquer efeito) contra os soldados, que estão fora do alcance das pedradas. Então, os organizadores do protesto somem – desaparecem.

Sei o que está para acontecer. Acabo de ver dois atiradores tomarem posição, escondidos numa colina da qual veem o posto de passagem. É visão bem triste – os jovens que se aglomeram à minha frente não são perigosos; de modo geral são jovens sinceros, decentes, furiosos com as colônias de ocupação que não param de crescer, e atiçados pelos ‘animadores’ distribuídos entre a multidão para inflar emoções. Não são jovens perigosos.

Sinto-me triste, porque alguns deles, não há dúvida, logo estarão mortos, famílias enlutadas e em prantos pelos caídos de hoje. Mas são ‘bucha de canhão’ – carne inocente –, e é guerra. No auge do confronto, os atiradores disparam. Apenas umas poucas rajadas, mas é o que basta; atiram com silenciadores. Os soldados israelenses não veem de onde partem os tiros (eu vejo). Alguns jovens palestinos caem mortos; a fúria incendeia-se. O objetivo foi alcançado.

Por que escrevo sobre esses eventos de 20 anos? Porque conheço bem o padrão. Vi acontecer muitas vezes. É manual muito frequentemente usado. E vejo emergir aqueles mesmos sinais nos vídeos postados dos protestos que acontecem hoje nos EUA.

Impossível não ver as pilhas de tijolos que aparecem misteriosamente ao fundo em muitos dos vídeos dos protestos (aqui, por exemplo, seleção típica). Quem as distribui e posiciona? Quem está pagando? O comentarista norte-americano Michael Snyder, também observou a “complexa rede de batedores de bicicleta que se movimenta à frente dos manifestantes em direções diferentes da que a Polícia toma, ou para pontos onde não há Polícia, com o objetivo de conduzir grupos menores para… onde supõem que a Polícia não estará.”

Observa também a coleta antecipada de dinheiro para pagar fianças; a preparação de equipes médicas, para tratar feridos; e caixas de materiais inflamáveis (à mão, para incendiar veículos da Polícia) preposicionadas em locais onde, adiante, haverá protestos. Tudo isso – com protestos simultâneos em mais de 380 cidades dos EUA – segundo minha experiência, indica organização muito mais ampla, silenciosa, de coxia. E por trás da ‘organização’, estão os provocadores, distantes, talvez a milhares de quilômetros de distância; e lá estará também o dinheiro que tudo compra e paga.

Mesmo assim, comentaristas nos EUA insistem em que não se vê liderança; que os protestos são amorfos. Não é raro que não haja lideranças – só aparece alguma ‘liderança’ se se planejam ou esperam-se negociações; sem isso, os atores chaves têm de ser protegidos, para não serem presos. O sinal mais forte de que há organização clandestina é que num dia há grande agitação, no outro, tudo se acalma – como se alguém ‘desligasse’ a ‘máquina’. Frequentemente é o que acontece.

Claro, a grande maioria dos que protestaram nos EUA semana passada eram – e continuam a ser – norte-americanos decentes e sinceros, indignados ante o assassinato de George Floyd e o racismo social e institucional que nunca morre. Seria então operação de Antifa e anarquistas, como insiste a Casa Branca? Duvido que seja – assim como aqueles jovens palestinos em Beit El eram apenas ‘combustível’ para manter a encenação na parte visível do palco. Simplesmente não conhecemos as coxias, o que está por trás do palco. Fiquem atentos, mantenham a cabeça aberta.

Tom Luongo sugeriu, premonitório, que se quiséssemos compreender melhor o contexto desses eventos recentes – sem nos deixar paralisar pela cena que nos é mostrada no palco iluminado – deveríamos procurar indicadores nas manifestações em Hong Kong.

Escrevendo em outubro de 2019, Luongo observou que: “O que começou como protestos pacíficos contra uma lei de extradição e preocupação com a reunificação com a China converteu-se em assalto feio e vicioso contra o futuro econômico da própria cidade. [O assalto] está sendo perpetrado pelo chamado “Block Bloc” (sic), bandos de mascarados, vândalos que usam táticas para enfrentar policiais e que atacam em diferentes pontos da cidade, para dificultar o trânsito de que tem de ir trabalhar”.

Um morador da cidade, exasperado exclama: “Vocês [i.e. Block Bloc (sic)] agridem não apenas as pessoas que vivem do próprio trabalho, empresas, centros de comprar, companhias. Vocês destroem estações do Metrô. Vocês destroem nossas ruas. Vocês estão destruindo nossa reputação, que tanto nos custou construir, de cidade segura, e centro internacional seguro para os negócios. Vocês estão destruindo nossa economia”. O homem não pode explicar por que não se veem policiais, nem um, que fosse, na área, ao longo de horas, enquanto os saques continuavam.

O que está acontecendo? Luongo cita entrevista de setembro, em Bloomberg, com Jimmy Lai, magnata de Hong Kong, bilionário, publisher do Apple Daily, flagelo do Partido Comunista Chinês, e interlocutor de alta visibilidade de notáveis da Washington oficial como Mike Pence, Mike Pompeo e John Bolton. Naquela entrevista, Lai declarou-se convencido de que, se os protestos em HK ficassem violentos, não restaria alternativa à China, que teria de mandar unidades da Polícia Armada do Povo, de Shenzen para Hong Kong, para pôr fim à agitação: “E” – disse Lai à Bloomberg TV, – “será repetição do massacre da Praça Tiananmen; e todo o mundo voltar-se-á contra a China… Hong Kong estará acabada e (…) a China também estará acabada.”

Em resumo, Lai propõe ‘queimar’ Hong Kong – para ‘salvar’ Hong Kong. Quer dizer, ‘queimá-la para salvá-la’ do Partido Comunista Chinês – e manter na ‘anglosfera’ o que restar.

“Jimmy Lai” –, escreve Luongo –, “está dizendo que a estratégia é essa, está aí. O objetivo é minar completamente a posição da China no cenário mundial e promover a posição dos EUA. É guerra econômica, uma tática de guerra híbrida. E os soldados são crianças uniformizadas batendo com porretes em cabeça de velhos e assustando policiais. Soa familiar? É porque também está acontecendo em locais como Portland, Oregon com Antifa (…) E essa causa é o caos”. (Não esquecer: Luongo escreveu isso há mais de seis meses).

OK, voltemos para hoje: Steve Bannon, aliou-se intimamente com o que ele mesmo chama de os superfalcões da China nos EUA e aliou-se também com outro financista chinês bilionário, Guo Wengui (fugitivo das Autoridades Chinesas e membro do Mar-a-Lago Club de Trump), e dedica-se a campanha incendiária de calúnias e acusações e ataques contra o Partido Comunista Chinês – que visa, como a campanha de Lai, a destruir completamente o prestígio e a posição da China no mundo.

Aqui, outra vez – o bando de parcerias estreitas e muito fortes entre superfalcões exilados e norte-americanos quer ‘queimar’ o Partido Comunista Chinês para ‘salvar’ o quê? ‘Queimar’ o ‘Império Ascendente’ (China), para salvar o ‘Império Minguante’ (EUA). Bannon (pelo menos, e, diga-se, por mérito seu), é explícito quanto ao risco: algum fracasso que leve à derrota nessa infoguerra montada contra o PCC, diz ele, terminará em “guerra cinética”.

Assim sendo, de volta aos protestos nos EUA e considerando os insights de Luongo sobre Hong Kong – escrevi semana passada que Trump vê-se combatendo uma ‘guerra’ global oculta para preservar a atual dominação, pelos EUA, sobre o dinheiro global (o dólar) – agora a principal fonte de poder externo dos EUA.

Derrota dos EUA frente a alguma governança multilateral cosmopolita putativa – é a percepção de Trump – resultaria em total ejeção dos EUA para fora da anglosfera branca, a qual perderá o controle do sistema financeiro global e do privilégio político associado a esse controle. Implicaria que o controle sobre o sistema financeiro e político global escaparia, das mãos dos EUA, para as mãos de uma governança financeira multilateral amorfa, operada por instituição internacional, ou por algum Banco Central global. Desde antes da 1ª Guerra Mundial, o controle sobre a governança financeira global sempre esteve em mãos do nexo anglo-norte-americano Londres-New York. Ainda está – ainda que a elite da Wall Street de hoje seja cosmopolita, não ‘anglo’, mesmo que firmemente ancorada a Washington, via o Fed e o Tesouro dos EUA. Se isso desanda, será o ‘Fim do Império’.

Para manter o status do dólar, Trump portanto devotou-se assiduamente a tumultuar a ordem global multilateral, sentindo o perigo que é para os privilégios únicos assegurados pelo controle sobre a base monetária mundial. Sua preocupação particular é vir a conhecer uma Europa já umbilicalmente ligada à China, esse peso-pesado financeiro e tecnológico. Por si só, isso pressagiaria efetivamente uma já diferente governança financeira mundial.

Mas é justificado o medo de que a ameaça venha principalmente da visão de Europa estilo Soros? Pode haver também uma quinta-coluna em casa. O clube dos bilionários há muito tempo deixou de ser culturalmente ‘anglo’. Tornou-se, ele mesmo, entidade governante que se ‘auto-seleciona’.

Talvez uma metamorfose ‘fim de Época’ anterior mostre-nos o quão rapidamente uma elite há muito tempo estabelecida é capaz de trocar de cavalo para sobreviver. No romance histórico siciliano O Leopardo, o sobrinho do príncipe Salina diz ao tio que a velha ordem ‘acabou-se’ e com ela, a família também está ‘acabada’, a menos… “A menos que nós mesmos assumamos as rédeas agora, eles nos farão engolir uma república. Se queremos que as coisas fiquem como estão, as coisas terão de mudar”.

É claro que alguns oligarcas bilionários – norte-americanos ou não – já veem o que está ‘escrito na parede’: vem aí uma crise financeira. E também uma crise social. Pesquisa recente feita por um desses agentes mostrou que 55% dos norte-americanos millennials [nascidos entre 1980 e 2000 (NTs)] apoiavam o fim do sistema capitalista. Talvez a irmandade dos bilionários creia que ‘a menos que nós mesmos assumamos as rédeas agora, eles nos farão engolir um socialismo’. Se queremos que as coisas fiquem como estão, as coisas terão de mudar. A desordem recente nos EUA deve tê-los deixado ainda mais nervosos.

O impulso rumo mudança radical – rumo àquela governança financeira, política e ecológica global que ameaça a hegemonia do dólar – pode, paradoxalmente surgir lá mesmo: emergir de dentro da própria elite financeira dos EUA. ‘Queimar’ o status global privilegiado do dólar pode passar a ser visto como o preço a pagar  para que as coisas fiquem como estão — e para salvar aquela elite.

O futuro do Império está atado a essa pergunta: a hegemonia do EUA-dólar pode ser preservada? Ou quem sabe a ‘nobreza’ financeira decidirá que as coisas devem mudar – se ela vir chances de ficar como está? Quer dizer: a Revolução pode vir de dentro, não necessariamente do ‘exterior’.

Recentemente, Trump passou a ser o presidente da ‘Lei e da Ordem’ – mudança que ele explicitamente conectou a 1968, quando, em resposta a protestos em Minneapolis depois de a polícia ter sufocado George Floyd até a morte, semana passada, Trump tuitou: “Quando os saques começam, começam os tiros”. São palavras do governador George Wallace, segregacionista, terceiro candidato na eleição presidencial de 1968: os Republicanos lançaram sua “estratégia sulista” para conquistar os Democratas brancos ressentidos depois da revolução dos direitos humanos.

Trump está decidido a vencer – mas hoje não é 1968. Poderá uma plataforma de Lei e Ordem funcionar hoje? A demografia dos EUA mudou no sul, e não está claro se o eleitorado liberal urbano dos EUA se interessará por plataforma de “Lei e Ordem” a qual implicitamente apela às ansiedades dos brancos.

O presidente Trump está entre a cruz e a caldeirinha. Se os protestos não forem contidos, e “o normal (nem sempre), restaurado” (nas palavras de [Secretário da Defesa Mark] Esper), Trump pode perder esses conservadores de ‘lei e ordem’ remanescentes. Mas se Trump perder o controle e reagir com excessos, usando os militares, então pode acontecer de Trump ter sua pessoal “Praça Tiananmen” – a mesma que Jimmy Lai previu (risonhamente) para o caso de Hong Kong conseguir indispor todo o mundo contra a China: “Hong Kong estará acabada e (…) a China também estará acabada.”

Nesse caso, Trump pode estar acabado… e os EUA, também.

Traduzido por Vila Mandinga

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