‘Sanções econômicas’ são crimes de guerra

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22/1/2018, Patrick Cockburn, Counterpunch

Os primeiros patéticos pedaços de barcos pesqueiros norte-coreanos naufragados conhecidos como “navios fantasmas” que já apareceram esse ano foram dar às costas do norte do Japão. São os restos destroçados de frágeis barcos de madeira com motores pouco confiáveis, nos quais pescadores da República Popular Democrática da Coreia do Norte, RPDC (‘Coreia do Norte’) têm de avançar para mar alto em pleno inverno, numa busca desesperada de peixe para comer. Frequentemente só restam fundos destroçados de barcos lançados à praia. Mas em alguns casos os japoneses encontram corpos de marinheiros mortos de fome e sede à deriva pelo Mar do Japão. Ocasionalmente, encontra-se algum pescador sobrevivente o suficiente para contar que o motor falhou, ou o combustível acabou, ou foram vítimas de qualquer outra fatalidade. O número de “navios fantasmas” só faz aumentar. Em 2017 foram encontrados 104, mais do que no ano anterior, embora o número real possa ser muito maior porque muitos barcos desaparecem sem deixar traços nas 600 milhas de mar furioso entre a RPDC e o Japão. A razão pela qual tantos pescadores arriscam e perdem a vida é a fome. E o pescado é a forma mais barata de proteína ainda acessível. Os pescadores têm quotas a cumprir, que os obrigam a avançar para mar alto. Parte do que pescam é vendido à China, o que faz do pescado um dos principais dentre os poucos itens de exportação da RPDC. O fato de pescadores da RPDC terem de enfrentar riscos cada vez maiores e morrerem em número cada vez maior a cada ano é evidência de que as sanções internacionais impostas à RPDC são, em dado sentido perverso, bem-sucedidas: o país está claramente sob severa pressão econômica. Mas, como em outras sanções aplicadas contra outros países no passado e no presente, a pressão não castiga os governantes – a maioria dos quais dá sinais de sobrepeso, roliços e corados –, mas castiga impiedosamente os mais pobres e impotentes. O resultado de sanções econômicas que tenham forçado alguma mudança política é pífio, mas como ferramenta para reduzir um país à pobreza e à miséria, as sanções econômicas, difícil encontrar arma mais eficaz. A ONU impôs sanções ao Iraque, de 1990 até 2003. Supostamente, aquelas sanções teriam por alvo Saddam Hussein e seu governo, apesar de ter conseguido rigorosamente nada no sentido de enfraquecê-los ou tirar Saddam no poder. Muito ao contrário: a elite política Baathista aproveitou-se da escassez de vários itens para enriquecerem, convertendo-se em fornecedores únicos. O filho mais velho de Saddam fez fortuna controlando toda a importação de cigarros para o Iraque. Os burocratas encarregados das sanções da ONU no Iraque, sempre repetiram a ideia, sem qualquer fundamento, de que as sanções teriam impedido que Saddam reconstruísse sua força militar. Essa sempre foi mentira hipócrita: o exército iraquiano já não lutava por Saddam em 1991 no início das sanções, assim como não lutaria depois de as sanções serem levantadas. Se governantes no mundo dito ‘livre’ absolutamente não sofrem com o sofrimento dos mais pobres do próprio povo, absurdo ainda maior será esperar sofrimento solidário de governantes no mundo dito ‘não livre’. O sofrimento de países sob sanções é muito real. Várias vezes visitei hospitais iraquianos nos anos 1990s quando já não havia oxigênio, nem pneus para as ambulâncias. Uma vez, vi correrem na minha direção, num campo na província de Diyala, ao norte de Bagdá, agricultores locais que agitavam imagens de raios-X dos filhos, porque imaginavam que eu pudesse ser algum médico estrangeiro em visita ao país. Saddam Hussein e seus principais comandantes foram executados, mas os políticos e funcionários dos países estrangeiros responsáveis pelo regime de sanções que matou milhões bem mereciam estar com ele no mesmo cadafalso. É hora de todos aprenderem a ver a imposição de sanções econômicas como crime de guerra, dado que implica castigo coletivo para milhões de civis inocentes que morrem, adoecem ou são obrigados a tentar sobreviver de comida que encontrem nos depósitos de lixo. Até aqui, não digo qualquer novidade. Sanções econômicas são como um cerco medieval, só que acompanhados de vasto aparelho de propaganda e publicidade moderna, pagas a peso de ouro para justificar e tornar palatável (à consciência dos povos dos países ricos sancionadores) a mortandade. De diferente, que aqueles cercos medievais visavam a provocar fome numa única cidade ou bairro. Hoje, o cerco visa a submeter, pela fome e pela doença, países inteiros. Detalhe que seduz políticos serviçais das grandes fortunas é que é possível vender as sanções ao grande público – embora não, claro, ao próprio povo supliciado –, como se fosse solução ‘mais humanitária’ que a ação militar. Sempre se constrói e divulga-se incansavelmente a falsidade de que comida e equipamento médico seriam admitidos sem restrições, e nada se diz dos obstáculos financeiros e outros (leis e regulamentos) que tornam impossível que comida e remédios cheguem aos pontos em que são vitalmente necessários. Exemplo disso são as sanções criminosas impostas à Síria pelos EUA e pela União Europeia, as quais supostamente visariam a enfraquecer o presidente Bashar al-Assad e facilitariam o golpe para depô-lo do governo. Fracassaram completamente. E relatório internacional da ONU de 2016 que vazou demonstra cabalmente que o embargo só fez impedir que agências de ajuda humanitária internacional levassem aquela ajuda até onde ela era mais necessária. Não era possível importar os materiais, apesar das ‘garantias’ oficiais, porque bancos e empresas comerciais temem ser penalizados por manter qualquer tipo de relação com a Síria. O relatório cita um médico europeu que trabalhava na Síria; para ele “o efeito indireto das sanções (…) torna inviável importar instrumentos médicos e outros itens indispensáveis, quando não completamente impossível.” As pessoas de bem também devem indignar-se ante o impacto dessas ‘dificuldades burocráticas, tanto quanto se horrorizam ante hospitais bombardeados e sob ataque de artilharia. Mas imagens de aparelhos de raios-X ou de diálise paralisados porque não há peças de reposição nunca conseguirão desbancar, em matéria de espetáculo midiático, as imagens encenadas de crianças falsamente feridas ou de postas de carne esquartejada em campos de batalha que copiam a ficção ‘de guerra’ de Hollywood. Os que morrem porque os equipamentos médicos foram inutilizados pelas sanções morrem longe das câmeras e sem drama. Embargos são tediosos. Só a guerra é excitante. Uns poucos ataques falhados de foguetes contra Riad, vindos de forças Houthi no Iêmen são furiosamente ‘repercutidos’ nos ‘noticiários’, ainda que não tenham morrido nenhum cidadão saudita. Imaginem essa cobertura e o silêncio sepulcral que cobre o embargo saudita contra o Iêmen controlado pelos Houthi, que já ajudou a provocar a maior mortandade da história recente, por fome provocada pelo homem. Como se não bastasse a fome, há mais de 1 milhão de casos suspeitos de cólera, e 2.000 iemenitas morreram confirmadamente de cólera, segundo a Organização Mundial de Saúde. ‘Operações’ de Relações Públicas para tornar as sanções palatáveis à consciência são frequentemente idênticas, por mais que mudem as circunstâncias. Um dos ‘argumentos’ é que o dano econômico infligido às populações impediria que os agredidos gastem dinheiro em armas e terror. O presidente Trump denuncia o acordo nuclear com o Irã pelo ‘argumento’ de que ‘liberaria’ dinheiro iraniano para aventuras no exterior, por mais que as tais ‘aventuras’ sejam baratas e, no Iraque, as atividades do Irã provavelmente geram lucro. Sanções são sempre um castigo coletivo, como os bombardeios contra Aleppo Leste, Raqqa e Mosul. É possível que as sanções matem mais que bombas e ogivas, porque se arrastam durante anos e têm efeito cumulativo. A morte de tantos pescadores da República Popular Democrática da Coreia em barcos precários é efeito colateral das sanções, mas não é evento excepcional no efeito tóxico. Mais uma vez, os EUA e demais ‘sancionadores’ estão atirando contra o alvo errado e absolutamente nada conseguem contra Kim Jong-un, exatamente como nada conseguiram contra Saddam Hussein.

Traduzido por Vila Vudu

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