Recado à China (mas interessa também ao Brasil)

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DÓLAR HOJE | AgroNovas

14/1/2020, Michael Hudson, Blog (dica de Pepe Escobar, pelo Facebook)

Meu livro Super Imperialism (aqui, trad. ao espanhol) tratou do modo como os EUA conseguiram almoço grátis, ao fixar o dólar como moeda internacional de reserva, substituindo o ouro. Mostrei também que o déficit na balança de pagamentos dos EUA consiste quase inteiramente de gastos militares relacionados à defesa e à manutenção de 800 bases norte-americanas em todo o mundo. Ao pôr fim ao padrão ouro, criou-se em 1971 uma situação na qual o excesso de dólares emitidos pelos EUA para cobrirem o próprio déficit acabou nos cofres de bancos centrais estrangeiros.

Para esses bancos centrais, o influxo de dólares em excesso cria o problema de o que fazer com eles. Bancos centrais não compram ações e títulos, nem controlam empresas, porque são operações de risco e não ajudam diretamente a própria economia. Assim sendo, bancos centrais compram títulos do Tesouro dos EUA – notas promissórias garantidas pelo governo dos EUA. Os dólares que EUA gastam para administrar um déficit da balança de pagamentos, por conta dos militares e de investidores americanos que compram ações chinesas e empresas chinesas, são reciclados de volta para os Estados Unidos, para comprar títulos do Tesouro americano.

Desse modo, o déficit na balança de pagamento serve para financiar o déficit no orçamento doméstico do governo dos EUA. Quanto maior o déficit na balança de pagamentos dos EUA, conforme aumentam os gastos militares e políticos dos EUA pelo mundo, mais bancos centrais estrangeiros acabam por financiar o déficit no orçamento doméstico… dos EUA.

Assim, o Tesouro dos EUA fica livre de ter de equilibrar o orçamento para não ser obrigado a tomar empréstimos de investidores norte-americanos. E mais e mais bancos centrais estrangeiros vão-se tornando credores da dívida federal dos EUA. Significa que países estrangeiros estão, eles mesmos, financiando os custos de se manterem cercados por 800 bases militares norte-americanas. Por isso os EUA podem fazer ameaças militares, nos casos em que não tenham conquistado intelectualmente países que não deem sinais de aceitar a política de financeirização, da Universidade de Chicago e do FMI.

Outra razão para não usar dólares é evitar o risco de se tornar alvo dos EUA, do mesmo modo como o Irã e outros países foram atacados. Os estrategistas norte-americanos ameaçaram bloquear o acesso de bancos estrangeiros ao sistema SWIFT de compensações internacionais. Impuseram sanções contra investidores europeus que financiassem o gasoduto “Ramo Norte” (Nordstream); e impuseram penalidades unilaterais a outros governos que não se posicionaram a favor dos investidores norte-americanos.

A estratégia dos EUA para controlar a economia chinesa, e assim forçar os chineses a vender os setores mais rentáveis da própria economia a investidores norte-americanos, é forçar os chineses a só investir na própria indústria, se tomarem empréstimos dos EUA.

Assim sendo, a pergunta é: como China, Rússia, Irã e outros países livram-se dessa estratégia de dolarização, que os EUA impuseram e querem manter contra todo o planeta?

Obviamente, a solução é a China evitar os EUA-dólares, para assim se livrar do controle que os EUA exercem sobre sua economia. Para fazer isso, a China tem de ter moeda não-dólar. Essa moeda alternativa tem de ser suficientemente grande para alcançar massa crítica, a ponto de poder ser usada internacionalmente. Essa é a razão pela qual China, Rússia, Irã e aliados tentam criar sua própria área monetária, incorporando grande parte da Organização de Cooperação de Xangai. O objetivo é conseguir que todo o comércio exterior, investimentos e gastos do governo sejam denominados na própria moeda ‘local’.

É necessário livrar-se não só do EUA-dólar, mas também do FMI. O objetivo da política monetária dos EUA e do FMI para a China é, basicamente, tornar a economia chinesa ainda muito mais cara e ineficiente que a economia dos EUA. Os EUA vivem sob dois déficits, de orçamento e da balança de pagamentos, que criam o EUA-dólar. Os EUA nem esperam pagar nem planejam pagar suas dívidas. Outros países serão tratados como ‘muletas’, no lugar do ouro.

Mas, fora dos EUA, diz-se que os países, para financiar os respectivos déficits de orçamento, devem vender toda e qualquer propriedade nacional – a saber, terra, construções, recursos naturais, toda a infraestrutura e construções da produção e distribuição de energia.

O ideal, para os EUA, seria que a China ‘liberasse’ os investidores norte-americanos para fazerem o que fizeram à Rússia depois de 1991. Disseram à Rússia que era preciso que o país garantisse apoio ao rublo doméstico, mantendo em caixa quantia equivalente de EUA-dólares, sob a forma de empréstimos privados ou de papéis do Tesouro dos EUA denominados em dólares, é claro. Implicou tomar dólares emprestados dos EUA, em vez de simplesmente emitir rublos domésticos. A Rússia pagou juros de 100% ao ano, a investidores norte-americanos, em 1993-1994.

Nem assim a Rússia conseguiu câmbio para pagar salários em rublos ou para comprar bens ou serviços domésticos. Mas conselheiros neoliberais convenceram a Rússia a oferecer EUA-dólares como remuneração de todo o crédito em rublos que criara. Para conseguir esses dólares, a Rússia pagou juros inacreditáveis aos EUA, em troca de dólares desnecessários. Aquela ‘remuneração’ não era necessária. No fim dessa trajetória, os EUA convenceram a Rússia a liquidar suas matérias primas, as minas de níquel, as usinas de eletricidade, as reservas de petróleo e, por fim, ainda tentaram arrancar da Rússia a Crimeia, como presa.

Imaginem que a China aceitasse plano semelhante, dos EUA. A certa altura, teria de vender Macau e Hong Kong para serem convertidas em bases militares dos EUA. Seria ‘aconselhada’ a vender aos EUA todas as informações que o país tenha acumulado do campo tecnológico. E, politicamente, a diplomacia norte-americana quereria que a China se autodividisse em três ou quatro países, a começar por fazer de Xinjiang, país separado. Essa estratégia de dividir-para-governar visa a esquartejar a China. Para alcançar esse objetivo, os EUA usam a política financeira.

Os EUA descobriram que não é necessário invadir militarmente a China. Não têm de conquistar a China. Não têm de usar armas militares, porque têm a arma intelectual da financeirização. Basta convencer o inimigo de que ele precisaria financeirizar-se, para ‘equilibrar’ a própria economia ‘desequilibrada’. Assim, quando a China (como o Brasil e outros países) envia seus estudantes para os EUA, especialmente quando envia banqueiros centrais e planejadores para os EUA para estudar (e serem recrutados), o que os EUA lhes ensinam é: “Façam o que nós ensinamos, não o que nós fazemos”.

Os EUA não estão dizendo à China, Rússia, países do terceiro mundo ou Europa como enriquecer pela mesma via pela qual os EUA enriqueceram: com tarifas protecionistas, tendo criado o próprio dinheiro e depois de tornar outros países dependentes dos EUA.

Os EUA não querem um mundo de nações independentes e autossuficientes. Os EUA querem que a China aceite que a convertam em país dependente das finanças norte-americanas, para que as finanças norte-americanas, não a China, invistam na indústria chinesa. Querem que as corporações chinesas, brasileiras e outras tomem empréstimos dos EUA (e lhes paguem juros!). Querem que as corporações chinesas vendam suas ações a investidores norte-americanos. Exatamente como, na Rússia, Khodorkovsky tentava vender o petróleo da Yukos à Standard Oil. Essencialmente, queria transferir as reservas de petróleo da Rússia a investidores norte-americanos.

Os Estados Unidos estão tentando convencer a China [o Brasil e outros países], de que o sistema fiscal chinês deveria basear-se no aumento do custo da mão-de-obra chinesa. O objetivo dos Estados Unidos é prejudicar a China, convertê-la em economia de alto custo, mediante a imposição de um imposto sobre o valor agregado, um IVA, que aumentará o custo dos bens de consumo.

O objetivo desta política fiscal anti-industrial é fazer com que você pague aos trabalhadores do seu país um salário suficientemente alto para pagar os impostos sobre os bens de consumo.

Nos EUA, os capitalistas jamais conseguiriam aprovar tal imposto. Haveria uma revolução.

O que surpreende é que não haja revolução na China [nem no Brasil!] e em outros países. São países crédulos, que engoliram a lógica dos economistas norte-americanos que ensinam e treinam estudantes que aqueles mesmos países enviam às universidades norte-americanas, esperando que eles voltem aos seus países e ali elaborem plano para a China (para o Brasil e outros países) segundo as linhas neoliberais.

O plano neoliberal não visa a tornar os países independentes, nem a ajudá-los a crescer – se não nos casos em que o crescimento local seja pago a investidores norte-americanos ou usado para financiar gastos militares americanos ao redor do mundo. Os EUA só pensam em cercar e desestabilizar grandes países. Só pensam em desestabilizar a China em Sichuan, para dividir a China. Só pensam em destruir o norte do Brasil, para dividir o Brasil.

Veja-se o que os EUA fizeram à Rússia, e o que o FMI fez à Grécia, à Letônia e aos Estados Bálticos. É um ensaio geral do que a diplomacia americana gostaria de fazer com a China (e com o Brasil!), se ela conseguir convencer China, Brasil e outros países a seguir a política econômica neoliberal dos EUA (para o mundo, não para os EUA) de financeirização e privatização.

Só a desdolarização pode salvar os países, da privatização e da financeirização à moda EUA.

Traduzido pelo coletivo Vila Mandinga

 

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