Putin é a voz da Eurásia independente

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Saker drawing from community

8/8/2015, Ghassan Kadi, The Vineyard of the Saker

Tradução Vila Vudu


EUA e União Soviética chegaram em pés de igualdade à principal crise no Levante, a saber, ao conflito árabe-israelense nos anos 1950s, 1960s e primeira metade dos 70s. Muitos, especialmente no campo árabe, pensam de outro modo, e consideram que o apoio dos EUA a Israel sempre teria sido maior que qualquer apoio que a URSS algum dia ofereceu a qualquer estado árabe; nem se pode dizer que estejam muito longe da verdade.

Dentre outras coisas, o apoio dos soviéticos aos seus parceiros árabes, vale dizer, Egito e Síria, inferior ao desejado, foi motivado pela baixa confiança que os soviéticos depositavam nas capacidades políticas dos líderes árabes naquele momento, e pela baixa estabilidade política propriamente dita, naqueles estados.

A Síria atravessava período de turbulência política e uma série de golpes militares, e embora o Egito estivesse sob o firme comando do presidente Nasser, os soviéticos provavelmente viam, acertadamente, que Nasser almejava muito mais do que jamais conseguiria ter. Para os soviéticos, Nasser era mais um sonhador, ‘astro’ político popular à moda dos astros de Hollywood, e canhão que atirava para qualquer e todos os lados, do que estrategista e parceiro viável. Mas nada disso impediu que os soviéticos garantissem ao Egito e à Síria armas e apoio político.

Depois das desastrosas perdas árabes da guerra de junho de 1967 [a chamada ‘guerra dos seis dias’, de Israel contra os árabes] e a humilhação das armas e tanques de fabricação soviética, os soviéticos mesmo assim permaneceram ao lado dos árabes, para ajudá-los a lamber as feridas. Apoiaram cada resolução do Conselho de Segurança da ONU que favorecesse seus amigos árabes e envolveram-se seriamente na reconstrução dos exércitos sírio e egípcio, o que possibilitaria que, em outubro de 1973 [derrota de Israel, na guerra Egito/Israel], aqueles estados reconquistassem partes do território que haviam perdido antes, em 1967.

Mas o presidente Sadat venderia a alma ao demônio, se o demônio lhe devolvesse o Sinai. Kissinger foi quem o convenceu a assinar acordo unilateral com Israel, o que encurralou a Síria e roubou do muito corajoso e astuto presidente Assad a vantagem de contar com um parceiro no grupo de negociação. Em termos de geopolítica global, as conversas e acordos negociados e patrocinados por Kissinger efetivamente puxaram o tapete sob os pés do Kremlin.

Daquele ponto em diante, o papel e a estatura da URSS foi muito mais gravemente atingida do que simplesmente ter sido marginalizada. Cada acordo e todos os acordos, a partir do infame Acordo de Camp David, até o famoso aperto de mão Rabin-Arafat, foram iniciados e patrocinados pelos EUA.

Mas aquela situação logo mudaria.

O apoio incondicional dos EUA a Israel não deixava qualquer espaço para negociação, e a insatisfação árabe estava chegando ao ponto de ruptura. Assim os árabes acabaram divididos em dois campos: o campo “EUA sempre!” e o campo da Resistência.

Uma vez que a Rússia tinha seus próprios assuntos pós-URSS dos quais dar conta, o campo da Resistência – basicamente a Síria e o Hezbollah – encontrou no Irã um bom e útil aliado regional.

Quando Bush-Pai declarou que a partir de então o mundo estaria sob uma “Nova Ordem Mundial” [orig. “New World Order’ (NWO)], os norte-americanos declararam que o mundo passava a ser campo de jogo sem regras para Washington e as suas mais alucinadas ‘políticas’. George Bush Kid (1º) disse exatamente isso, mais claramente que o pai, quando disse que “ou estão conosco, ou estão contra nós”. Aparentemente, poucos observadores dedicaram-se a ler nas entrelinhas de Bush Kid. Àquela altura, Bush Kid já definira o seu “eixo do mal”, e suas ações subsequentes efetivamente significaram que nenhum Estado que não concordasse total e incondicionalmente com os EUA, qualquer nação que apenas tentasse tomar decisões independentes, seria tratada pelos EUA, como afinal tantas, como Estado inimigo.

O Oriente Médio era local perfeito para os EUA porem em prática esse projeto. Afinal, a segurança de Israel é item de alta prioridade na agenda dos EUA, e a tragédia do 11/9 forneceu pretexto e justificativa para lançar ataques contra Saddam e os Talibã, todos globalmente impopulares.

O resto é história, mas, mesmo sem terem tido de confrontar qualquer rivalidade internacional, as políticas dos EUA absolutamente não levaram paz ao Oriente Médio; no máximo, deram a Israel uma segurança falsa, ilusória.

Fracasso no Afeganistão seguido por mais fracasso no Iraque; a Líbia destruída e abandonada em estado de total anarquia; e tudo isso sem conseguir garantir um estado aos palestinos, qualquer estado, absolutamente qualquer estado, que fosse, todos esses fracassos, afinal, cobraram o seu preço aos EUA.

Os EUA já não são capazes de operar como mediadores; ninguém em lugar algum confiaria nos norte-americanos como mediadores. Aos olhos do presidente Hafez Assad, os EUA desmoronaram e perderam estatura logo depois de Camp David. Outros líderes regionais precisaram de mais tempo até aprender.

Atualmente, até os mais firmes aliados regionais dos EUA, a saber, israelenses e sauditas, desencantaram-se completamente, depois do acordo nuclear com o Irã. A menos que Erdogan responda como os EUA desejam, a favor dos interesses dos EUA, e dê combate ao ISIS – apesar de o principal objetivo de Erdogan ser alimentar a crise, para usá-la como pretexto para bombardear os curdos do PKK –, a merda com certeza alcançará as pás do ventilador sobre a cabeça da aliança EUA-Turquia.

A pura estupidez das políticas dos EUA para o Levante deixou absolutamente todos absolutamente insatisfeitos. Os EUA não são capazes, sequer, de dar ao povo judeu alguma paz, que buscam tão desesperadamente, não só desde a invenção de Israel, mas desde o Holocausto; nem mesmo alguma paz ilusória, que fosse.

No máximo, os EUA conseguiram prover Israel com superioridade militar, mas essa é a doutrina dos EUA, baseada no princípio segundo o qual, se força proporcional não resolver algum problema, força superior, desproporcional, com certeza resolverá. Esse modelo não foi bom modelo para o rebento bem amado dos EUA, codinome “Israel.

Com a terceira força aérea mais poderosa do mundo, um dos maiores e com certeza mais avançados exércitos e muito provavelmente com algumas centenas de bombas atômicas, os israelenses continuam a tremer de medo de mísseis Qassam feitos em casa e rojões improvisados disparados de Gaza que podem alcançar Telavive, e, se forem disparados, provavelmente empurrarão habitantes da capital para o fundo de tocas-abrigos antibombas usando máscaras contra gás. Nem é preciso lembrar o arsenal de mais de 100 mil mísseis do Hezbollah, posicionados para atingir Eilat e outros alvos igualmente distantes. A superioridade militar de Israel não bastou para garantir qualquer paz aos próprios cidadãos, e, bem feitas as contas, só gerou adversários cada vez mais furiosos e mais determinados.

Voltando aos árabes: desde o infame Lawrence da Arábia e suas promessas ocas, promessas que o governo de Sua Majestade George 5º renegou desavergonhadamente, diferentes líderes e estados árabes têm tido de lidar com algumas de suas reencarnações políticas. Numa daquelas reencarnações, sob a forma de Kissinger, Lawrence devolveu o Sinai ao Egito e declarou que passava a ser obrigatório, por lei, que os EUA sempre defendam Israel. Claro que, mais uma vez, a ‘solução’ não trouxe qualquer paz real, nem para a região nem para o super-estado recém reformado que ele deu jeito de reinventar.

Quando um Lawrence criado na Arábia Saudita reencarnou como Bandar Bin Sultan, supôs que seria o único suficientemente próximo dos norte-americanos a ponto de poder confiar neles. Afinal, fora o embaixador saudita em Washington durante décadas, era amigo pessoal do clã Bush. Nunca se deu conta de que, entre aqueles, nunca fora tratado como igual: Bandar via os Bush como aliados; os Bush o viam, quando viam, com supremo desprezo.

No contexto, os EUA terem tomado conta da diplomacia, como pretensos e autoproclamados mediadores políticos no Levante, foi como pôr um touro para cuidar de uma loja de porcelanas.

O Eixo da Resistência, a saber, Síria-Irã e o Hezbollah, nunca confiou nos EUA. Não surpreende que o Eixo da Resistência tenha-se recusado a participar dos jogos dos EUA. E Síria-Irã e o Hezbollah tiveram de se defender sozinhos, enquanto a Rússia mal conseguia respirar durante os muito dolorosos anos da era Yeltsin.

Até que o presidente Putin trouxe a Rússia de volta para o centro do palco do poder mundial e decisivamente desmantelou a declarada Nova Ordem Mundial dos EUA, ‘usando’ a Síria como uma oportunidade. E o Levante virou afinal a página, como, aliás, todo o mundo também virou a página.

Putin – a voz da Eurásia independente – nada tem em comum com o Lawrence da Arábia palhaço original, nem com outros palhaços que vieram depois.

Do ponto de vista dos sauditas, a razão pela qual apoiaram os jihadis no Afeganistão; o como e o por que patrocinaram Bin Laden inicialmente; até a razão pela qual coinventaram a Al-Qaeda, com os EUA, e toda aquela agitação que se criou naquele momento, tudo isso só teve uma única razão: os soviéticos eram considerados inimigos (comunistas ateus, quer dizer, hereges e inimigos do Islã).

Hoje, não mais. O presidente Putin não carrega esse “estigma”. Para os sauditas, apertar-lhe a mão não é pecado maior que apertar a mão de qualquer cristão norte-americano.

Depois de décadas de compromissos quebrados, promessas não cumpridas, mentiras descaradas, os sauditas afinal se cansaram dos norte-americanos. O contrato nuclear assinado com o Irã, muito rapidamente passará a ser visto como o derradeiro prego no esquife da aliança EUA-sauditas.

O Levante está pronto para iniciativas russas, porque a Rússia está pronta. A Rússia pode aproximar o Irã e a Arábia Saudita e talvez consiga diminuir o medo que há entre esses dois lados, em vez de só soprar sempre as mesmas brasas para fazer crescer o fogaréu, como os EUA fizeram durante décadas, para lucrar nas hostilidades entre os dois, lançando sempre um lado contra o outro, quebrando multidões de promessas feitas aos sauditas e só oferecendo incerteza cada vez maior e mais traiçoeiras armadilhas.

A Rússia pode negociar um acordo de paz para a Síria e conter a Turquia. A questão palestina sempre será problema enorme, mas dado que os EUA já estão perdendo o status que tinham com a Arábia Saudita, o mais provável é que Israel afaste-se, dê tempo ao tempo, espere para ver o que acontece. Se vir que a Rússia mantém-se como parceira confiável nas negociações, até Israel pode pular para a caravana russa de Putin.

Diferente do Império, cada dia mais miseravelmente desgastado, e que oscila, esgotado, antes de desabar, a Rússia está forte, cheia de energia, erguendo-se com firmeza. Dado que conta com a maior reserva de recursos naturais diversificados do planeta, a Rússia cada vez mais se mostra como parceira comercial viável, ao lado dos outros países BRICS e dos membros da Organização de Cooperação de Xangai. Assim vai reassumindo seu papel como grande potência mundial. E agora está voltando à política do Oriente Médio, como o único possível mediador no qual todas as partes podem confiar, depois de décadas de desentendimentos e guerras (cortesia de Washington).

Todos os olhos estão fixados em Putin, a voz da Eurásia independente. A bola está no campo de Putin. *****

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