Pepe Escobar : Turquia move-se para o centro do Novo Grande Jogo 

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Erdogan propõe abandonar o dólar no comércio internacional24/12/2020, Pepe Escobar, Asia Times (traduzido com autorização do autor)

Quando se trata de semear a cizânia – com lucros! – a Turquia de Erdogan é praticamente uma superstar.

Sob o delicioso rótulo de “Lei das Sanções de Combate Contra os Adversários dos EUA” [ing. Countering America’s Adversaries Through Sanctions Act, CAATSA], o governo Trump aplicou a Ancara as esperadas sanções, por se ter atrevido a comprar sistemas russos S-400 de mísseis de defesa terra-ar. As sanções visaram a agência de defesa da Turquia, SSB.

A reação do ministro turco das Relações Exteriores Mevlut Cavusoglu foi rápida: Ancara não recuará – e está de fato decidindo como responder.

Os poodles europeus ficaram obrigados a garantir os passos seguintes. Então, depois do proverbial interminável debate em Bruxelas, decidiram-se por sanções “limitadas” – acrescentando nova lista para reunião de março de 2021. Mas essas sanções focam-se na verdade em indivíduos ainda não identificados envolvidos em extração de petróleo offshore em Chipre e na Grécia. Nada têm a ver com os sistemas S-400s.

O que a União Europeia (UE) trouxe à cena é de fato um regime muito ambicioso de sanções globais por ‘direitos humanos’, modelado a partir da Lei Magnitsky, dos EUA. Implica proibir viagens e congelar ativos de pessoas unilateralmente ‘declaradas’ culpadas de genocídio, tortura, assassinatos extrajudiciais e crimes contra a humanidade.

A Turquia nesse caso é a cobaia. A UE sempre hesita, sobretudo quando se trata de sancionar estado-membro da OTAN. Quando o que os eurocratas em Bruxelas realmente querem é ferramenta extra e poderosa para fustigar principalmente China e Rússia.

Nossos jihadis, epa, não, nossos “rebeldes moderados”

O fascinante é que a Ancara de Erdogan sempre parece exibir atitude de quem dá de ombros (“e quem liga?”).

Considere-se a situação aparentemente insolúvel no caldeirão de Idlib, noroeste da Síria. Os chefões da Jabhat [Frente] al-Nusra – também conhecida como al-Qaeda na Síria – estão agora envolvidos em negociações “secretas” com gangues armadas apoiadas pela Turquia, como Ahrar al-Sharqiya, bem à vista de funcionários turcos. O objetivo: aumentar o número de jihadis concentradas em áreas chaves. Em conclusão: grande número desses jihadis virão da Jabhat al-Nusra.

Assim, para todas as finalidades práticas, Ancara mantém-se no apoio à jihadis de linha-duríssima no noroeste da Síria, apoio mascarado sob a “inocente” griffe Hayat Tahrir al-Sham. Ancara absolutamente não tem qualquer interesse em deixar que esse pessoal desapareça. Moscou, claro, está plenamente consciente dessas manobras e ‘arranjos’, mas os argutos estrategistas do Kremlin e do Ministério da Defesa preferem deixar a coisa andar, por hora, pressupondo que o processo de Astana – no qual se reúnem Rússia, Irã e Turquia – possa ainda dar algum fruto.

Erdogan, ao mesmo tempo, administra com talento a impressão de que esteja totalmente comprometido em caminhar na direção de Moscou. Repete efusivamente que seu “colega russo, Vladimir Putin” apoia a ideia – trazida à mesa pelo Azerbaijão – de uma plataforma de segurança regional que una Rússia, Turquia, Irã, Azerbaijão, Geórgia e Armênia. Erdogan disse até que, se Yerevan é parte desse mecanismo, “pode-se abrir nova página” nas relações Turquia-Armênia, até aqui inabordáveis.

Ajudará, claro, que, mesmo sob a destacada presença de Putin, Erdogan terá assento importante à mesa dessa organização de pressuposta segurança.

O Grande Quadro é ainda mais fascinante – porque expõe vários aspectos da estratégia de Putin para equilibrar a Eurásia, que envolve, como principais players, Rússia, China, Irã, Turquia e Paquistão.

Às vésperas do primeiro aniversário do assassinato do general Soleimani, Teerã absolutamente não está nem intimidada nem “isolada”. Para todas as finalidades práticas, o Irã está lenta mas firmemente forçando os EUA a sair do Iraque. Os laços diplomáticos e militares do Irã com Iraque, Síria e Líbano permanecem sólidos.

E com menos soldados dos EUA no Afeganistão, fato é que o Irã, pela primeira vez desde a era do “eixo do mal” está menos cercado pelo Pentágono. Ambas Rússia e China – nodos chaves da integração da Eurásia – aprovam integralmente.

Claro que o rial iraniano colapsou contra o EUA-dólar, e a renda do petróleo caiu de mais de $100 bilhões/ano, para algo como $7 bilhões. Mas exportações não-petróleo estão bem acima dos $30 bilhões/ano.

Tudo tem a ver com mudar para melhor. O Irã está construindo um oleoduto ultra estratégico, da parte oriental do Golfo Persa até o porto de Jask no Golfo de Omã – contornando o Estreito de Ormuz, e pronto para exportar 1 milhão/dia de barris de petróleo. O principal comprador será a China.

O presidente Rouhani disse que o oleoduto estará pronto no verão de 2021; acrescentou que o Irã planeja para o próximo ano estar vendendo acima de 2,3 milhões de barris/dia de petróleo – e não faz diferença que Biden-Harris aliviem as sanções ou não.

Atenção ao Anel Dourado

Irã está bem conectado à Turquia a oeste e à Ásia Central a leste. Outro elemento importante no tabuleiro de xadrez é a entrada de trens de carga que ligam diretamente a Turquia à China via Ásia Central – contornando a Rússia.

No início desse mês de dezembro, o primeiro trem de carga deixou Istanbul para viagem de 8.693 km, 12 dias, cruzando por baixo do Bósforo via o novo túnel Marmary, inaugurado há um ano, depois pelo Corredor do Meio, Oriente-Ocidente, via a ferrovia Baku-Tbilisi-Kars (BTK), cruzando Geórgia, Azerbaijão e Cazaquistão.

Na Turquia, chama-se de “Ferrovia da Seda”. A ferrovia BTK reduziu, de um mês para apenas 12 dias, o frete de transporte da Turquia à China. A única rota do Leste da Ásia até a Europa Ocidental pode agora ser percorrida em apenas 18 dias. BTK é o nodo chave do chamado Corredor do Meio, de Pequim a Londres; e da Rota da Seda de Ferro, do Cazaquistão até a Turquia.

Tudo que aí se lê encaixa-se perfeitamente na agenda da União Europeia – especialmente na agenda da Alemanha: implementar um corredor comercial estratégico que una União Europeia à China, contornando a Rússia.

Eventualmente, esse movimento pode levar à consolidação de uma das alianças chaves que se formarão nos “Loucos (anos) 20s”: Berlim-Pequim.

Para acelerar essa presumível aliança, a conversa em Bruxelas é que os eurocratas se beneficiarão do nacionalismo turcomeno, do pan-turquismo e da recente entente cordiale entre Erdogan e Xi, no que tenha a ver com os uigures. Mas há um problema: muitas tribos turcófonas preferem fazer aliança com a Rússia.

Mais que isso, a Rússia é ‘incontornável’ no que tenha a ver com os outros corredores. Considere-se, por exemplo, um fluxo de mercadorias a caminho de Vladivostok, depois pela Trans-Siberiana até Moscou e dali para a União Europeia.

Não se pode dizer que a estratégia da EU, de ‘contornar’ a Rússia, tenha sido um sucesso na Armênia-Azerbaijão: o que houve ali foi recuo relativo da Turquia e vitória de fato da Rússia, com Moscou reforçando sua posição militar no Cáucaso.

E entra em cena gambito ainda mais interessante: a parceira estratégica Azerbaijão-Paquistão, agora operante em tempo integral para comércio, defesa, energia, ciência & tecnologia e agricultura. Vale lembrar que Islamabad apoiou Baku em Nagorno-Carabaque.

Ambos, Azerbaijão e Paquistão, têm relações muito boas com a Turquia: questão do complexo entrelaçamento da herança cultural turco-persa.

E podem aproximar-se ainda mais, com o Corredor Internacional de Transporte Norte-Sul [ing. International North-South Transportation Corridor (INTSC)], que cada vez mais aprofunda a conexão, não só de Islamabad com Baku, mas também de ambas com Moscou.

Assim, a dimensão extra do novo mecanismo de segurança proposto por Baku, unindo Rússia, Turquia, Irã, Azerbaijão, Geórgia e Armênia: todos os “Grandes Quatro” aí desejam ter laços mais próximos com o Paquistão.

O analista Andrew Korybko denominou-a “Anel Dourado” – uma nova dimensão da integração centro-eurasiana em que se veem Rússia, China, Irã, Paquistão, Turquia, Azerbaijão e os “-stões” centro-asiáticos. Vai portanto muito além de uma possível Tríplice Entente: Berlim-Ancara-Pequim.

O que se vê, no pé em que estão as coisas, é que o importante relacionamento Berlim-Moscou continuará gelado. O analista norueguês Glenn Diesen resumiu: “A parceria russo-alemã para uma Europa Expandida foi substituída pela parceria Rússia-China para uma Eurásia Expandida”.

Tampouco resta dúvida de que Erdogan, mestre nos giros de corpo, encontrará vias para extrair proveito, simultaneamente, da Alemanha e da Rússia.

Traduzido por Vila Mandinga

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