Pepe Escobar: Rússia e Ocidente: Rasgar a névoa da histeria 

Share Button

26/1/2022, Pepe Escobar, Strategic Culture Foundation

“To be, or not to be: that is the question:
Whether ‘tis nobler in the mind to suffer
The slings and arrows of outrageous fortune,
Or to take arms against a sea of troubles,
And by opposing end them?”

William Shakespeare (1564-1616) Hamlet, Ato 3, Cena 1 (ing. e port.)[1]

Um espectro assombra o Ocidente coletivo: total zumbificação, cortesia da operação ‘psicológica’, 24 horas por dia, 7 dias por semana, que vai imprimindo nas mentes a inevitabilidade da “agressão russa”.

Rasguemos a névoa da histeria, perguntando ao ministro da Defesa ucraniano, Reznikov, o que está acontecendo:

“Posso dizer com certeza que, até o momento, as forças armadas russas não criaram grupo de ataque que possa consumar uma invasão forçada da Ucrânia.”

Bem, Reznikov obviamente não está ciente de que a Casa Branca, com acesso a informações de inteligência supostas privilegiadas, está convencida de que a Rússia invadirá “a qualquer minuto”.

O Pentágono sobe a aposta: “Está muito claro que os russos nesse momento não têm intenção de desescalar”. Daí a necessidade, expressa pelo porta-voz John Kirby, de preparar uma força multinacional de resposta da OTAN (NRF), de 40.000 soldados: “A ser acionada (…) para derrotar a agressão, se necessário”.

Como se vê, a “agressão” já é fato. A Casa Branca está “refinando” os planos militares – 18 na última contagem – para todas as formas de “agressão”. Quanto a responder – por escrito – às propostas russas sobre garantias de segurança, bem… é complexo demais.

Não há “data exata” de quando a resposta será enviada a Moscou. E os proverbiais “funcionários” imploraram aos seus homólogos russos que não a tornassem pública. Afinal, nada há de sexy em cartas… Mas a “agressão” vende. Especialmente quando se diz que poderia acontecer “a qualquer minuto”.

Os “analistas” hackers estão aos gritos. Para eles, seria quase certo que Putin ordenaria “ataque limitado”, nos “próximos dez dias”, complementado por ataque a Kiev: assim se configura o cenário de uma “guerra quase inevitável”.

Vladimir Dzhabarov, primeiro vice-presidente do Comitê de Assuntos Internacionais do Conselho da Rússia, prefere manter-se mais próximo da realidade: os EUA estão preparando uma provocação para empurrar Kiev a “ações imprudentes” contra a Rússia no Donbass. Isso se relaciona com o relato feito por soldados de infantaria da República Popular de Luhansk, segundo o qual “grupos subversivos preparados por instrutores britânicos” chegaram à área de Lisichansk.

Luminares como Ursula von der Leyen da Comissão Europeia, Jens Stoltenberg da OTAN e “líderes” do Reino Unido, França, Alemanha, Itália e Polônia anunciaram, após uma videochamada, que “um pacote de sanções sem precedentes” está quase pronto, para o caso de a Rússia “invadir”.

O movimento vem anunciado como “unidade internacional diante da crescente hostilidade da Rússia”. Tradução: o OTANstão implora que a Rússia invada seja o que for, o mais rapidamente possível.

Dos 27 países da União Europeia, 21 são membros da OTAN. EUA dominam tudo. Então, quando a UE anuncia que “qualquer agressão militar adicional contra a Ucrânia teria consequências muito sérias para a Rússia”, são os EUA dizendo à OTAN, como recado à UE: “o que dissermos, vale”. E sob essa estratégia de ambiente de tensão, “o que dizemos” significa aplicar, nua, crua e imperial, a via de dividir para governar, para manter a Europa totalmente subjugada.

Os erros fatais do Ocidente

Nunca se deve esquecer que Maidan 2014 foi operação supervisionada por Obama/Biden. Mas ainda há muitos negócios inacabados – quando se trata de enlamear a Rússia. Assim, o Partido da Guerra Visceralmente Russofóbico em Washington-DC, agora tem de fazer de tudo, na direção de conseguir que a OTAN empurre Kiev a iniciar uma guerra quente – e capture a Rússia nessa armadilha. Zelensky, O Comediante, chegou a declarar publicamente que iria “para a ofensiva”.

Assim sendo… é hora de desfraldar as falsas bandeiras.

O indispensável Alastair Crooke explica o modo como “’cerco’ e ‘contenção’ efetivamente se tornaram a política externa padrão de Biden”. Não “Biden” na verdade – mas o combo amorfo por trás do fantoche controlado por fone de ouvido/teleprompter que já há mais de um ano chamo de “Manequim para Teste de Colisão Frontal” (orig. Crash Test Dummy).

Crooke acrescenta, “a tentativa de cimentar essa metadoutrina é, de fato, decretada via Rússia (como o passo inicial). A ‘conquistar’ a Europa é a ‘cereja do bolo’ para a contenção física e o cerco contra a Rússia.”

“Cerco” e “contenção” têm sido ‘clips’ excepcionalistas, sob vários disfarces, por décadas. A noção alimentada pelo Partido da Guerra – de que seria possível arrastar ambos para uma frente de três vias – contra Rússia, China e Irã – é tão infantil, que torna inútil qualquer análise. Melhor se acompanhada por uma bebida e uma boa risada.

Quanto às sanções extras para a imaginária “agressão russa”, algumas almas benevolentes tiveram de lembrar ao Toninho Blinken e a outros participantes do combo “Biden”, que os europeus seriam muito mais letalmente afetados do que os russos; sem mencionar que essas sanções turbinariam a crise econômica coletiva do Ocidente.

É essencial uma breve recapitulação, para contextualizar o modo como acabamos atolados no pântano da histeria vigente.

O Ocidente coletivo desperdiçou a chance que teve para construir uma parceria construtiva com a Rússia, semelhante ao que fez com a Alemanha depois de 1945.

O Ocidente coletivo também estragou tudo, ao reduzir a Rússia ao papel de entidade menor e dócil, fazendo crer que só haveria uma esfera de influência no planeta: o OTANstão, claro.

E o Império estragou tudo, ao atacar a Rússia, mesmo depois de, supostamente, ter “vencido” a URSS.

Durante as décadas de 1990 e 2000, em vez de ser convidada a participar da construção da “casa comum europeia” – com todas as suas falhas gritantes – a Rússia pós-soviética foi deixada ostensivamente ‘de fora’, para assistir ao processo de atualizar e decorar a tal “casa”.

Ao contrário de todas as promessas feitas a Gorbachev por diversos líderes ocidentais, a tradicional esfera de influência russa – e até mesmo o antigo território da URSS – tornou-se objeto de disputa no assalto-saque contra a “herança soviética”: nada além de espaço a ser colonizado pelas estruturas militares da OTAN.

Ao contrário da esperança de Gorbachev – ingenuamente convencido de que o Ocidente compartilharia com ele os benefícios dos “dividendos da paz” – um modelo neoliberal anglo-americano de linha dura foi imposto à economia russa. Somado às consequências desastrosas dessa transição veio o sentimento de frustração nacional, numa sociedade que foi humilhada e seria tratada na Guerra Fria, ou 3ª Guerra Mundial, como se tivesse sido derrotada.

Esse foi o erro fatal do Excepcionalistão: acreditar que, com o desaparecimento da URSS, a Rússia também desapareceria das relações internacionais, como realidade histórica, econômica e estratégica.

O novo Pacto de Aço[2]

E é por isso que a empresa Guerra Inc., o “Partido da Guerra”, o “Estado Permanente”[3], como você quiser chamá-los, estão enlouquecendo em escala monumental. Ignoraram Putin, quando formulou um novo paradigma em Munique em 2007 – ou quando voltou ao Kremlin em 2012.

Putin deixou bem claro que os interesses estratégicos legítimos da Rússia teriam de ser novamente respeitados. E que a Rússia estava prestes a recuperar seus “direitos de veto” de fato, na gestão dos assuntos mundiais.

Bem, a doutrina Putin já estava sendo implementada desde o caso da Geórgia em 2008.

A Ucrânia é uma colcha de retalhos do que pertenceu até recentemente a diferentes impérios – austro-húngaro e russo – bem como a várias nações, como Rússia, Polônia e Romênia. Reagrupa o catolicismo e a Igreja Ortodoxa, e é lar de milhões de russos étnicos e falantes de russo, com profundas ligações históricas, culturais e econômicas com a Rússia.

Assim, a Ucrânia era uma neo-Iugoslávia de facto.

O erro fatal cometido por Bruxelas em 2014 foi empurrar Kiev e toda a população ucraniana na direção de uma escolha impossível entre a Europa e a Rússia.

O resultado inevitável teria de ser Maidan, completamente manipulado pela inteligência americana, mesmo quando os russos viram claramente o modo como a UE passava, da posição de negociador honesto, para o papel de chihuahua dos norter-americanos.

Os falcões russofóbicos norte-americanos nunca renunciarão ao espetáculo em que os russos, seus adversários históricos, sejam expostos no atoleiro de uma guerra fratricida de fogo lento no espaço pós-soviético. Daí que nunca renunciem ao Dividir e Governar imposto a uma Europa desnorteada. E daí que jamais concedam a qualquer ator geopolítico que seja, o que veem como “esferas de influência”.

Sem a impressão digital tóxica dos EUA, 2014 poderia ter sido bem diferente.

Para dissuadir Putin de reintegrar a Crimeia ao seu lugar de direito – a Rússia – seriam necessárias duas coisas: que a Ucrânia fosse gerida decentemente depois de 1992; não forçá-la a escolher o campo ocidental, mas torná-la uma ponte, ao estilo de Finlândia ou Áustria.

Depois de Maidan, os acordos de Minsk eram o mais próximo possível de solução viável: pôr fim ao conflito no Donbass; desarmar os protagonistas; e restabelecer o controle das fronteiras da Ucrânia, proporcionando autonomia real ao leste da Ucrânia.

Para que tudo isso acontecesse, a Ucrânia precisaria ter status de neutralidade e receber dupla garantia de segurança, da Rússia e da OTAN. E era necessário compatibilizar o acordo de associação entre Ucrânia e UE, com os laços estreitos entre a Ucrânia Oriental e a economia russa.

Tudo isso talvez configurasse uma visão europeia de relações futuras decentes com a Rússia.

Mas o Estado Permanente[4] Russofóbico Norte-americano nunca permitiria que acontecesse desse modo. E o mesmo se aplicava à Casa Branca. Barack Obama, cínico oportunista, estava muito profundamente envolvido no duvidoso contexto polonês de Chicago, ainda preso à obsessão excepcionalista com o profundo antagonismo, para erguer relacionamento construtivo com a Rússia.

E, afinal, o argumento decisivo, revelado por fonte de alto nível na inteligência dos EUA.

Em 2013, o falecido Zbigniew “Grande Tabuleiro de Xadrez” Brzezinski recebeu um relatório confidencial sobre mísseis avançados russos. E levou um susto monstro. De resposta, concebeu Maidan 2014 – para atrair a Rússia para uma guerra de guerrilha na época, como havia feito com o Afeganistão na década de 1980.

E aqui estamos agora: é tudo questão de negócios inacabados.

Uma palavra final sobre “os dardos e flechas do fado sempre adverso” (vide epígrafe). No século XIII, o Império Mongol estabeleceu sua suserania sobre a Rus de Kiev – isto é, sobre os principados ortodoxos cristãos que correspondem hoje ao norte da Ucrânia, Bielorrússia e parte da Rússia contemporânea.

O jugo tártaro sobre a Rússia – de 1240 a 1552, quando Ivan, o Terrível, conquistou Kazan – está profundamente impresso na consciência histórica russa e no debate sobre a identidade nacional.

Os mongóis conquistaram separadamente vastas áreas de China, Rússia e Irã. Séculos depois da Pax Mongolica, que ironia que o novo pacto de aço (ver aqui) entre esses três principais atores eurasianos seja agora obstáculo geopolítico intransponível, esmagando todos os planos elaborados por um bando de arrivistas históricos transatlânticos.*******

 


[1] Epígrafe acrescentada pelos tradutores.

[2] Pacto de Aço (ing. Pact of Steel). Aliança entre Alemanha e Itália, assinada por Adolf Hitler e Benito Mussolini, dia 22/5/1939, que formalizou o acordo de 1936 dos atores do eixo Roma-Berlin, de união política e militar dos dois países (Da Enciclopaedia Britannica , excerto aqui traduzido [NTs]. Sobre o acordo, ver também Pepe Escobar, The Cradle (ing.) e Oriente Mídia (port.).

[3] Orig. Deep State (lit. “Estado Profundo”). Já há algum tempo temos optado por traduzir a expressão por “Estado Permanente”. Depois de muito discutir, chegamos a um consenso: “Afinal de contas, o tal Deep State (i) não é ruim por ser profundo: é ruim por ser eterno, permanente, imutável, inalcançável pelas instituições e forças do povo e da democracia; e além disso, (ii) nem ‘profundo’ o tal Deep State é: ele vive à tona, tem logotipos, marcas, CEOs, CNPJ, nomes na superfície. É visível, portanto; mesmo assim, se autodeclara “profundo”, talvez para mais se esconder. Não. Ele que se autodeclare o que queira. Nós o declaramos “Estado Permanente” (e anotamos nossos motivos, aqui, em nota dos tradutores (NTs).

[4] Orig. Deep State (lit. “Estado Profundo”). Já há algum tempo temos optado por traduzir a expressão por “Estado Permanente”. Depois de muito discutir, chegamos a um consenso: “Afinal de contas, o tal Deep State (i) não é ruim por ser profundo: é ruim por ser eterno, permanente, imutável, inalcançável pelas instituições e forças do povo e da democracia; e além disso, (ii) nem ‘profundo’ o tal Deep State é: ele vive à tona, tem logotipos, marcas, CEOs, CNPJ, nomes na superfície. É visível, portanto; mesmo assim, se autodeclara “profundo”, talvez para mais se esconder. Não. Ele que se autodeclare o que queira. Nós o declaramos “Estado Permanente” (e anotamos nossos motivos, aqui, em nota dos tradutores (NTs).

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga

 

Share Button

Deixar um comentário

  

  

  

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.