Pepe Escobar: Réquiem para um império: episódio-piloto 

Share Button

28/7/2021, Pepe Escobar, Strategic Culture Foundation

 

“O termo ‘capitalismo’ é usado pelos ideólogos de hoje para manter alguma continuidade ideológica, muito mais do que à guisa de definição plausível. O objetivo da camuflagem é, contudo, por baixo da cobertura de açúcar, gerenciar uma sociedade já estritamente pós-capitalista. Já somos sociedade que desenvolve novas tecnologias de coerção e de redução de populações, conforme a velha máxima segundo a qual ‘tudo tem de mudar, para que as coisas permaneçam como estão’ (quer dizer, para que os que hoje governam continuem a governar.
Mas precisam de reforma, de tal modo que, quando se reabram as cortinas, tudo pareça brilhar de tão novo.)”

Alastair Crooke, 26/7/2021, SCF *
__________________________________________


Sob golpe de dissonância na cognição[1] em todo o espectro, o Império do Caos (vide Empire of Chaos)  age hoje como condenado maníaco apodrecido até a alma – destino mais cheio de medo e horror do que encarar revolta das satrapias.

Só zumbis de cérebro morto creem hoje na missão universal que se auto-atribuíram, como supostas nova Roma e nova Jerusalém. Não há cultura, economia ou geografia unificantes que consigam costurar algum ‘núcleo’, alguma espécie de ‘centro’, numa “paisagem política árida, ressecada, inchada sob o sol escaldante do raciocínio apolíneo desprovido de paixão, muito masculino e vazio de empatia humana.”

Guerreiros da Guerra Fria Sem Noção ainda sonham com os dias quando o eixo Alemanha-Japão ameaçava governar a Eurásia, e a Commonwealth mordia a lona – o que oferecia a Washington, temerosa de ser empurrada para o insulamento, oportunidade ‘imperdível’ para extrair lucros da 2ª Guerra Mundial e erigir-se Supremo Paradigma Mundial cum salvador do “mundo livre”.

E então lá estavam os unilaterais 1990s, quando a outra vez autodeclarada “Cidade Brilhante sobre a Colina”, mergulhados todos em sórdidas comemorações do “fim da história” – bem como neoconservadores tóxicos, gestados no período entre guerras via a camarilha gnóstica do Trotskysmo de Nova York – conspiraram para que aqueles unilaterais tomassem o poder.

Hoje não é Alemanha-Japão, mas o espectro de uma entente Rússia-China-Alemanha que aterroriza o hegemon, como trio eurasiano capaz de fazer descer pelo ralo do história a dominação norte-americana sobre todo o planeta.

Entra em cena a ‘estratégia’ dos EUA. E, podia-se prever, não passa de prodígio de estreiteza mental, que sequer aspira ao status de exercício – infrutífero – de ironia ou de desespero, dado que vem da fútil, pedestre Dotação Carnegie [ing. Carnegie Endowment], cujo quartel-general está no Corredor dos Think Tanks, entre Dupont e Thomas Circle, ao longo da Massachusetts Avenue em D.C.

Making U.S. Foreign Policy Work Better for the Middle Class [port. “Para que a Política Externa dos EUA Funcione Melhor para a Classe Média] é uma espécie de relatório bipartidário para guiar o governo do Boneco para Testes de Colisão Frontal. Um dos 11 redatores envolvidos é ninguém menos que o Conselheiro de Segurança Nacional Jake Sullivan. A ideia de que (i) alguma estratégia imperial global e – nesse caso – (ii) uma classe média profundamente empobrecida e enraivecida partilhariam os mesmos interesses não presta nem como piada ruim.

Com “pensadores” desse tipo, o hegemon nem precisa de “ameaças” eurasianas.

Querem conversar com Mr. Kinzhal?

Entrementes, em roteiro digno de Desolation Row de Dylan reescrito pelos Três Patetas, os proverbiais chihuahuas atlanticistas estão em êxtase, porque o Pentágono teria ordenado que a OTAN divida-se: Europa Ocidental para conter a China; e Europa Oriental para conter a Rússia.

Mas o que está realmente acontecendo nesses corredores do poder europeu que realmente contam – não, baby! Esqueça Varsóvia! – e que não só Berlin e Paris recusam-se a antagonizar Pequim, como, além do mais, dão tratos à bola para descobrir meio para se aproximar mais de Moscou, sem enfurecer o hegemon.

Acabou-se aquilo de dividir para governar, de Kissinger. Umas das poucas coisas que o nefando criminoso de guerra realmente compreendeu, ficou clara quando disse, depois da implosão da URSS, que sem a Europa “os EUA se transformariam em ilha distante, ao largo da Eurásia”: que “em solidão”, cairia em status de insignificância.

A vida é infernal quando o almoço grátis (global) acaba, quando, além do mais, você tem de encarar não só a emergência de um “competidor entre pares” na Eurásia (© Zbig “Grande Tabuleiro de Xadrez” Brzezinski), mas também uma ampla parceria estratégica. Você teme que a China esteja comendo seu almoço – e o jantar e o lanchinho antes de dormir – mas mesmo assim você precisa de Moscou como o inimigo designado… porque só assim a OTAN parece legitimada.

Chamem os Três Patetas! Vamos mandar os Europeus patrulhar o Mar do Sul da China! Vamos usar aquelas nulidades bálticas plus os patéticos poloneses para implantar a Neocortina de Ferro! E vamos impor nos dois fronts uma “Grã-Bretanha Reina sobre as Ondas”, só que russofóbica!

Controlar a Europa – ou morrer. Daí o Admirável Neomundo da Neo-OTAN: a carga que pesa sobre o homem branco reformatada – contra Rússia-China.

Até aqui, Rússia-China têm mostrado infinita paciência taoísta, ao lidar com aqueles palhaços. Agora acabou.

Os atores chaves na Terra Central viram claramente através do nevoeiro da propaganda imperial; a estrada é longa e sinuosa , mas o horizonte acabará por revelar uma aliança Alemanha-Rússia-China-Irã que reequilibrará o tabuleiro de xadrez global.

Eis a derradeira Noite Imperial do pesadelo dos Mortos Vivos – por isso esses degradados emissários norte-americanos andam por aí, frenéticos, pelo planeta, tentando manter a ordem nas satrapias.

Enquanto isso, do outro lado do charco, China-Rússia constrói submarinos como se não houvesse amanhã, equipados com os mísseis mais modernos – e Su-57s convidam os espertíssimos, para conversa ao pé do ouvido com um Mr. Kinzhal hipersônico.

Sergey Lavrov, como Grand Seigneur aristocrático, deu-se o trabalho de ilustrar os palhaços com uma diferenciação erudita rigorosa entre o império da lei e a tal autodefinida “ordem internacional baseada em regras” lá deles.

É demais para o QI coletivo daquela gente. Talvez registrem apenas que o Tratado Russo-Chinês de Boa Vizinhança, Amizade e Cooperação, assinado inicialmente dia 16/7/2001, acaba de ser estendido por cinco anos, pelos presidentes Putin e Xi.

Dado que o Império do Caos está sendo cada vez mais e sempre inexoravelmente expelido da Terra Central, Rússia-China estão administrando conjuntamente assuntos da Ásia Central.

Na conferência sobre conectividade em Tashkent, para Ásia Central e Sul da Ásia, Lavrov detalhou o modo como a Rússia está conduzindo “a Parceria da Eurásia Estendida” [ing. “the Greater Eurasian Partnership], perímetro unificante e de integração entre o Atlântico e o Pacífico, área o mais livre que seja possível para movimentação de bens, capitais, trabalho e serviços, e aberto a todos os países do continente eurasiano comum e das uniões de integração aqui criados.”

E há então a Estratégica de Segurança Nacional russa atualizada, que expõe com clareza a ideia de que construir uma parceria com os EUA e alcançar nível de cooperação ganha-ganha com a União Europeia é combate montanha acima: “As contradições entre Rússia e o Ocidente são sérias e difíceis de superar.” Nesse contexto, será expandida a cooperação estratégica com China e Índia.

Terremoto geopolítico

Mas o avanço geopolítico de redefinição, no segundo ano dos Raging Twenties bem pode ser a China dizendo ao Império: “Agora chega! Basta!”

Começou há dois meses em Anchorage, quando o formidável Yang Jiechi  fez sopa de barbatana de tubarão da frágil delegação norte-americana. A pièce de résistance veio essa semana em Tianjin, onde o vice-ministro de Relações Exteriores Xie Feng e seu superior Wang Yi reduziram ao status de bolinho azedo a medíocre burocrata imperial Wendy Sherman.

Essa análise abrasiva  produzida por think tank chinês revisou todas as questões chaves. Aqui, os pontos principais.

– Norte-americanos tentaram garantir que se estabelecessem “guarda-trilhos e limites”, para evitar deterioração das relações EUA-China, com vistas a “gerir” [ing. “manage”] responsavelmente o relacionamento. Não funcionou, porque a abordagem dos EUA foi “terrível”.

– “o vice-ministro de Relações Exteriores da China Xie Feng acertou a cabeça do prego quando disse que a tríade de “competição, cooperação e confrontação” é como tentar pôr uma venda nos olhos dos chineses, para conter e suprimir a China. Confrontação e contenção são essenciais; a cooperação é pragmática; e a competição é armadilha de discurso. Os EUA requerem cooperação quando estão precisando da China, mas em áreas nas quais creem que estejam em vantagem, eles se afastam, cortam suprimentos, impõem bloqueios e sanções, e logo tentam colidir contra a China e confrontar a China, para ‘contê-la’.”

– Xie Feng “também apresentou duas listas ao lado norte-americano, uma lista de 16 itens em que pedem que os EUA corrijam suas políticas erradas e suas falas e ações relacionadas à China; e uma lista de dez casos que a China considerar prioridades (…). Se as questões anti-China geradas pela posição viciosa dos EUA não forem resolvidas, o que restaria a ser conversado entre China e EUA?”

– E então, a cereja do bolo: as três linhas finais de Wang Yi, para Washington. Em síntese:

  1. “EUA devem não desafiar, denegrir, sequer deve tentar subverter a trilha e o sistema socialista com características chinesas. A trilha e o sistema chineses são escolha da história e do povo chinês, e dizem respeito ao bem-estar de longo prazo para 1,4 bilhão de chineses e ao destino futuro da nação chinesa – e esse é o interesse-núcleo que a China não abandonará.”
  2. “EUA não têm direito de tentar obstruir, sequer de tentar interromper o processo de desenvolvimento da China. O povo chinês com certeza tem direito a vida melhor, e a China também tem direito à modernização, que não é monopólio dos EUA e envolve uma consciência básica de humanidade comum e de justiça internacional.A China espera que os EUA levantem sem demora todas as sanções unilaterais, as altas tarifas, a jurisdição de ‘longo braço’ [a jurisdição “na mão grande”, talvez?] e o bloqueio de ciência e tecnologia imposto à China.”
  3. “Os EUA não têm o direito de infringir a soberania nacional da China, tampouco de minar a integridade territorial da China. As questões relacionadas a Xinjiang, Tibet e Hong Kong jamais são ou algum dia foram relacionadas a direitos humanos ou democracia. Só tem a ver com algum suposto ‘direito’ de promover alguma ‘independência de Xinjiang’, alguma ‘independência do Tibete’ e alguma ‘independência de Hong Kong’. Nenhum país jamais admitirá que sua segurança soberana seja ameaçada. Quanto à questão de Taiwan, é alta prioridade. (…) Se alguma ‘independência de Taiwan’ ousar alguma provocação, a China tem direito de se servir de quaisquer meios para detê-la.”

E o Império do Caos registrará tudo que acima se lê? Claro que não. Assim sendo, o apodrecimento inexorável do Império prosseguirá, negócio vulgar, sem pathos dramático e estético que mereça um Crepúsculo dos Deuses. Que não merecerá mais que uma olhadela dos Deuses, lá “onde riem em segredo, passando os olhos por terras devastadas, / sofrimento e fome, pragas e terremotos, profundidades que rugem e areias em fúria, / Lutas sem fim e cidades em chamas, e navios que naufragam, e mãos que rezam”, nas palavras imortais de Tennyson.[2] Mesmo assim, o que realmente interessa em nosso reino da realpolitik, é que Pequim nem dá bola. O que tinham a dizer, já disseram: “Os chineses estão já fartos da arrogância dos norte-americanos, e já passou o tempo em que os EUA viveram de provocar os chineses.”

Agora, sim, afinal, aí está o início de um admirável novo mundo geopolítico – episódio-piloto do réquiem para o Império. Em breve, novos episódios.*******

* Epígrafe acrescentada pelos tradutores.

[1] SEMPRE usamos a expressão “dissonância na cognição”, por motivos semânticos importantes, complexos demais para nota de rodapé. Basta ver o que significa(ria) outra construção com o mesmo sufixo ‘-iva’ (e o fenômeno é idêntico em todos esses campos semânticos): “dissonância educativa”. O q significaria essa expressão? Alguma dissonância “QUE EDUCA”?! Ou “dissonância nutritiva”… Significaria talvez dissonância “QUE NUTRE”? Claro que não.

Todos esses casos EXIGEM outras construções, uma das quais é feita por preposição. Teremos então, semanticamente muito mais adequados: “dissonância na educação”, “dissonância na nutrição” e, claro, “dissonância na cognição”. Fato é que “a dissonância dita ‘cognitiva’, não é ‘cognitiva’, assim como um “problema nutritivo” NÃO É propriamente ‘nutritivo’, como um bife. O mesmo acontece com “dissonância cognitiva”, que só pode ser entendida satisfatoriamente se se corrige a construção para “dissonância na cognição”.

Basta pensar fora da caixinha ‘normativa’ da gramática de baixa qualidade técnica que temos para o português do Brasil, e entende-se facilmente. E, entendendo, podemos trabalhar mais para trazer à tona os significados adequados e facilitar a cognição, em vez de empurrar o infeliz leitor para pântanos perigosos nos quais já nenhuma palavra significa qualquer coisa de consistentemente significante que realmente ajude o leitor a entender melhor o mundo e a se entender melhor, ele mesmo [NTs].

[2] Original: “where they smile in secret, looking over wasted lands / Blight and famine, plague and earthquake, roaring deeps and fiery sands, / Clanging fights, and flaming towns, and sinking ships, and praying hands” (Alfred, Lord Tennyson, The Lotos-Eaters, 1832) [NTs].

Traduzido Pelo Coletivo Vila Mandinga

Share Button

Deixar um comentário

  

  

  

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.