Pepe Escobar: Raia em Cabul um momento Saigon

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13/8/2021, Pepe Escobar, Asia Times

12/8/2021 entrará para a história como o dia em que os Talibã vingaram a invasão do Afeganistão pelos EUA e assestaram o golpe que derrubou o homem dos EUA em Cabul

Imagem: Combatente Talibã carrega um disparador portátil de granadas (ing. a rocket-propelled grenade, RPG), pelo acostamento da estrada em Herat, terceira maior cidade do Afeganistão,

12/8/2021. A história registrará essa data como o dia em que os Talibã acertaram o golpe definitivo, que pôs abaixo o governo central em Cabul – quase 20 anos depois do 11/9 e do subsequente fim do governo de 1996 a 2001 dos mesmos Talibã, por efeito das bombas norte-americanas.

Em guerra-relâmpago [al. blitzkrieg], os Talibã capturaram três centros crucialmente decisivos: Ghazni e Kandahar na região central do país, e Herat no oeste. Já capturaram a maior parte do norte. Nesse momento, os Talibã controlam 14 (itálicos meus) capitais de província e continuam a avançar.

Primeiro, pela manhã, tomaram Ghazni, situada a cerca de 140 quilômetros de Cabul. A rodovia repavimentada está em boas condições. Os Talibã não está apenas se aproximando cada vez mais de Cabul: para todas as finalidades práticas, eles agora controlam a principal artéria do país, a Rodovia 1, de Cabul a Kandahar via Ghazni.

Só isso já é fator estratégico de importância decisiva. O controle sobre a Rodovia 1 permitirá aos Talibã cercar e sitiar Cabul simultaneamente pelo norte e pelo sul, num movimento de pinça.

Kandahar caiu à tardinha, depois de os Talibã conseguirem romper o cordão de segurança em torno da cidade, atacando de várias direções.

In Ghazni, o governador provincial Daoud Laghmani conseguiu um acordo, fugiu e foi preso em seguida. Em Kandahar, o governador provincial Rohullah Khanzada – membro da poderosa tribo Popolzai – partiu com uma pequena escolta de guarda-costas.

Optou por um elaborado acordo, convencendo os Talibã a permitir que os militares restantes recuassem para o aeroporto de Kandahar, de onde foram evacuados por helicóptero. Todo o equipamento local, armamento pesado e munição foi transferido para os Talibã.

Forças Especiais Afegãs são o principal grupo capturado em Kandahar. Mas estavam simplesmente protegendo alguns locais seletos. Agora, talvez recebam a missão de proteger Cabul. O derradeiro acordo entre o governador e os Talibã está para ser assinado em pouco tempo. Na prática, Kandahar já caiu.

Imagem: Soldado afegã vigia depois que forças dos EUA deixaram a pista de Bagram, no Afeganistão, dia 5/7/2021. Foto: AFP / Anadolu Agency / Haroon Sabawoon

Em Herat, os Talibã atacaram do leste, ao mesmo tempo em que o conhecido ex-senhor-da-guerra Ismail Khan, no comando da própria milícia, iniciou luta terrível a partir do oeste. Os Talibã paulatinamente conquistaram o quartel-general da polícia, “libertaram” os prisioneiros e cercaram o gabinete do governador.

Fim de jogo: Herat também caiu, e os Talibã agora controlam todo o Afeganistão Ocidental, todo o caminho até a fronteira com o Irã.

A Ofensiva do Tet[1] remixed

Analistas militares muito se divertirão no serviço de desconstruir esse equivalente Talibã da Ofensiva do Tet de 1968 no Vietnam. Inteligência por satélites pode ter sido instrumental: é como se todo o progresso no campo de batalha tivesse sido coordenado ‘de cima’.

Mas há algumas razões bem prosaicas para o sucesso do massacre, além do talento estratégico: corrupção no Exército Nacional Afegão [ing. Afghan National Army, ANA]; total desconexão entre Cabul e os comandantes no campo de batalha; falta de apoio aéreo norte-americano; a profunda divisão política na própria Cabul.

Em paralelo, os Talibã estão ativos em segredo há meses, mediante conexões tribais e laços familiares, oferecendo um acordo: não resistam contra nós, e serão poupados.

Acrescente-se a isso um profundo senso de terem sido traídos pelo Ocidente, ativo em todos os conectados ao governo de Cabul, misturado ao medo da vingança dos Talibã contra os colaboracionistas.

Imagem: Uma nova geração de Deslocados Internos [ing. internally displaced people, IDPs] no Afeganistão. Imagem cedida.

Uma subtrama muito triste, de agora em diante, tem a ver com o total desamparo em que se veem os civis – todos que se consideram sitiados nas cidades que estão agora controladas pelos Talibã. Os que chegaram antes da ofensiva são os novos deslocados internos afegãos, como os que criaram um campo de refugiados no parque Sara-e-Shamali em Cabul.

Correm rumores em Cabul de que Washington teria sugerido ao presidente Ashraf Ghani que renunciasse, abrindo caminho para o cessar-fogo e algum governo de transição.

O que se diz publicamente é que o secretário de Estado dos EUA Antony Blinken e o chefe do Pentágono Lloyd Austin prometeram a Ghani que os EUA “permaneceriam ativos” na segurança afegã.

Informes indicam que o Pentágono planeja realocar 3 mil soldados e Marines para o Afeganistão e mais 4 mil na região, para evacuar a Embaixada dos EUA e cidadãos residentes em Cabul .

A suposta oferta a Ghani nasceu realmente em Doha – e veio do pessoal de Ghani, como confirmei com fontes diplomáticas.

A delegação de Cabul, liderada por Abdullah, presidente de algo conhecido como Alto Conselho para Reconciliação Nacional, mediado pelo Qatar, ofereceu aos Talibã um acordo para partilha do poder, sob a condição de que pusessem fim ao massacre. Não se falou de Ghani renunciar, primeira condição que os Talibã impõem para qualquer negociação.

A Troika ampliada está fazendo hora extra em Doha. Os EUA alinham-se com Zalmay Khalilzad, objeto inamovível, de quem se zombava nos anos 2000s como “o Afegão de Bush”. Os paquistaneses têm o enviado especial Muhammad Sadiq e o embaixador em Cabul Mansoor Khan.

Os russos têm o enviado do Kremlin ao Afeganistão, Zamir Cabulov. E os chineses tem novo enviado ao Afeganistão, Xiao Yong.

Rússia-China-Paquistão estão em negociações tendo em mente um quadro da Organização de Cooperação de Xangai, OCX: os três são membros permanentes. Enfatizam um governo de transição, a partilha do poder e que os Talibã sejam reconhecidos como força política legítima.

Imagem: O presidente afegão Ashraf Ghani gesticula em reunião para avaliar a situação geral da segurança em Jalalabad, dia 3/3/2020. Foto: AFP / Noorullah Shirzada

Diplomatas já sugerem que, se os Talibã derrubam Ghani em Cabul, não importa por quais meios, serão reconhecidos por Pequim como legítimos governantes do Afeganistão – algo que criará outro front geopolítico incendiário no confronto contra Washington.

No pé em que estão as coisas, Pequim está encorajando os Talibã a firmar um acordo de paz com Cabul .

O enigma do Pashtunistão

O primeiro-ministro do Paquistão Imran Khan não mediu palavras ao pular na frigideira. Confirmou que ouvira, da liderança Talibã, que não há negociação possível se Ghani permanecer no poder – mesmo depois de ter tentado convencê-los a aceitar algum acordo de paz.

Khan acusou Washington de só considerar o Paquistão “útil”, no que tenha a ver com pressionar Islamabad para fazer valer a influência que tem sobre os Talibã para aceitar algum acordo – sem considerar a “confusão” que os EUA deixaram para trás.

Khan disse novamente que “deixou perfeitamente claro” que não haverá bases militares no Paquistão.

Há aqui análise muito boa de como é difícil para Khan e Islamabad explicar ao Ocidente e também ao Sul Global o complexo envolvimento do Paquistão com o Afeganistão.

As questões chaves estão bastante claras:

1. O Paquistão deseja acordo de partilha de poder e está fazendo o que pode em Doha, com a Troika ampliada, para conseguir isso.

2. Uma tomada do governo pelos Talibã levará a novo influxo de refugiados e pode encorajar jihadistas do tipo al-Qaeda, TTP e ISIS-Khorasan a tentar desestabilizar o Paquistão.

3. Quem deslegitimou os Talibã foram os EUA, ao firmar acordo com eles durante o governo Trump.

4. E, por causa da retirada atabalhoada, os norte-americanos reduziram o poder de alavancagem que tinham – e também o poder de alavancagem que tinha o Paquistão – sobre os Talibã.

O problema é que Islamabad simplesmente não consegue passar adiante e fazer circular essas mensagens.

Imagem: Soldados paquistaneses (dir.) tentam organizam cidadãos afegãos no ponto de passagem de fronteira Paquistão-Afeganistão, em Chaman, dia 13/8/2021, depois de os Talibã assumirem o controle dessa cidade afegã de fronteira numa rápida ofensiva em todo o país. Foto: AFP

E há também algumas decisões difíceis. Considere-se a fronteira Af-Pak entre Chaman (no Baloquistão paquistanês) e Spin Boldak (no Afeganistão).

 

Os paquistaneses fecharam seu lado da fronteira. Todos os dias, dezenas de milhares de pessoas, sobretudo pashtuns e baloques, andam numa direção e na direção contrária, dos dois lados, ao longo de um mega comboio de caminhões que transportam mercadorias, do porto de Karachi para o Afeganistão (que não tem abertura para o mar). Fechar fronteira comercial tão vital quanto essa é ideia insustentável.

Tudo isso leva ao problema, pode-se dizer, fundamental: o que fazer do Pashtunistão?

O xis absoluto da questão, no que tenha a ver com o envolvimento do Paquistão no Afeganistão e a interferência afegã nas áreas tribais paquistanesas é a completamente artificial Linha Durand, traçada pelo Império Britânico.

O pesadelo absoluto de Islamabad é alguma outra partição. Os pashtuns são a maior tribo do mundo e vivem dos dois lados da fronteira (artificial). Islamabad simplesmente não pode admitir que uma entidade nacionalista governe o Afeganistão, porque assim se fomentaria eventualmente uma insurreição Pashtun no Paquistão.

E isso explica por que Islamabad prefere os Talibã, a algum governo afegão nacionalista. Ideologicamente, o Paquistão conservador não é diferente do posicionamento dos Talibã. E em termos de política exterior, os Talibã no poder encaixa-se perfeitamente na doutrina inamovível de “profundidade estratégica” que opõe o Paquistão à Índia.

Em contraste, a posição do Afeganistão é bem clara. A Linha Durand divide os pashtuns dos dois lados de uma fronteira artificial. Assim, governo nacionalista em Cabul, seja qual for, nunca desistirá do desejo de criar um Pashtunistão maior e unido.

Os Talibã são grupo de fato de milícias de senhores-da-guerra; Islamabad aprendeu pela experiência o modo como lidar com eles. Virtualmente todos os senhores-da-guerra – e suas milícias – no Afeganistão são islamistas.

Até o atual arranjo em Cabul baseia-se na lei islâmica e busca aconselhamento de um conselho da Ulema. Bem poucos no Ocidente sabem que a Lei da Xaria é predominante na atual Constituição afegã.

Imagem: Militantes afegãos dos Talibã e aldeões rezam no distrito de Alingar da Província Laghman, dia 2/3/2020. Foto: AFP / Noorullah Shirzada

Para fechar o círculo, pode-se dizer que, no limite, todos os membros do governo de Cabul, os militares, bem como grande parte da sociedade civil, vêm do mesmo quadro tribal conservador do qual nasceram os Talibã.

Exceto pelo massacre militar, os Talibã parecem estar vencendo a batalha doméstica de Relações Públicas por efeito de uma equação simples: porque eles expõem Ghani como fantoche da OTAN e dos EUA, lacaio de invasores estrangeiros.

E no cemitério de impérios, demarcar bem essa ‘filiação’ vergonhosa sempre foi posição vencedora.*******

[1] Sobre a Ofensiva do Tet, aqui [NTs]

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga

 

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