Pepe Escobar: Por que a revolução americana não vai ser televisionada

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Falta à insurreição, por enquanto puramente emocional, a estrutura política e um líder com credibilidade para articular as queixas
4 de junho de 2020,

Por Pepe Escobar, para o Asia Times

 

A Revolução Não Vai Ser Televisionada porque não é uma revolução. Pelo menos não por enquanto.

Incendiar e/ou saquear o Target ou o Macy’s é uma digressão menor. Ninguém está atacando o Pentágono (nem sequer as lojas do Mall do Pentágono). Nem o FBI. Nem a Federal Reserve de Nova York. Nem o Departamento do Tesouro. Nem a CIA em Langley. Nem os prédios da Wall Street.

Os verdadeiros saqueadores – a classe dominante – estão assistindo confortavelmente o show em suas gigantescas Bravias 4K, bebericando uísque single malt.

Essa é muito mais uma guerra de classes que uma guerra racial, e assim deve ser analisada. No entanto, ela foi sequestrada desde o começo e apresentada como uma mera revolução colorida.

A mídia empresarial dos Estados Unidos deixou cair como uma tonelada de tijolos – combinados de antemão? – sua ofegante cobertura do Planeta Lockdown para, ofegantemente e em massa, passar a cobrir a nova “revolução” americana. Distanciamento social não combina muito com o espírito revolucionário.

Não há dúvida de que os Estados Unidos estão, neste momento, atolados em uma intrincada guerra civil, tão grave quanto a que ocorreu depois do assassinato do Dr. Martin Luther King, em Memphis, em abril de 1968.

No entanto, uma dissonância cognitiva maciça é a norma em todo o espectro da “estratégia de tensão”. Facções poderosas não economizam esforços para assumir o controle  da narrativa. Ninguém é capaz de identificar todas as complexidades e as inconsistências desse jogo de luz e sombra.

Citando os Temptations: é um bola de confusão.
Os Antifa são criminalizados, mas os Boogaloo Bois têm passe livre (aqui o principal teórico do Antifa explica como ele defende suas ideias). Mais uma guerra tribal, mais uma – agora interna – revolução colorida sob o signo do dividir para governar, jogando os Antifa anti-fascistas contra os supremacistas brancos fascistas.

Enquanto isso, a infraestrutura política necessária para a decretação da lei marcial  evoluiu como um projeto bipartidário.

Estamos imersos em um proverbial e total nevoeiro de guerra. Os que defendem que o Exército dos Estados Unidos deva esmagar os “insurretos” nas ruas defendem, ao mesmo tempo, um fim rápido para o império americano.

Em meio a tanto som e fúria significando perplexidade e paralisia, talvez estejamos atingindo um momento supremo de ironia histórica, no qual a (in)segurança interna dos Estados Unidos está recebendo o golpe de bumerangue não apenas de um dos principais artefatos de autoria de seu próprio Deep State – uma revolução colorida – mas também com o retorno dos elementos combinados de uma trifecta perfeita: Operação Fênix; Operação Jacarta e Operação Gládio.

Mas os alvos, desta vez, não serão os milhões espalhados por todo o Sul Global. Os alvos serão cidadãos americanos.

Império volte para casa 

Um bom número de progressistas afirma que o que vem ocorrendo é um levante de massas contra a repressão policial e a opressão do sistema – e que isso, necessariamente, levaria a uma revolução, como a de fevereiro de 1917, na Rússia, que surgiu da escassez de pão em Petrogrado.

Os protestos contra a brutalidade policial endêmica, portanto, seriam um prelúdio para uma remixagem do Levitem o Pentágono –  e que o interregno logo levaria a um possível confronto com os militares nas ruas.

Mas temos aí um problema. A insurreição, até agora puramente emocional, não gerou uma estrutura política e um líder com credibilidade suficiente para articular a miríade de queixas extremamente complexas. O que temos neste momento é uma insurreição incipiente sob o signo do empobrecimento e da dívida perpétua.

Aumentado ainda mais a perplexidade, os americanos veem-se agora confrontados com algo que se assemelha ao Vietnã, a El Salvador, às áreas tribais do Paquistão ou à Cidade Sadr, em Bagdá.

O Iraque desembarcou em Washington DC em traje de gala, com os Blackhawks do Pentágono fazendo “exibições de força” sobre os manifestantes, a bem testada técnica de dispersão usada em incontáveis operações de contra-insurreição” em todo o Sul Global.

E então, o momento Elvis: o General Mark Milley, chefe do Estado Maior das Forças Armadas dos Estados Unidos, patrulhando as ruas do Distrito de Colúmbia. O lobista da Raytheon que hoje preside o Pentágono, Mark Esper, chamou a isso de “dominar o espaço de batalha”.

Bem, depois de levarem um chute na bunda no Afeganistão e no Iraque, e indiretamente na Síria, o domínio de espectro total tem agora que exercer seu domínio em algum lugar. Então, por que não em casa, mesmo?

Tropas da 82ª Divisão Aérea, da 10ª Divisão de Montanha e da 1ª Divisão de Infantaria – que perderam guerras no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque e, sim, na Somália – foram movidas para a Base Aérea de Andrews, próxima a Washington.

O super-falcão Tom Cotton chegou a conclamar a 82ª Divisão Aérea, em um tuíte, para “fazer tudo o que for necessário para restaurar a ordem. Nenhuma piedade para com insurretos, anarquistas, amotinados e saqueadores”. Que, certamente, são alvos mais fáceis  que as forças armadas russas, chinesas e iranianas.

A performance de Milley me faz lembrar John McCain caminhando por Bagdá, em 2007, bem no estilo macho-man, sem capacete, para provar que tudo estava bem. Claro: ele tinha um pequeno exército armado até os dentes como guarda-costas.

E, para complementar o ângulo do racismo, nunca é bastante lembrar que tanto um presidente branco quanto um presidente negro assinaram permissões para ataques de drones a festas de casamento em áreas tribais do Paquistão.

Esper deixou bem claro: é bem possível que um exército de ocupação logo venha a “dominar o espaço de batalha” na capital do país e talvez em outros lugares. E o que vem depois? Uma Autoridade Provisória de Coalizão?

Comparada com outras operações semelhantes realizadas por todo o Sul Global, esta não apenas evitará a mudança de regime, mas irá também produzir o efeito desejado pela oligarquia dominante: uma volta do parafuso neofascista. Provando mais uma vez que quando você não tem um Martin Luther King ou um Malcolm X para lutar contra o poder, o poder vai esmagar você, faça você o que fizer.

O Totalitarismo Invertido 

O grande teórico político Sheldon Wolin, já falecido, já tinha acertado em cheio em um livro que teve sua primeira edição em 2008: trata-se de um Totalitarismo Invertido.

Wolin mostrou que “as formas mais cruas de controle – das  polícias militarizadas à vigilância maciça, e também a polícia no papel de juiz, júri e executor, que agora é a realidade para as classes mais baixas – serão uma realidade para todos nós, caso continuemos a resistir ao contínuo afunilamento do poder e da riqueza para o topo.

“Somos tolerados como cidadãos apenas quando participamos da ilusão de uma democracia participativa. No momento em que nos rebelarmos e nos recusarmos a participar dessa ilusão, o rosto do totalitarismo invertido será muito semelhante ao dos sistemas totalitários do passado”, escreveu ele.

Sinclair Lewis (que nunca disse que “quando o fascismo chegar à América, ele virá envolto na bandeira e brandindo uma cruz”)  na verdade disse em Não Vai Acontecer Aqui (1935), que os fascistas americanos seriam aqueles que repudiariam a palavra ‘fascismo’ e pregariam a servidão ao capitalismo no estilo das liberdades constitucionais e tradicionais nativas dos Estados Unidos.”

Então, o fascismo americano, quando acontecer, falará com sotaque americano.

George Floyd foi a centelha. Em uma reviravolta freudiana, o retorno do recalcado veio à toda, desnudando incontáveis feridas: como a economia política dos Estados Unidos esmagou as classes trabalhadoras, fracassou vergonhosamente na covid-19; sonegou serviços de saúde a preços praticáveis; beneficia uma plutocracia e prospera em um mercado de trabalho racializado, com uma polícia militarizada, guerras imperiais de muitos trilhões de dólares e o socorro financeiro para os que são grandes demais para quebrar.

Instintivamente, pelo menos, embora de maneira ainda incipiente, milhões de americanos já percebem claramente que, desde a era Reagan, o jogo consiste em uma oligarquia/plutocracia que usa o supremacismo branco como arma para fins de poder político, como o bônus extra de uma transferência de riqueza constante e maciça para o topo.

Um pouco antes dos primeiros protestos pacíficos de Minneapolis, afirmei que as perspectivas realpolitik do mundo pós-lockdown eram sombrias, privilegiando tanto a restauração do neoliberalismo – já em vigor – quanto um neofascismo híbrido.
O Presidente Trump e sua a estas alturas já icônica operação foto com a Bíblia em frente à igreja de St. John – que incluiu cenas de cidadãos sendo atacados com gás lacrimogêneo – levou a encenação a um nível inédito. Trump queria enviar uma mensagem cuidadosamente coreografada a sua base evangélica. Missão cumprida.

Mas pode-se dizer que o sinal (invisível)  mais importante tenha sido o quarto homem em uma das fotos.

Giorgio Agamben já provou além de qualquer dúvida razoável que o estado de sítio está agora totalmente normalizado no Ocidente. O Procurador-Geral  William Barr pretende agora institucionalizá-lo nos Estados Unidos: ele é o homem com liberdade de manobra suficiente para decretar  um estado de emergência permanente, uma Lei Patriota turbinada com esteróides, contando até mesmo com o apoio “demonstração de força” dos Blackhawk,

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

 

 

 

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