Pepe Escobar: O mito da ‘ausência de ocidentalidade’: Tudo, em Munique é sobre EUA x China

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Ministro Wang Yi, das Relações Exteriores da China, sublinha a urgente necessidade de coordenação internacional “para que se construa um futuro partilhado”
19/2/2020, Pepe Escobar, Asia Times

Imagem: Ministro Wang Yi das Relações Exteriores da China fala à 56ª Conferência de Segurança de Munique (CSM), dia 15/2/2020. Foto: Abdulhamid Hosbas / Anadolu / AFP

Raras pantomimas políticas pós-modernas foram mais reveladoras que as centenas de ditos “tomadores de decisões políticas internacionais”, a maior parte dos quais ocidentais, ensebando os próprios discursos e declarações em tons líricos, desgostosos ou nostálgicos, sobre a tal “ausência de ocidentalidade” na Conferência de Segurança de Munique.

“Ausência de ocidentalidade” soa feito aqueles conceitos constipados brotados de alguma ressaca braba na Rive Gauche durantes os anos 1970s. Em teoria (nada a ver com Teoria Francesa) “ausência de ocidentalidade” na era do Whatsapp significaria um déficit de ação multipartidária para enfrentar as ameaças mais graves que pesam contra a “ordem – ou a (des)ordem – internacional”, em momento em que prevalece o nacionalismo, desqualificado como onda populista de visão curta e mente estreita.

Pois o que Munique realmente expôs foi uma carência – ocidental – profunda e nostálgica daqueles dias efervescentes de imperialismo humanitário, com nacionalismos de todas as cores e caras e pedigrees apresentados como vilão que impedia o avanço ininterrupto, incansável, daquelas Guerras Para Sempre, neocolonialistas e lucrativas.

Enquanto os organizadores da CSM – gorda gangue de atlanticistas – tentavam fazer rolar as discussões enfatizando sempre a necessidade de multilateralismo, uma seleção de males que ia desde a migração descontrolada até a OTAN já em estado de “morte cerebral” entrou lá rotulada como consequência direta da “ascensão do iliberalismo e do campo nacionalista no mundo ocidental.” Foi invasão e saque da reunião perpetrados por uma todo-poderosa Hidra com cabeças de Bannon-Bolsonaro-Orban.

Nada mais distante dessas cabeças de ‘Ocidente-é-Mais’ em Munique, que a coragem para admitir que sortimento variado de contragolpes nacionalistas também podem ser declarados revides contra o saque incansável do Sul Global, pelo “Ocidente”, sempre mediante guerras – quentes, frias, financeiras, corporativas-de-exploração-e-roubo.

Valha o que valer, aqui vai o relatório da CSM-2020. Bastariam duas frases para entregar todo o jogo da CSM: “Na era pós-Guerra Fria, as coalizões lideradas pelo ocidente eram libres para intervir em quase qualquer lugar. Na maior parte do tempo, havia apoio no Conselho de Segurança da ONU, e quando era lançada uma intervenção militar, o ocidentes gozava de liberdade quase irrestrita para movimento militar.”

Aí está. Eram tempos em que a OTAN, em plena impunidade, podia bombardear a Sérvia, perder miseravelmente uma guerra contra o Afeganistão, transformar a Líbia num inferno de milícias e urdir intervenções sem conta em todo o Sul Global. E, claro, nada disso tinha qualquer conexão com os bombardeados e invadidos serem obrigados a virar refugiados na Europa.

O ocidente é mais

Em Munique, a ministra das Relações Exteriores da Coreia do Sul, Kang Kyung-wha aproximou-se do xis da questão, ao dizer que, para ela, “ausência de ocidentalidade” parecia tema bem insular. Cuidou para destacar que o multilateralismo é traço marcadamente asiático, e estendeu-se sobre o tema da centralidade da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN).

O ministro das Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov, com a finesse de sempre, foi mais direto, ao observar como “a estrutura da rivalidade da Guerra Fria está sendo recriada” na Europa. Lavrov foi um prodígio de eufemismo quando observou como “tensões em escalada, avanço da infraestrutura militar da OTAN no Leste, exercício de escopo sem precedentes próximos das fronteiras russas, o inchaço desmedido de orçamentos de defesa – tudo isso gera imprevisibilidade.”

Mas foi o ministro de Relações Exteriores e Conselheiro do Estado da China Wang Yi quem realmente chegou ao coração da matéria. Ao destacar que “fortalecer a governança global e a coordenação internacional é agora urgente” – disse Wang. – “Temos de nos livrar da divisão de Leste e Oeste, e ir além da diferença entre Sul e Norte, numa aposta para construir uma comunidade com destino partilhado para a humanidade.”

“Comunidade com destino partilhado” pode ser terminologia padrão de Pequim, mas carrega sentido profundo, porque dá corpo ao conceito chinês de multilateralismo como significando que nenhum estado isolado tem prioridade e todas as nações partilham os mesmos direitos.

Wang foi ainda mais longe: O Ocidente – com ou sem ausência de ocidentalidade – deve-se livrar de sua mentalidade subconsciente de supremacia civilizacional; deve desistir de qualquer viés anti-China; e deve “aceitar e dar boas-vindas ao desenvolvimento e à revitalização de uma nação do Oriente, com sistema diferente do sistema do Ocidente.” Wang é diplomata suficientemente sofisticado para saber que nada disso acontecerá.

Wang tampouco poderia deixar de fazer levantar até os píncaros mais alarmantes s sobrancelhas da turma da ausência de ocidentalidade ao destacar, mais uma vez, que a parceria estratégica Rússia-China será aprofundada – ao lado da exploração “de vias de coexistência pacífica” com os EUA e mais profunda cooperação com a Europa.

O que esperar do chamado “líder do sistema” em Munique foi bastante previsível. E lá apareceu como previsto no script entregue pelo atual diretor do Pentágono Mark Esper, mais um praticante da porta giratória em Washington.

Ameaça do século 21

Todos os itens de discussão previstos pelo Pentágono lá estavam. China não passa de crescente ameaça à ordem do mundo –, e “ordem” ditada por Washington. China rouba know-how ocidental; intimida todos seus vizinhos menores e mais fracos; busca extrair “vantagem por quaisquer meios e a qualquer custo.”

Como se fosse preciso dar algum outro sinal àquela plateia bem informada, a China foi mais uma vez posta no topo da lista das “ameaças” do Pentágono, seguida pela Rússia, por Irã e Coreia do Norte, “estados bandidos” e por “grupos extremistas.” Ninguém perguntou se al-Qaeda na Síria entrou na lista.

O “Partido Comunista e seus órgãos associados, incluído o Exército de Libertação Popular” foram acusados de “operar cada vez mais em teatros fora das fronteiras da China, inclusive na Europa.” Todo mundo sabe que só uma “nação indispensável” é autoautorizada a operar “em teatros fora das próprias fronteiras” para democratizar à bomba quem ela bem entenda.

Não surpreende que Wang tenha sido forçado a qualificar como “mentiras” tudo o que acima se lê: “A causa raiz de todos esses problemas e questões é que os EUA recusam-se a ver o rápido desenvolvimento e rejuvenescimento da China, e ainda muito menos querem aceitar o sucesso de um país socialista.”

Assim, no fim, Munique desintegrou-se no arranca-rabo que dominará o restante do século. Com a Europa irrelevante de facto e a União Europeia subordinada aos desígnios da OTAN, a ausência de ocidentalidade não passa, mesmo, de conceito constipado: toda a realidade é condicionada pela dinâmica tóxica da ascensão da China e do declínio dos EUA.

Mais uma vez a sempre irrepreensível Maria Zakharova acertou na mosca: “Falaram daquele país [China] como ameaça contra toda a humanidade. Disseram que a política da China é a ameaça do século 21. Algo me diz que estamos assistindo, em particular nos discursos que se ouviram na Conferência de Munique, o renascimento de abordagens neocoloniais, como se o ocidente tivesse deixado de sentir vergonha de reencarnar o espírito do colonialismo, dividindo povos, nações e países.”

Ponto alto absoluto da CSM foi quando a Fu Ying, presidenta para assuntos exteriores do Congresso Nacional do Povo, reduziu a presidenta da Câmara de Representantes dos EUA Nancy Pelosi, a pó, com uma pergunta simples: “A senhora realmente acha que o sistema democrático seja tão frágil” a ponto de ser ameaçado pela Huawei?

* Publicado sob o título “Munich conference reveals East-West divide”. Pelo Facebook, Pepe Escobar informou: “By the way, my original title was…The Westlessness myth: it’s all about US vs. China. Ficamos com o título original [NTs].

Traduzido pelo coletivo Vila Mandinga

 

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