Pepe Escobar: Na Eurásia, a Guerra dos Corredores Econômicos segue à toda

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Mega organizações eurasianas e seus respectivos projetos agora convergem em velocidade recorde, com um polo global muito à frente do outro

Nord Stream 2 (Foto: Reuters)
Por Pepe Escobar, para o The Craddle

A Guerra dos Corredores Econômicos agora segue à toda, com o divisor de águas que foi a primeira remessa de mercadorias da Rússia para a Índia pelo Corredor Internacional de Transporte Norte Sul (CITNS) já implementado.

O CITNS em modo plenamente operacional assinala um poderoso marco da integração eurasiana – juntamente à Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) e a (OCX), a União Econômica Eurasiana (UEEA) e, por último, mas não menos importante, o que há duas décadas descrevi como sendo o “Gasodutistão”.

O Cáspio é a Chave 

Demos uma primeira olhada em como esses vetores vêm interagindo.

A gênese da atual aceleração foi a recente visita do Presidente da Rússia Vladimir Putin a Ashgabat, a capital do Turcomenistão, para a Sexta Cúpula Cáspia. Esse evento não apenas aprofundou a parceria estratégica Rússia-Irã, atualmente em desenvolvimento, como também, o que é de importância crucial, firmou um acordo entre  todos os cinco países litorâneos do Mar Cáspio que determina que absolutamente nenhum navio de guerra ou base da OTAN serão admitidos no local.

O que virtualmente configura o Cáspio como um lago russo e, em  menor grau, iraniano – sem comprometer os interesses dos três “istãos”, Azerbaijão, Cazaquistão e Turcomenistão. Para todos os fins práticos, Moscou aumentou um pouco seu controle sobre a Ásia Central.

Como o Mar Cáspio é conectado ao Mar Negro por canais que saem do Volga construídos pela antiga URSS, Moscou sempre poderá contar com uma marinha de reserva de navios de pequeno porte – invariavelmente equipados com mísseis poderosos – que podem ser rapidamente transferidos para o Mar Negro, caso necessário.

Comércio e elos financeiros mais fortes com o Irã agora avançam paralelamente à conexão  dos três “istãos” à matriz russa. A república do Turcomenistão, rica em petróleo, de sua parte, sempre foi historicamente idiossincrática – além de destinar a maior parte de suas exportações à China.

Sob seu novo presidente, o jovem e possivelmente mais pragmático Serdar Berdimuhamedow, Ashgabat talvez venha a optar por se tornar membro da OCX e/ou da UEEA.

O Azerbaijão, estado litorâneo do Mar Cáspio, por seu lado, apresenta um caso complexo: produtor de petróleo e gás cobiçado pela UE como alternativa ao fornecimento de energia russa – embora isso não vá acontecer em um futuro próximo.

A conexão Oeste-Asiática 

A política externa do Irã sob o Presidente Ebrahim Raisi ruma claramente para a Eurásia e o Sul Global. Teerã irá se incorporar formalmente à OCX como membro pleno na próxima cúpula a ser realizada em Samarcanda, em setembro, e sua solicitação formal de ingresso nos BRICS já foi apresentada.
Purnima Anand, presidente do Fórum Internacional dos BRICS declarou que a Turquia, a Arábia Saudita e o Egito têm grande interesse em se juntar aos BRICS. Caso isso aconteça, em 2024 talvez estejamos a caminho de um nó unindo o Oeste Asiático e o Norte da África, firmemente instalado no interior de uma das principais instituições do mundo multipolar.
Como Putin vai a Teerã na próxima semana para conversações trilaterais entre Rússia, Irã e Turquia, oficialmente sobre a questão da Síria, é fatal que o presidente turco Recep Tayyip Erdogan levante a questão dos BRICS.
Teerã vem operando em dois vetores paralelos. Na eventualidade de o Plano Amplo de Ação Conjunta (JCPOA, em inglês) ser  ressuscitado – uma possibilidade bastante longínqua, tendo em vista as últimas gracinhas ocorridas em Viena e em Doha – essa seria uma vitória tática. No entanto, aproximar-se da Eurásia seria uma iniciativa de um nível estratégico totalmente novo.

No quadro do CITNS , o Irã fará o uso maximamente vantajoso do geoestratégico porto de Bandar Abbas – situado entre o Golfo Pérsico e o Golfo de Omã, na encruzilhada entre a Ásia, a África e o Subcontinente Indiano.

No entanto, por mais que a entrada nos BRICS possa ser exibida como um grande vitória diplomática, é evidente que Teerã não poderá fazer pleno uso de sua condição de membro se as sanções ocidentais – principalmente as dos Estados Unidos – não forem totalmente retiradas.

Os gasodutos e os “istãos” 

Um argumento convincente seria o de que a Rússia e a China poderiam futuramente preencher o vazio de tecnologia ocidental no processo de desenvolvimento iraniano. Mas plataformas tais como o CITNS, a UEEA e até mesmo o BRICS podem ter resultados muito maiores.

Por todo o “Gasodutistão”, a Guerra dos Corredores Econômicos se torna ainda mais complexa. A propaganda ocidental simplesmente não consegue admitir que o Azerbaijão, a Argélia, a Líbia, aliados da Rússia na OPEC, e até mesmo o Cazaquistão não estejam exatamente ansiosos para aumentar sua produção de petróleo para ajudar a Europa.

O Cazaquistão é um caso complicado: o país é o maior produtor de petróleo da Ásia Central e a caminho de se tornar um grande fornecedor de gás natural, logo depois da Rússia e do Turcomenistão. Mais de 250 campos de petróleo e gás são operados no Cazaquistão por 104 empresas, inclusive as gigantes de energia ocidentais, como Chevron, Total, ExxonMobil e Royal Dutch Shell.

Enquanto as exportações de petróleo, gás natural e derivados  de combustíveis fósseis representam 57% das exportações do Cazaquistão,  o gás natural responde por 85% do orçamento do Turcomenistão (com 80% das exportações dirigidas à China). É interessante notar que Galkynysh é o segundo maior campo de gás do planeta.

Comparado aos outros “istãos”, o Azerbaijão é um produtor relativamente menor (embora o petróleo responda por 86% do total de suas exportações), sendo basicamente um país de trânsito. As aspirações de Baku de atingir um grau elevado de riqueza centram-se no Corredor de Gás Meridional, que inclui nada menos que três gasodutos: Baku-Tblisi-Erzurum (BTE); o Duto Trans-Anatólia de Gás Natural Pipeline (TANAP), gerido pela Turquia; e o Trans-Adriático (TAP).

O problema com esse festival de siglas – BTE, TANAP, TAP – é que todas elas necessitam de maciços investimentos externos para aumentar sua capacidade, recursos esses que faltam à União Europeia, porque cada euro é usado pelos eurocratas não-eleitos de Bruxelas para “apoiar” o buraco negro que é a Ucrânia. Os mesmos problemas financeiros se aplicam a um possível Gasoduto Transcáspio, que mais adiante se conectaria ao TANAP e ao TAP.

Na Guerra dos Corredores Econômicos – o capítulo “Gasodutistão” – um aspecto crucial é que a maior parte das exportações de petróleo cazaques para a União Europeia passa pela Rússia através do Consórcio do Gasoduto Cáspio (CPC). Como alternativa, os europeus vêm considerando uma ainda nebulosa Rota de Transporte Transcáspia, também conhecida como o Corredor do Meio (Cazaquistão-Turcomenistão-Azerbaijão-Geórgia-Turquia). Isso foi objeto de intenso debate em Bruxelas no mês passado.

A conclusão é que a Rússia permanece com pleno controle do tabuleiro dos gasodutos eurasianos (e não estamos nem falando dos gasodutos operados pela Gazprom Poder da Sibéria 1 e 2, direcionados à China).

Os executivos da Gazprom têm plena consciência de que um aumento rápido das exportações de energia para a União Europeia está fora de questão. Eles também levam em conta a Convenção de Teerã – que contribui para evitar e controlar a poluição e manter a integridade ambiental do Mar Cáspio, assinada por todos os países litorâneos.

Quebrando a ICR na Rússia

A China, de sua parte, confia que um de seus piores pesadelos estratégicos possa vir a desaparecer. O notório  “escapar de Malaca” fatalmente irá se materializar, em cooperação com a Rússia, pela Rota do Mar do Norte, que irá  encurtar o corredor de comércio e conectividade do Leste Asiático até a Europa do Norte, de 11.200 para apenas 6.500 milhas náuticas. Podem chamá-lo de o gêmeo polar do CITNS.

Isso explica também por que a Rússia vem se ocupando em construir uma grande variedade de  quebra-gelos estado-da-arte.

Aqui, então, temos uma interconexão com as Novas Rotas da Seda (o CITNS segue paralelamente à ICR e a UEEA), com o Gasodutistão e com a Rota do Mar do Norte, que em breve irá virar de cabeça para baixo o domínio ocidental do comércio internacional.

E claro que os chineses já tinham tudo isso planejado há bastante tempo. O primeiro Livro Branco sobre a política da China para o Ártico, de janeiro de 2018, já mostrava que Pequim tem como objetivo, “juntamente com outros estados” (significando a Rússia) implementar rotas de comércio marítimo no Ártico no âmbito da Rota da Seda Polar.

E, de forma pontual, Putin subsequentemente confirmou que a Rota do Mar do Norte deverá interagir e complementar a Rota da Seda Marítima chinesa.

A cooperação econômica Rússia-China vem se desenvolvendo em tantos níveis complexos e convergentes que tentar acompanhar sua evolução é uma experiência estonteante.

Uma análise mais detalhada irá revelar alguns dos pontos mais sutis, por exemplo, como a ICR e a OCX interagem, e como os projetos da ICR terão que se adaptar às fortes consequências da Operação Z de  Moscou na Ucrânia, com maior ênfase sendo colocada no desenvolvimento dos corredores do Oeste Asiático e da Ásia Central.

É sempre crucial ter em mente que um dos principais objetivos estratégicos da implacável guerra híbrida de Washington contra a Rússia sempre foi o de quebrar os corredores da ICR que cruzam o território russo.

No pé em que as coisas estão, é importante se dar conta de que dúzias dos projetos da ICR nas áreas industrial, de investimentos e da cooperação interfronteiras e inter-regional irão acabar por consolidar o conceito russo de uma Parceria da Grande Eurásia – que, essencialmente, gira em torno do estabelecimento de cooperação multilateral com uma vasta gama de países pertencentes a organizações tais como a UEEA, a OCX, os BRICS e a ASEAN.

Bem-vindos ao novo mantra eurasiano: Façam Corredores Econômicos, Não a Guerra.

Tradução de Patricia Zimbres para o 247

Fonte: 247

 

 

 

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