A nova moeda deverá, mais adiante, conseguir se tornar um “dinheiro externo” de estoque de capital e reservas, e não apenas uma unidade de pagamentos…
Pepe Escobar
Ah, os prazeres da Grande Linha Circular (BKL, em cirílico): circum-navegar toda Moscou por 71 quilômetros e 31 estações, de Tekstilshchiki, no velho bairro têxtil, até Sokolniki – uma galeria supremacista/construtivista (Malevich vive!); de Rizhskaya, com seus esplêndidos arcos de pedra, a Maryina Roscha – com sua escada rolante de 130 metros de comprimento.
A BKL é como uma metáfora viva, pulsante, em constante movimento, da capital do mundo multipolar: um curso intensivo de arte, arquitetura, história, desenho urbano, tecnologia de transportes e, é claro, “trocas de pessoa a pessoa”, para citar nossos amigos chineses das Novas Rotas da Seda.
O Presidente Xi Jinping, por sinal, dará uma volta na BKL com o Presidente Putin quando vier a Moscou, em 21 de março.
Não é de surpreender, portanto, que quando um investidor de grande sagacidade, situado nos níveis mais elevados dos mercados financeiros globais e com décadas de experiência, concordou em falar de algumas de suas principais percepções sobre o sistema financeiro global, eu propus uma viagem na BLK e ele imediatamente aceitou. Vamos chamá-lo de Sr. S. Tzu. Aqui vai a transcrição minimamente editada de nossa conversa itinerante.
Agradeço a você por arranjar um tempo para se encontrar comigo – em um cenário tão esplêndido. Com a atual volatilidade dos mercados, deve ser difícil para você se afastar das telas.
S. Tzu: Sim, os mercados, atualmente, estão muito inquietos. Estes últimos meses me fazem lembrar 2007-8, exceto que, desta vez, não são os fundos de mercados monetários e das hipotecas subprime que estão explodindo, e sim gasodutos e mercados de obrigações da dívida pública. Vivemos em tempos muito interessantes.
O que me fez procurar você foram suas opiniões sobre o conceito do “Bretton Woods 3” criado por Zoltan Poszar. Você, definitivamente, sabe muito sobre o assunto.
Entendendo o “dinheiro externo”
Você mencionou o bitcoin. Por que ele foi tão revolucionário àquela época?
S. Tzu: Se deixarmos de lado o lado cripto das coisas, a promessa e a razão do sucesso inicial do bitcoin era que ele representava uma tentativa de criar dinheiro “externo” (para usar a excelente terminologia do Sr. Zoltan) que não estivesse sujeito a um Banco Central. Uma das principais características dessa nova unidade era o limite de 21 milhões de moedas que poderiam ser mineradas, o que soava bem para aqueles que conseguiam ver os problemas do sistema atual. Hoje pode soar trivial, mas a ideia de que uma unidade monetária moderna possa existir sem o patrocínio de qualquer autoridade centralizada, tornando-se efetivamente dinheiro “externo” em forma digital, era revolucionária em 2008. É desnecessário dizer que a crise dos títulos da dívida pública europeia, a flexibilização quantitativa e a recente espiral inflacionária global só fizeram ampliar a dissonância que muitos já vinham sentindo há décadas. A credibilidade do atual sistema de “dinheiro interno” (usando novamente a elegante terminologia do Sr. Poszar) havia sido destruída muito antes de termos chegado aos congelamentos de reservas dos Bancos Centrais e às perturbadoras sanções econômicas que atualmente vêm sendo usadas. Infelizmente, não há maneira melhor de destruir a credibilidade do sistema embasado na confiança do que congelar e confiscar reservas de moedas estrangeiras depositadas em contas sob a custódia de Bancos Centrais. A dissonância cognitiva por trás da criação do bitcoin tornou-se validada — em 2022, o sistema de “dinheiro interno” já estava sendo usado como arma. As implicações são profundas.
Chegamos agora ao cerne da questão. Como você sabe, Zoltan afirma que um novo sistema “Bretton Woods 3” irá surgir no próximo estágio. O que, exatamente, ele quer dizer com isso?
S. Tzu: Também não tenho clareza quanto a se o Sr. Poszar se refere à transformação do atual “dinheiro interno” ocidental em alguma outra coisa ou se ele sugere o surgimento de um “Bretton Woods 3” como uma alternativa externa ao atual sistema financeiro. Estou convencido de que uma repetição do “dinheiro externo” tem poucas chances de ter êxito no Ocidente, no atual estágio, devido à falta de vontade política e à dívida governamental excessiva que vem se acumulando já faz algum tempo e aumentou exponencialmente em anos recentes.
Antes de a atual ordem financeira ocidental conseguir avançar para o próximo estágio evolutivo, algumas dessas principais deficiências terão que ser reduzidas em termos reais. Se nos basearmos na história, isso tende a ocorrer com inadimplência ou inflação, ou uma combinação das duas. O que parece altamente provável é que os governos ocidentais irão recorrer à repressão financeira a fim de manter o barco à tona e enfrentar o problema da dívida. Imagino que haverá muitas iniciativas de aumentar o controle sobre o sistema de “dinheiro interno” que, muito provavelmente serão cada vez menos populares. A adoção de CDBCs, por exemplo, pode ser uma dessas iniciativas. A esse respeito, não tenho a menor dúvida de que iremos enfrentar tempos agitados. Ao mesmo tempo, também parece inevitável, no estágio em que nos encontramos, o surgimento de algum tipo de “dinheiro externo alternativo” para competir com a atual ordem financeira global de “dinheiro interno”.
E por quê?
S. Tzu: A economia global não pode mais confiar no “dinheiro interno” que, em seu estado atual, vem sendo usado como arma, para a totalidade de suas necessidades de comércio externo, reservas e investimentos. Se sanções e congelamento de reservas são os novos instrumentos da mudança de regime, todos os governos do mundo devem estar pensando em alternativas ao uso da moeda de um outro país para seu comércio e suas reservas. O que não é óbvio, entretanto, é qual deveria ser essa alternativa à problemática ordem financeira global. A história não traz muitos exemplos bem-sucedidos de enfoques de “dinheiro externo” que não possam ser reduzidos a alguma versão do padrão ouro. E há muitas razões para o fato de que o ouro, por si só, ou uma moeda plenamente conversível em ouro, ser excessivamente restritivo como base para um sistema monetário moderno.
Ao mesmo tempo, o aumento do comércio em moedas locais ocorrido em tempos recentes, infelizmente, tem também um potencial muito limitado, uma vez que moedas locais são simplesmente uma outra instância do “dinheiro interno”. Há razões óbvias para que muitos países não aceitem moedas locais de outros (ou mesmo suas próprias) em troca de suas exportações. Quanto a isso, estou de pleno acordo com Michael Hudson. Uma vez que o “dinheiro interno” é responsabilidade do Banco Central de um país, quanto mais baixa for a situação de crédito de um país, mais ele terá necessidade de capital para investimentos, e menos dispostas estarão as demais partes a aceitar conceder-lhe empréstimos. Essa é uma das razões pelas quais um típico pacote das “reformas estruturais” exigidas pelo FMI, por exemplo, visa a melhorar a qualidade de crédito do governo tomador. O “dinheiro externo” é muito necessário precisamente aos países e governos que se sentem reféns do FMI e do atual sistema financeiro de “dinheiro interno”.
Entra em cena a “novamoeda”
Um bom número de especialistas parece estar examinando essa questão. Sergey Glazyev, por exemplo.
S. Tzu: Sim algumas indicações disso apareceram em publicações recentes. Embora eu não esteja a par do conteúdo dessas discussões, eu também, certamente, venho pensando sobre a forma que esse sistema alternativo poderia tomar. Os conceitos do Sr. Pozsar de dinheiro “interno” e “externo” são uma parte muito importante dessa discussão. No entanto, a dualidade desses termos pode induzir a erro. Nenhuma das duas opções é inteiramente adequada aos problemas a serem solucionados pela nova unidade monetária – vamos chamá-la de “newcoin” (“novamoeda”) para simplificar.
Permita-me explicar. Com o atual sistema de “dinheiro interno” do dólar dos Estados Unidos sendo usado como arma e, simultaneamente, a escalada das sanções, o mundo efetivamente viu-se dividido em “Sul Global” e “Norte Global”, termos ligeiramente mais precisos que que Oriente e Ocidente. O que é importante aqui, como o Sr. Pozsar imediatamente notou, é que também as cadeias de fornecimento e as commodities vêm sendo, até certo ponto, usadas como armas. O friend-shoring, ou priorização de amigos ou aliados, veio para ficar. A implicação é que a principal prioridade da novamoeda seria facilitar o comércio interno ao Sul sem recorrer às moedas do Norte Global.
Se esse fosse o único objetivo, haveria uma escolha entre soluções relativamente simples, indo do uso do renminbi/yuan em transações comerciais, da criação de uma nova moeda comum (tomando como modelo o euro, o ECU, ou mesmo o franco Centro-Africano), a criação de uma nova moeda baseada na cesta das moedas locais participantes (semelhantes ao SDR do FMI), criando potencialmente uma nova moeda atrelada ao ouro, ou até mesmo atrelando as moedas locais existentes ao ouro. Infelizmente, a história está cheia de exemplos de como cada um desses enfoques cria sua própria hoste de novos problemas.
É claro que há outros objetivos paralelos para a nova unidade de moeda, que nenhuma dessas possibilidades pode atender satisfatoriamente. Por exemplo, imagino que todos os participantes esperariam que a nova moeda fortalecesse, e não diluisse sua soberania. Em seguida, os problemas ocorridos com o euro e, anteriormente, com o padrão ouro, demonstram o problema mais amplo com taxas cambiais “fixas”, especialmente se a “fixação” inicial não foi de nível ótimo para alguns membros da zona monetária. Os problemas só fazem se acumular ao longo do tempo até que a taxa seja “refixada”, em geral por meio de uma violenta desvalorização. Tem que haver flexibilidade ao longo do tempo no ajuste da competitividade relativa dentro do Sul Global, para que os participantes preservem sua soberania nas decisões monetárias. Uma outra exigência seria que a nova moeda tenha “estabilidade” para que ela alcance êxito como unidade de fixação de preços para coisas voláteis como commodities.
E o que é mais importante: mais adiante, a nova moeda deverá ser capaz de se converter em um armazenamento de capital e de reservas em “dinheiro externo”, e não apenas uma unidade para pagamentos. Na verdade, minha convicção de que a nova unidade monetária virá a surgir vem, principalmente, da atual falta de alternativas viáveis para reservas e investimentos fora do tão prejudicado sistema financeiro do dinheiro interno”.
Então, levando em conta todos esses problemas, o que você propõe como solução?
S. Tzu: Primeiramente, permita-me afirmar o óbvio: é muito mais fácil encontrar a solução técnica para o problema do que chegar a um consenso político entre os países interessados em se juntar à zona da novamoeda. No entanto, a necessidade atual é tão aguda, em minha opinião, que os compromissos políticos necessários serão encontrados a seu tempo.
Isso posto, permita-me apresentar um plano técnico para a novamoeda. Começo dizendo que ela deve ser parcialmente (sugiro uma proporção de pelo menos 40% do valor) lastreada em ouro, por razões que logo ficarão claras. Os 60% restantes seriam compostos de uma cesta das moedas dos países participantes. O ouro forneceria a âncora de “dinheiro externo” para a estrutura, e o elemento cesta de moedas permitiria que os participantes mantivessem soberania e flexibilidade financeira. Haveria uma clara necessidade de se criar um Banco Central para a novamoeda, que seria o emissor da nova unidade monetária. Esse Banco Central poderia se tornar uma contrapartida para as trocas cruzadas, além de desempenhar funções de compensação para o sistema e exigência de cumprimento das regulamentações. Qualquer país teria a liberdade de se juntar à novamoeda, dependendo de uma série de condições.
Primeiramente, o país candidato tem que demonstrar que tem em estoque interno ouro físico não-comprometido e dar como caução uma certa quantidade desse ouro em troca da quantia correspondente em novamoeda (usando a proporção de 40% mencionada acima). O equivalente econômico dessa transação inicial seria uma venda de ouro ao “pool de ouro” que lastreia a novamoeda em troca de uma quantia proporcional da novamoeda lastreada pelo pool. O formato legal empregado nessa transação é um fator de menor importância, uma vez que ele é necessário apenas para garantir que a novamoeda sendo emitida seja sempre lastreada em ouro em pelo menos 40%. Não há necessidade de divulgar ao público as reservas de ouro de cada país, contanto que todos os participantes tenham certeza de que haverá sempre reservas suficientes. Um mecanismo anual de auditoria e monitoramento talvez seja o bastante.
Em segundo lugar, um país candidato teria que criar um mecanismo de descoberta do preço do ouro em sua moeda interna. O mais provável é que uma das trocas de metais preciosos participantes daria início ao comércio de ouro físico em cada uma das moedas locais. Isso criaria uma cotação cruzada justa para as moedas locais que usam o mecanismo do “dinheiro externo”, fixando e ajustando essa cotação ao longo do tempo. O preço em ouro das moedas locais determinaria seu valor na cesta das novamoedas recém-emitidas. Cada país continuaria soberano e livre para emitir moeda local nas quantidades que desejassem, mas isso acabaria por ajustar a cota de sua moeda ao valor da novamoeda. Ao mesmo tempo, um país só conseguiria obter novamoedas adicionais do banco central em troca de uma nova caução em ouro. O resultado líquido é que o valor de cada componente da novamoeda em termos de ouro seria justo e transparente, o que se traduziria também na transparência do valor da novamoeda.
Por fim, emissões ou vendas de novamoeda pelo banco central seriam permitidas unicamente em troca de ouro para qualquer parte externa à zona da novamoeda. Em outras palavras, as duas únicas maneiras de uma parte externa obter grandes quantias de novamoedas seriam ou recebê-las em troca de ouro físico ou como pagamento por bens ou serviços fornecidos. Ao mesmo tempo, o banco central não seria obrigado a comprar novamoedas em troca de ouro, eliminando o risco de “corridas ao banco”.
Corrija-me se estou errado: essa proposta parece ancorar todo o comércio interno à zona da novamoeda e todo o comércio exterior ao ouro. Nesse caso, como seria a estabilidade da novamoeda? Afinal, o ouro já se mostrou volátil no passado.
S. Tzu: Creio que o que você está perguntando é qual poderia ser o impacto se, por exemplo, o preço do ouro em dólar caísse drasticamente. Nesse caso, como não haveria nenhuma cotação cruzada direta entre a novamoeda e o dólar, e como o banco central do Sul Global estaria apenas comprando, e não vendendo dinheiro em troca de novamoeda, vê-se de imediato que a arbitragem seria extremamente difícil. Como resultado, a volatilidade da cesta de moedas expressa em novamoeda (ou ouro) seria bastante baixa. E esse, exatamente, é o impacto positivo da ancoragem de “dinheiro externo” na nova unidade monetária sobre o comércio e os investimentos. Claramente, algumas das principais commodities de exportação teriam seu preço determinado pelo Sul Global apenas em ouro e novamoeda, tornando ainda menos prováveis as “corridas ao banco” ou os ataques especulativos.
Com o tempo, se o ouro for desvalorizado no Norte Global, ele, gradualmente, e talvez rapidamente, gravitaria para o Sul Global em troca de exportações ou novamoeda, o que não seria um mau resultado para o sistema de “dinheiro externo”, acelerando a ampla aceitação da novamoeda como moeda de reservas. Outro fato importante é que, como as reservas de ouro físico são finitas fora da zona da novamoeda, os desequilíbrios se corrigiriam automaticamente, uma vez que o Sul Global continuará sendo um exportador líquido das principais commodities.
O que você acabou de dizer está repleto de informações preciosas. Talvez devêssemos retomar a questão em um futuro próximo e discutir o feedback recebido por suas ideias. Agora, chegamos em Maryina Roscha, hora de desembarcar!
S. Tzu: Seria um prazer continuar nosso diálogo. Espero repetir este passeio!
Tradução de Patricia Zimbres
Fonte: Brasil 247