Pepe Escobar: Emirado Islâmico do Afeganistão volta retumbante 

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16/8/2021, Pepe Escobar, Asia Times

A ‘perda’ do Afeganistão pelos EUA é reposicionamento e nova missão: não alguma ‘guerra ao terror’, mas guerra contra Rússia e China

Imagem: Combatentes Talibã montam guarda no acostamento, em rodovia próxima da praça Zanbaq em Cabul, dia 16/8/2021, depois do fim espantosamente rápido de 20 anos de guerra no Afeganistão, com milhares de pessoas buscando o aeroporto da cidade, tentando fugir da temida linha dura do governo islamista. Foto: AFP / Wakil Kohsar

 

Wait until the war is over / Esperar que a guerra acabe
And we’re both a little older? / E estejamos ambos um pouco mais velhos?
The unknown soldier / O soldado desconhecido
Breakfast where the news is read / Café da manhã onde se lê o noticiário
Television children fed / Crianças alimentadas com televisão
Unborn living, living, dead / Não nascidos vivos, vivos, mortos
Bullet strikes the helmet’s head / O tiro atinge o capacete
And it’s all over / E está tudo acabado
For the unknown soldier /Para o soldado desconhecido.
The Doors, “The Unknown Soldier

Afinal, o momento Saigon  aconteceu mais depressa do que esperavam os “especialistas” da inteligência ocidental. Essa é para os anais da história: quatro dias frenéticos que se constituíram na mais espantosa guerrilha-relâmpago dos tempos recentes. Ao estilo afegão: muita persuasão, muitos acordos tribais, zero coluna de tanques, mínima perda de sangue.

12 de agosto demarcou a cena, com a quase simultânea captura de Ghazni, Kandahar e Herat. Dia 13 de agosto, os Talibã estavam a apenas 50 quilômetros de Cabul. Dia 14 de agosto começou com o sítio de Maidan Shahr, porta de entrada para Cabul.

Ismail Khan, o legendário velho Leão de Herat, conseguiu um acordo de autopreservação e foi enviado pelos Talibã como alto enviado a Cabul: ou o presidente Ashraf Ghani deixa o poder, ou será deposto.

Ainda no sábado, os Talibã tomaram Jalalabad – e isolaram Cabul pelo leste, até a fronteira afegã-paquistanesa em Torkham, entrada para o Desfiladeiro Khyber. No sábado à noite, Marshal Dostum voava com um punhado de militares para o Uzbequistão pela Ponte da Amizade em Termez; só uns poucos foram autorizados a entrar. Os Talibã tomaram devidamente o palácio de Dostum, de estilo Tony Montana.

No começo da manhã de 15 de agosto, só restava, ao governo de Cabul o vale Panjshir – no alto das montanhas, uma fortaleza naturalmente protegida –e Hazaras distribuídos pela região: nada há naquelas belas terras centrais, exceto Bamiyan.

Exatamente há 20 anos, eu estava em Bazarak preparando-me para entrevistar o Leão de Panjshir, comandante Masoud, que preparava uma contraofensiva contra… os Talibã. A história se repete, com um toque novo. Dessa vez recebi prova visual de que os Talibã – seguindo o manual clássico de células dormentes de guerrilheiros – já estavam no Panjshir.

E então, o meio da manhã do domingo trouxe a impressionante reencenação visual do momento Saigon, para que o mundo inteiro visse: um helicóptero Chinook paira sobre o teto da embaixada dos EUA em Cabul.

Imagem: Helicóptero militar norte-americano sobrevoa a embaixada dos EUA em Cabul, dia 15/8/2021. Foto: AFP / Wakil Kohsar

‘A guerra acabou’

Ainda no domingo, o porta-voz dos Talibã Mohammad Naeem proclamou: “A guerra acabou no Afeganistão,” e acrescentou que o formato do novo governo logo seria anunciado.

Fatos em campo são muito mais complexos. Negociações frenéticas estavam já em andamento desde a tarde do domingo. Os Talibã estavam prontos a proclamar oficialmente o Emirado Islâmico do Afeganistão em versão 2.0 (1.0 existiu de 1996 a 2001). O anúncio oficial seria feito dentro do palácio presidencial.

Mas o que resta da equipe Ghani recusa-se a transferir o poder a um conselho de coordenação que instalará de facto a transição. O que os Talibã querem é transição sem saltos: agora são o Emirado Islâmico do Afeganistão. Caso encerrado.

Na 2ª-feira, apareceu um sinal de compromisso, emitido pelo porta-voz dos Talibã, Suhail Shaheen. O novo governo incluirá funcionários não Talibãs. Referia-se a um futuro “governo de transição”, mais provavelmente codirigido pelo líder político dos Talibã Mulá Baradar e Ali Ahmad Jalali, ex-ministro de Assuntos Internos, além de empregado da Voz da América.

No fim, não houve Batalha por Cabul. Milhares de Talibã já estavam em Cabul – outra vez, o manual clássico de células dormentes. O núcleo das forças Talibã permaneceram nos arredores da cidade. Em proclamação oficial, os Talibã ordenaram que não entrassem na cidade, que teria de ser capturada sem luta, para evitar baixas entre os civis.

Os Talibã avançou do oeste, mas “avançar”, em contexto, significava conectar-se com as células dormentes em Cabul, as quais estavam então plenamente ativas. Taticamente, Cabul foi cercada num movimento de tipo “anaconda”, como definido por um comandante Talibã: apertada pelo norte, pelo sul e pelo oeste e, depois que Jalalabad caiu, separada do leste.

Num dado ponto da semana passada, inteligência de alto nível certamente soprou para os comandantes dos Talibã que os norte-americanos estavam a caminho para “evacuar”. Pode ter sido a inteligência do Paquistão, talvez até a inteligência turca, com Erdogan como sempre fazendo o seu característico jogo duplo, de OTAN.

A cavalaria de resgate dos norte-americanos não apenas chegou tarde como, ainda pior, foi apanhada numa arapuca, porque não podiam bombardear os próprios agentes dentro de Cabul. O timing muito ruim foi ainda piorado quando a base militar Bagram – o Valhalla da OTAN no Afeganistão durante quase 20 anos – foi finalmente capturado pelos Talibã.

Com tudo isso, EUA e OTAN tiveram de suplicar aos Talibã que os deixassem evacuar tudo à vista, para fora de Cabul – por ar, com urgência, à mercê dos Talibã. Desenvolvimento geopolítico quase impossível de acreditar, no qual ninguém acreditaria, se não acontecesse aí, à vista de todos.

Ghani versus Baradar

A escapada de Ghani, na correria, é tipo “conto contado por um idiota, significando nada” – sem o pathos Shakespeareano. O xis da questão toda foi a reunião, no último momento, na manhã de domingo, entre o ex-presidente Hamid Karzai e o rival eterno de Ghani, Abdullah Abdullah.

Discutiram detalhadamente quem enviariam para negociar com os Talibã – os quais naquele momento não estavam só preparados para uma possível batalha por Cabul, mas, além do mais, já haviam anunciado, há semanas, as suas inamovíveis linhas vermelhas. Querem o fim da atual administração pela OTAN.

Ghani finalmente entendeu o que estava escrito no muro e sumiu do palácio presidencial sem sequer falar com os negociadores em potencial. Com a esposa, o chefe de gabinete e o conselheiro de segurança nacional escapuliu para Tashkent, capital do Uzbequistão. Poucas horas depois, os Talibã entraram no palácio presidencial, todas as imagens espantosas devidamente registradas.

Imagem: Imagem feita de um vídeo, mostra o líder Talibã Mulá Baradar Akhund (à frente, no centro) com companheiros insurgentes, em Cabul, dia 15/8. Nascido em 1968, Mulá Abdul Ghani Baradar, também chamado Mulá Baradar Akhund, é o cofundador dos Talibã no Afeganistão. Foi vice do Mulá Mohammed Omar. Foto: AFP / Talibã / EyePress News

Ao comentar a fuga de Ghani, Abdullah Abdullah não mediu palavras: “Deus o fará pagar pelo que fez”. Ghani, antropólogo com Doutorado da Universidade Columbia, é um daqueles casos clássicos de exilados do Sul Global para o Ocidente, que “esqueceu” tudo que importa sobre sua terra original.

Ghani é Pashtun, agindo como nativo arrogante de New York. Ou pior, Pashtun por nascimento, vivia a demonizar os Talibã, que são predominantemente pashtuns, para nem falar dos tadjiques, uzbeques e Hazaras, inclusive os respectivos anciãos tribais.

É como se Ghani e sua equipe ocidentalizada jamais tivessem aprendido de fonte respeitável, como o falecido, grande antropólogo social norueguês Fredrik Barth (para uma amostra de seus estudos pashtuns, ver aqui).

Geopoliticamente, o que interessa agora é como os Talibã redigiram roteiro completamente novo, mostrando às terras do Islã, bem como ao Sul Global, o que fazer para derrotar o império EUA/OTAN, império autista, autorreferente, só aparentemente invencível.

Os Talibã fizeram o que fizeram com fé islâmica, paciência infinita e força de vontade de cerca de 78 mil combatentes – 60 mil dos quais, ativos – muitos com treinamento militar mínimo, sem apoio de qualquer Estado – diferentes nisso do Vietnã, que contou com China e URSS – sem as centenas de bilhões de dólares da OTAN, sem exército treinado, sem força aérea e sem o estado-da-arte em tecnologias variadas.

Confiaram só nos seus Kalachnikov, lança-granadas portáteis e picapes Toyota – antes de terem capturado armamento e veículos pesados dos EUA, nos últimos dias, incluindo drones e helicópteros.

O líder Talibã Mulá Baradar tem sido extremamente cauteloso. Na 2ª-feira, disse que “É muito cedo para dizer como assumiremos o governo”. Antes de tudo, os Talibã querem “ver sair as forças estrangeiras, antes de começar a reestruturação.”

Abdul Ghani Baradar é personagem muito interessante. Nasceu e foi criado em Kandahar. Ali onde os Talibã começaram em 1994, tomando a cidade quase sem luta; depois, equipados com tanques, armamento pesado e muito dinheiro com o qual subornar comandantes locais, tomaram Cabul, há quase 25 anos, dia 27/9/1996.

Antes disso, o Mulá Baradar combatera na jihad de 1980s contra a URSS e talvez – ainda sem confirmação – lado a lado com o Mulá Omar, com o qual fundou os Talibã.

Depois dos bombardeios e da ocupação pelos EUA depois de 11/9, o Mulá Baradar e um pequeno grupo de Talibã enviaram proposta ao então presidente Hamid Karzai para um possível acordo que permitiria que os Talibã reconhecessem o novo regime. Karzai, pressionado por Washington, não aceitou a proposta.

Baradar foi realmente capturado no Paquistão em 2010 – e mantido preso. Acreditem ou não, foi solto em 2018, por intervenção dos EUA. Mudou-se para o Qatar. E lá foi nomeado chefe do gabinete político dos Talibã, e supervisionou a assinatura, ano passado, do acordo que levou à retirada dos EUA.

Baradar será novo governante em Cabul – mas é importante observar que está sob a autoridade do Supremo Líder dos Talibã desde 2016, Haibatullah Akhundzada. E ele, o Supremo Líder – na verdade, guia espiritual – que comandará a nova encarnação do Emirado Islâmico do Afeganistão.

Imagem: Mulá Haibatullah Akhundzada posa para foto em local não identificado, em 2016. Foto: AFP / Talibã Afegão

Cuidado com um exército camponês de guerrilha

O colapso do Exército Nacional Afegão [ing. Afghan National Army, ANA] era inevitável. Foram ‘educados’ à moda militar dos EUA: tecnologia em massa, poder aéreo em massa, inteligência local em campo próxima de zero.

Com os Talibã sempre se trata de construir acordos com os anciãos tribais e as conexões entre famílias expandidas – e abordar a luta como guerrilha camponesa, semelhantes nisso aos comunistas no Vietnã. Passaram anos construindo conexões – e todas aquelas células dormentes.

Soldados afegãos que estavam há meses sem receber soldos, foram pagos para não combater contra eles. E o fato de que não atacaram tropas dos EUA desde fevereiro de 2020 valeu-lhes muito respeito adicional: cumprir compromissos é questão de honra, essencial no código Pashtunwali.

É impossível compreender os Talibã – e, sobretudo, o universo Pashtun – sem compreender o Pashtunwali. Assim como os conceitos de honra, hospitalidade e vingança inevitável e inescapável em todos os malfeitos, o conceito de liberdade implica que nenhum pashtun aceita facilmente ser mandado por autoridade de estado central – nesse caso, Cabul. E de modo algum, nunca, entregarão suas armas.

Em resumo, aí está o “segredo” da guerra relâmpago com mínimo derramamento de sangue, implícita no terremoto geopolítico que tudo modifica. Depois do Vietnã, aí está o segundo protagonista no Sul Global, mostrando ao mundo como um império pode ser derrotado por exército camponês de guerrilha.

E tudo isso feito com um orçamento que talvez não tenha ultrapassado $1,5 bilhão por ano – recolhido de impostos locais, lucros das exportações de ópio (a distribuição interna é proibida) e especulação imobiliária. Em grandes áreas do Afeganistão, os Talibã já estavam comandando de facto a segurança local, as cortes locais e até a distribuição de comida.

Os Talibã de 2021 são animais completamente diferentes dos Talibã de 2001. Não são apenas combatentes muito experientes; também tiveram tempo para aprimorar seus talentos diplomáticos, mais do que visíveis, recentemente, em Doha e em visitas de alto nível a Teerã, Moscou e Tianjin.

Eles sabem muito bem que qualquer conexão com remanescentes da al-Qaeda, do ISIS/Daech, do ISIS-Khorasan e do Movimento Islâmico do Turquistão Oriental [ing. East Turkestan Islamic Movement, ETIM] é contraproducente – como seus interlocutores da Organização de Cooperação de Xangai cuidaram de deixar bem claro.

Seja como for, será muito difícil alcançar a unidade interna. O labirinto das tribos afegãs é um quebra-cabeças quase indecifrável. O que os Talibã podem conseguir, pensando com realismo, é uma confederação ‘fluida’ de tribos e grupos étnicos sob um emir Talibã, combinada a muito cuidadosa gestão das relações sociais.

Impressões iniciais apontam para momento de mais maturidade. Os Talibã estão garantindo anistia aos empregados da ocupação pela OTAN e não interferirão nos businesses. Não haverá campanha de vingança. Cabul está de volta aos negócios. Não se vê histeria de massa na capital: esse é campo ‘argumental’ exclusivo da mídia comercial anglo-norte-americana. As embaixadas da Rússia e da China permanecem abertas para contatos comerciais e de negócios.

Zamir Cabulov, representante especial do Kremlin para o Afeganistão, confirmou que a situação em Cabul, surpreendentemente, é “absolutamente calma” – até ao reiterar: “Não temos pressa no que tenha a ver com reconhecer o governo [dos Talibã]. Vamos esperar e observar como o regime se comportará.”

O Novo Eixo do Mal

Tony Blinken que gagueje o quanto queira que “estivemos no Afeganistão com um objetivo que se sobrepõe a todos – lidar com aquela gente que nos atacou no 11/9.”

Imagem: Secretário de Estado dos EUA Antony Blinken. Foto: AFP / Patrick Semansky

Qualquer analista sério sabe que o único objetivo geopolítico que “se sobrepõe a todos” nesse caso, para o bombardeio e a ocupação do Afeganistão por quase 20 anos, foi estabelecer um pé essencial do Império de Bases naquela intersecção estratégica de Ásia Central e Sul da Ásia, amancebado logo depois com ocupar o Iraque e o Sudoeste da Ásia.

Agora, a “perda” do Afeganistão deve ser interpretada como esforço para se reposicionar. Encaixa-se na nova configuração geopolítica, na qual a principal missão do Pentágono não é mais alguma “guerra ao terror”, mas tentar simultaneamente isolar a Rússia e fazer de tudo para dificultar todas as ações da China com vistas à expansão das Novas Rotas da Seda.

Ocupar nações menores deixou de ser prioridade. O Império do Caos sempre pode fomentar o caos – e supervisionar coleção variada de raides de bombardeios – a partir de sua base do CENTCOM no Qatar.

O Irã está próximo de ser integrado à Organização de Cooperação de Xangai como membro pleno – outro fator que muda o jogo. Mesmo antes de operar o reset do Emirado Islâmico, os Talibã cultivaram atentamente boas relações com players decisivos na Eurásia – Rússia, China, Paquistão, Irã e os “-stões” da Ásia Central. Os “-stões” estão sob total proteção russa. Pequim já planeja gordos negócios de terras raras com os Talibã.

No front atlanticista, o espetáculo de autorrecriminação em tempo integral consumirá o Departamento de Estado dos EUA ainda por muito tempo. Duas décadas, $2 trilhões, a debacle no caos de uma guerra sem fim, morte e destruição, um Afeganistão ainda em trapos, a ‘retirada’ literalmente ‘na calada da noite’… E tudo isso, para quê? Os únicos “vencedores” foram os Lords da Bandidagem das Armas.

Cada golpe que os EUA distribuem pelo planeta exige o respectivo bode expiatório, um ‘culpado’ oficial. A OTAN foi humilhada em termos cósmicos bem no cemitério de impérios, por um grupo de pastores de cabras –, não em algum encontro íntimo com Mr. Khinzal. O que resta aos EUA? Propaganda.

Assim sendo, apresento-lhes o neobode expiatório da hora: um Novo Eixo do Mal: o eixo Talibã-Paquistão-China. Acabam de recarregar o Novo Grande Jogo na Eurásia.*******

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga

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