Pepe Escobar: Como pensar o Pós-Planeta Confinamento – os tempos pedem que ajamos como poetas, não como políticos

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O jornalista Pepe Escobar escreve sobre o cenário global depois da pandemia do coronavírus: “Não é a crise do Covid-19 que levará a um outro mundo – mas a reação da sociedade à crise.”

O Triunfo da Morte, afresco, Palermo, Itália (artista desconhecido).

O Triunfo da Morte, afresco, Palermo, Itália (artista desconhecido). (Foto: Reprodução)

Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Entre a falta de responsabilização das elites e a total fragmentação da sociedade civil, o Covid-19, como um circuit breaker, está mostrando que o rei – o design sistêmico – está nu.

Estamos sendo sugados para dentro de uma dança macabra de múltiplos sistemas complexos “colidindo uns com os outros”, produzindo uma infinidade de ciclos de realimentação, na sua maioria negativos.
O que já sabemos com certeza, como Shoshana Zuboff demonstrou em detalhes em seu The Age of Surveillance Capitalism (A Era do Capitalismo de Vigilância), é que “o capitalismo industrial seguiu sua própria lógica de choque e terror” para conquistar a natureza. Mas agora o capitalismo de vigilância “está de olho na natureza humana”.
Em The Human Planet: How We Created the Anthropocene (O Planeta Humano: Como Criamos o Antropoceno), analisando o crescimento populacional explosivo, o aumento do consumo de energia e o tsunami de informações “movidos a ciclos de realimentação positivos de reinvestimento e lucro”, Simon Lewis e Mark Maslin, do University College de Londres, sugerem que nosso atual modo de vida é a “menos provável” entre diversas opções possíveis. “Um colapso ou uma troca para um novo modo de vida é mais provável”.
Com a distopia e a paranóia em massa parecendo ser a lei da (perplexa) terra, as análises de Michel Foucault sobre biopolítica nunca foram tão oportunas, agora que estados de todo o mundo assumem o biopoder – o controle sobre a vida e os corpos das pessoas.
David Harvey, mais uma vez, demonstra o quanto Marx foi profético, não apenas em suas análises do capitalismo industrial mas, também no Grundrisse: Fundações da Crítica da Economia Política – onde ele chegou a prever os mecanismos do capitalismo digital.

Marx, escreve Harvey, “fala de como as novas tecnologias e o novo saber se incorporam à máquina: eles deixam de residir no cérebro do trabalhador, e o trabalhador é empurrado para a margem, tornando-se um mero apêndice da máquina, um mero cuidador de máquinas. Toda a inteligência e todo o saber que antes pertenciam aos trabalhadores e conferiam a eles um certo monopólio de poder frente ao capital, agora desaparecem”.

Assim, Harvey acrescenta, “O capitalista, que antes precisava das habilidades do trabalhador, agora se livra dessa limitação, e a habilidade é incorporada à máquina. O conhecimento produzido pela ciência e pela tecnologia é canalizado para a máquina, e a máquina se torna a ‘alma’ do dinamismo capitalista.

Um efeito imediato – de ordem econômica –  da colisão  de sistemas complexos é a Nova Grande Depressão que se aproxima. Enquanto isso, muito poucos tentam entender em profundidade o Planeta Confinamento e, principalmente, o Pós-Planeta Confinamento. Entretanto, uns poucos conceitos já se destacam. Estado de exceção. Necropolítica. Um novo brutalismo. E, como veremos, um novo paradigma viral.

Vamos, portanto, recapitular o que disseram algumas das melhores e mais brilhantes cabeças da vanguarda do pensamento sobre o Covid-19. Um excelente mapa de viagem é a Sopa de Wuhan, uma coletânea independente publicada em língua espanhola, trazendo ensaios de, entre outros, Giorgio Agamben, Slavoj Zizek, Judith Butler, David Harvey, o sul-coreano Byung-Chul Han e o espanhol Paul Preciado.
Os dois últimos, juntamente com Agamben, foram mencionados em ensaios anteriores desta série sobre os estóicos, Heráclito, Confúcio, Buda e Lao-Tzu, e também sobre filosofia contemporânea, em A Cidade em Tempo de Peste.

Então, como propõe Berardi, um “vírus semiótico na psicosfera bloqueia o funcionamento abstrato da economia ao subtrair dela corpos”.  Apenas um vírus seria capaz de paralisar por completo a acumulação do capital: “O capitalismo é axiomático, ele opera com base em uma premissa não-verificada (a necessidade de crescimento ilimitado que torna possível a acumulação de capital).

Toda concatenação lógica e econômica é coerente com esse axioma, e nada pode ser testado fora desse axioma. Não há saída política que permita escapar do capitalismo axiomático, não há possibilidade de destruir o sistema”, porque até mesmo a linguagem é refém desse axioma e não admite a possibilidade de nada que seja “eficientemente extra-sistêmico”.

Então, o que sobra? “A única saída é a morte, como aprendemos com Baudrillard”. O falecido grande mestre  do simulacro já previa uma paralisação sistêmica nos pós-modernos anos 80.

O filósofo croata Srecko Horvat , por outro lado, traz uma hipótese menos conceitual e mais realista sobre o futuro imediato: “O medo da pandemia é mais perigoso que o próprio vírus. As imagens apocalípticas da mídia de massa escondem um nexo profundo entre a extrema-direita e a economia capitalista. Tal como um vírus que precisa de células vivas para se reproduzir, o capitalismo irá se adaptar à biopolítica do século XXI.

Para o químico e filósofo catalão Santiago Lopez Petit, o coronavírus pode ser visto como uma declaração de guerra: “O neoliberalismo, desavergonhadamente, se fantasia de estado de guerra. O capital está apavorado”, mesmo que “a incerteza e a insegurança invalidem a necessidade de um tal estado”. No entanto, pode haver possibilidades criativas quando  a vida obscura e paroxística, incalculável em sua ambivalência, escapa do algoritmo”.

Nossa exceção normalizada 

Giorgio Agamben provocou imensa controvérsia na Itália e por toda a Europa quando, em fins de fevereiro, publicou uma coluna sobre a “invenção de uma epidemia”. Ele, mais tarde, teve que explicar o que queria dizer. Mas seu principal insight permanece válido: o estado de exceção foi completamente normalizado.
E fica ainda pior. “Um novo despotismo que, em termos dos controles onipresentes e da cessação de toda e qualquer atividade política, será pior que os totalitarismos que conhecemos até agora”.

Agamben insiste em suas análises da ciência como sendo a religião de nosso tempo: “A analogia com a religião é tomada literalmente; os teólogos declararam não serem capazes de definir o que Deus é, mas em Seu nome ditaram regras de conduta aos homens e não hesitaram em queimar heréticos. Os virologistas admitem não saber exatamente o que um vírus é, mas em seu nome fingem decidir como os seres humanos irão viver”.

O filósofo e historiador camaronense Achille Mbembe, autor de dois livros indispensáveis, Necropolítica e Brutalismo, identificou o paradoxo de nosso tempo: “O abismo entre a crescente globalização dos problemas da existência humana e o recuo dos países para dentro de suas velhas e antiquadas fronteiras”.

Mbembe investiga o fim de um certo mundo, “dominado por gigantescos dispositivos de cálculo”, um mundo móvel no sentido mais polimórfico, viral e quase cinematográfico”, referindo-se à ubiquidade das telas (novamente o Baudrillard da década de 80) e à lexicografia, “que revela não apenas uma mudança de linguagem mas o fim do mundo”.

Aqui temos Mbembe dialogando com Berardi – mas Mbembe leva a questão muito mais longe: “Esse fim de mundo, esse triunfo definitivo do gesto e dos órgãos artificiais sobre a palavra, o fato de que a história da palavra chega ao fim frente a nossos olhos, esse para mim é o desenvolvimento histórico por excelência, o que o Covid-19 revela.

As consequências políticas são inevitavelmente terríveis: “Parte da política de poder das grandes nações não residiria no sonho de uma organização automatizada do mundo graças à fabricação de um Novo Homem que seria o produto de montagem fisiológica, montagem sintética e eletrônica e montagem biológica? Chamemos a isso de tecno-libertarianismo”.

Isso não é exclusivo do Ocidente: “A China está no mesmo caminho, vertiginosamente”.

Esse novo paradigma de uma pletora de sistemas automatizados e decisões algorítmicas “onde a história e a palavra não existem mais, choca-se frontalmente com a realidade de corpos de carne e osso, micróbios, bactérias e líquidos de todos os tipos, o sangue inclusive”.

O Ocidente, afirma Mbembe, há muito optou por “imprimir um curso dionisíaco a sua história, levando consigo o resto do mundo, mesmo que este não entenda. O Ocidente não conhece mais a diferença entre começo e fim. A China está no mesmo caminho. O mundo foi mergulhado em um vasto processo de dilaceramento, onde ninguém é capaz de prever as consequências”.

Mbembe aterroriza-se com a proliferação de “manifestações vivas da parte viral e bestial da humanidade, incluindo racismo e tribalismo.

Isso, acrescenta ele, corresponde ao nosso novo paradigma viral.

Sua análise certamente se encaixa com a de Agamben: “Tenho a impressão de que o brutalismo vai se intensificar sob o ímpeto tecno-libertarianista, seja na China ou sob as roupagens da democracia liberal. Da mesma forma que o 11 de setembro abriu caminho para um estado de exceção generalizado e para sua normalização, a luta contra o Covid-19 será usada como pretexto para aproximar ainda mais a política do domínio da segurança”.

“Mas desta vez”, acrescenta Mbembe, “será uma segurança quase biológica, comportando novas formas de segregação entre os “corpos imunes” e os “corpos virais”.  O viralismo se transformará no novo palco para o fracionamento das populações, agora identificadas como espécies distintas”.

Parece mesmo um neo-medievalismo, uma reencenação digital do fabuloso afresco O Triunfo da Morte, em Palermo.

Poetas, não políticos 

É útil contrastar toda essa ruína sombria com a perspectiva de um geógrafo. Christian Grataloup, um excelente geo-historiador, insiste em um destino comum para a humanidade (aqui ele ecoa Xi Jinping e o conceito chinês de “comunidade de destinos compartilhados”: “Há um sentimento de identidade sem precedentes. O mundo não é simplesmente um sistema espacial econômico e demográfico, ele se transforma em um território. Desde as Grandes Descobertas tudo o que era global vinha encolhendo, resolvendo uma série de contradições. Agora, temos que aprender a reconstruí-lo, dar-lhe mais consistência, uma vez que corremos o risco de deixá-lo apodrecer com as tensões internacionais”.

Não é a crise do Covid-19 que levará a um outro mundo – mas a reação da sociedade à crise. Não haverá uma noite mágica, com shows dos pop stars da “comunidade internacional”, quando a vitória será anunciada ao antigo Planeta Confinamento.

O que é realmente importante é o longo e árduo combate político que nos levará ao próximo nível. Os conservadores extremos e os tecno-libertarianistas já tomaram a iniciativa – da recusa à tributação sobre grandes fortunas para socorrer as vítimas da Nova Grande Depressão até a obsessão com a dívida, que impede novos e necessários gastos públicos.

Nesse quadro, proponho ir além da biopolítica de Foucault. Gilles Deleuze pode ser o conceituador de uma nova e radical liberdade. Aqui temos uma deliciosa série britânica que pode ser curtida como se fosse um enfoque sério à la Monty Python a Deleuze.

Foucault foi insuperável na descrição de como o significado  e os quadros de verdades sociais mudam ao longo do tempo, constituindo em novas realidades condicionadas por poder e conhecimento.

Deleuze, por outro lado, concentrou-se em como as coisas mudam. Movimento. Nada é estável. Nada é eterno. Ele conceituou o fluxo – de forma muito heracliteana.

As novas espécies (até mesmo o novo Ubermensch criado pela Inteligência Artificial) evoluem em relação a seu ambiente. É usando Deleuze que podemos investigar como os espaços entre as coisas criam possibilidades para O Choque do Novo.

Mais que nunca, sabemos agora que tudo é conectado (obrigado, Spinoza). O mundo (digital) é complicado, interconectado e misterioso a ponto de abrir um número infinito de possibilidades.

Já nos anos 1970, Deleuze dizia que o novo mapa – a potencialidade inata da novidade – deveria ser chamado de “o virtual”. Quanto mais a matéria viva se complexifica, mais ela transforma esse virtual em ação espontânea e movimentos imprevistos.

Deleuze colocou um dilema que agora nos confronta em termos ainda mais radicais. A escolha entre “o poeta, que fala em nome do poder criativo, capaz de subverter todas as ordens e representações para afirmar a diferença no estado de revolução permanente que caracteriza o eterno retorno; e o político, que se preocupa, acima de tudo, em negar aquilo que ‘difere’, a fim de conservar ou prolongar a ordem histórica estabelecida, ou de estabelecer uma ordem histórica que já faz surgir no mundo as formas de sua representação”.

Os tempos nos chamam a agir como poetas, e não como políticos.

A metodologia talvez possa ser a exposta por Deleuze e Guattari no seu formidável  Mil Platôs – que traz o significativo subtítulo de Capitalismo e Esquizofrenia, onde o movimento é não-linear. Estamos falando de filosofia, psicologia, política, conectadas por ideias que correm em diferentes velocidades, em um incessante movimento contínuo que mistura linhas de articulação, em diferentes estratos, dirigidas a linhas de voo, movimento de desterritorialização.

O conceito de “linhas de voo” é essencial para essa nova paisagem virtual, porque o virtual é formado por linhas de voo entre diferenças, em um processo contínuo de mudança e liberdade.

Todo esse frenesi, contudo, tem que ter raízes – como nas raízes de uma árvore (a do conhecimento). E isso nos leva à metáfora central de Deleuze, o rizoma, que é não apenas uma raiz, mas uma massa de raízes brotando em novas direções.

Deleuze mostrou como o rizoma conecta assembleias de códigos linguísticos, relações de poder, as artes – e, o mais importante, a biologia. O hyperlink é um rizoma, que antes representava um símbolo da deliciosa falta de ordem da Internet, até ser aviltado, quando o Google começou a impor seus algoritmos. Os links, por definição, deveriam sempre nos levar a destinações inesperadas.

Os rizomas são as antíteses dos traços-padrão da “democracia” liberal ocidental – o parlamento e o senado. As trilhas, ao contrário, são rizomas – como na trilha Ho Chi Minh. Não há plano ordenador. Múltiplas entradas e múltiplas possibilidades. Sem começo nem fim. Como Deleuze o descreveu, “O rizoma opera por variação, expansão, conquista, captura, ramificações”.

Isso pode servir de projeto para uma nova forma de participação política que se seguiria à queda do design sistêmico. Esse projeto incorpora uma metodologia, uma ideologia, uma epistemologia, sendo também uma metáfora. O rizoma é inerentemente progressivo, enquanto as tradições são estáticas. Como metáfora, o rizoma pode substituir nossa concepção de história como linear e singular, oferecendo diferentes histórias que se movem em diferentes velocidades. A TINA, ou “não há alternativa“ (There Is No Alternative) está morta: há alternativas múltiplas.

E isso nos traz de volta a David Harvey inspirado em Marx. Para embarcar em um novo caminho emancipador, temos que antes nos emancipar a nós mesmos e ver que um novo imaginário é possível, paralelamente a uma nova realidade de sistemas complexos.

Então, vamos relaxar – e desterritorializar. Se aprendermos a fazer isso, o advento do Novo Tecno-Homem vivendo em servidão voluntária e controlado remotamente por um estado de segurança todo-poderoso que tudo vê deixará de ser fatal.

Deleuze: um grande escritor é sempre como que um estrangeiro na língua por meio da qual ele se expressa, mesmo que ela seja sua língua materna. Ele não mistura uma outra língua com a sua própria língua. Ele constrói uma língua estrangeira não pré-existente dentro de sua própria língua. “Ele faz a própria língua gritar, gaguejar, murmurar. Um pensamento deveria brotar rizomaticamente – em muitas direções.

Estou resfriado. O vírus é um rizoma.

Lembra-se de quando Trump disse que este era um “vírus estrangeiro”?

Todos os vírus são estrangeiros – por definição.

Mas Trump, é claro, nunca leu o Almoço Nu do Grande Mestre William Burroughs.

Burroughs:  A palavra é um vírus”.

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247


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