Pepe Escobar: A máscara da “democracia liberal” cai com um estrondo

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“Não é de admirar que o Império do Caos – e das Mentiras – posando de ‘democracia liberal’ e ao mesmo tempo possibilitando o projeto assassino sionista, esteja flertando seriamente com a lata de lixo da História”, escreve o jornalista Pepe Escobar


Torre de al-Jalaa, Gaza

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

Nakba, 15 de maio, 2021. Os historiadores do futuro irão assinalar o dia em que a “democracia liberal” do Ocidente fez uma proclamação explícita: nós bombardeamos sedes de veículos de mídia e destruímos a “liberdade de imprensa” em um campo de concentração a céu aberto e, ao mesmo tempo, proibimos manifestações pacíficas sob estado de sítio no coração da Europa.

Gaza se encontra com Paris. O bombardeio da torre de al-Jalaa – um edifício preponderantemente residencial, que também abrigava os escritórios da al-Jazeera e da AP, entre outras – pela “única democracia do Oriente Médio”, está diretamente conectado à ordem verboten executada pelo Ministério do Interior de Macron.

Para todos os fins práticos, Paris endossou as provocações da potência ocupadora em Jerusalém Oriental; a invasão da mesquita al-Aqsa com gás lacrimogêneo e granadas atordoantes; gangues de sionistas racistas bradando insultos de “morte aos árabes”; colonos armados agredindo famílias palestinas ameaçadas de serem expulsas de suas casas em Sheikh Jarrah e Silwan; uma campanha de bombardeios de saturação onde 30% das vítimas fatais – em média – são crianças.

A máscara da “democracia liberal” caía vez após outra, com a Big Tech imperial cancelando em massa, como lhes era ordenado, as vozes dos palestinos e dos defensores dos palestinos, em sincronia com um kabuki diplomático que só engana os que já sofreram morte cerebral.Em 16 de maio, o Chanceler chinês Wang Yi presidiu um debate online do Conselho de Segurança das Nações Unidas (UNSC), que vinha sendo incessantemente protelado por Washington já há uma semana. A China ocupa a presidência do UNSC por todo o mês de maio.

O Conselho de Segurança da ONU não conseguiu chegar a um acordo sequer quanto a uma simples declaração conjunta. Mais uma vez, o Conselho foi bloqueado – e covardemente – pelo Império do Caos.

Coube a Hua Liming, ex-embaixador da China no Irã, dissecar a situação em uma única frase:

“Os Estados Unidos não querem dar à China o crédito de ter mediado o conflito Israel-Palestina, principalmente no momento em que a China preside o Conselho de Segurança da ONU”.

O procedimento imperial de costume é “conversar”: aquela conversa mafiosa de “faça uma oferta impossível de recusar” a ambos os lados, por baixo da mesa – como o combo por trás do Boneco de Teste de Colisão, um sionista confesso, já havia admitido em um pavoroso tuíte da Casa Branca “reafirmando” seu “forte apoio ao direito de Israel de se defender”.

Liming, corretamente, enfatizou que “essa é a principal razão pela qual qualquer solução ou qualquer cessar-fogo entre Israel e Gaza ou outras forças da região seria temporário”.

Todo o Sul Global é permanentemente bombardeado pela retórica imperial dos “direitos humanos” – desde o escroque condenado na justiça Navalny até relatos falsos sobre Xinjiang. Mas quando há uma real catástrofe de direitos humanos, desencadeada pelo bombardeio de saturação perpetrado pelos colonos invasores aliados do império, “a hipocrisia e os padrões duplos dos Estados Unidos ficam novamente expostos”, como observa Liming.

Um único telefonema pode por fim a tudo isso.

Amos Yadlin já chefiou a Diretoria de Inteligência Militar das Forças de Defesa de Israel, tendo sido também adido militar de Israel nos Estados Unidos.

Em um encontro com sionistas sul-africanos, ele admitiu o óbvio: a carnificina sionista contra Gaza pode perfeitamente ser interrompida pelo Boneco de Teste de Colisão – que por acaso é, adivinhem o quê, um fantoche de Israel.

Yadlin afirma que o governo do Boneco de Teste de Colisão, mais que o combo que age por trás dele, estava ficando “impaciente”, e que ele “não se surpreenderia se tudo terminasse em 48 horas”. E, mais uma vez, ele teve que ressaltar o óbvio: “Quando os egípcios pedem a Israel para parar, Israel não aceita parar. Mas se os americanos pedirem a Israel para parar, Israel terá que ouvir”.

O Império pratica sua marca registrada de linguagem ambígua quando se refere à “comunidade internacional” – que, em tese, se reúne nas Nações Unidas. O concomitante fogo cerrado de propaganda 24/7 aplica-se apenas a seus vários parceiros no crime, minions, lacaios, poodles e vassalos, ignorando imperialmente e/ou mijando na cabeça de 80% do planeta. Frente à realidade do Afeganistão, do Iraque, da Líbia, da Síria, do Iêmen, da Ucrânia e outros, a “ordem internacional baseada em regras” não se qualifica sequer como uma piada para retardados.

Então, da próxima vez que você vir um espécime sub-zoológico usando o argumento de Estupidez Máxima “Israel tem o direito de se defender”, a única resposta possível é disparar fatos como mísseis.

Todos os seres sencientes dotados de consciência sabem que a Palestina enfrenta um projeto de colonialismo invasor racista que exibe forças armadas até os dentes e diversas bombas nucleares, e que se especializa na prática do terrorismo de estado.

Gaza, entretanto, é um caso horripilantemente especial. População: quase 2 milhões de pessoas. Uma das regiões mais populosas do planeta. Um verdadeiro campo de concentração a céu aberto, onde nada menos que 50% da população são crianças, uma em cada dez delas com déficit de crescimento, em grande medida devido à escassez de alimentos causada pelo bloqueio israelense. O plano oficial das forças armadas israelenses é permitir a entrada apenas de alimentos minimamente suficientes para que a população sobreviva no limite. A metade da população depende de ajuda alimentar.

Nada menos que 70% das famílias são refugiadas expulsas por operações de limpeza étnica daquilo que é agora o sul de Israel: há cerca de 1,46 milhão de refugiados em uma população de 1,9 milhão.

Gaza tem oito campos de refugiados – alguns deles sofrendo bombardeios neste exato momento. Nunca esqueçamos que Israel governou Gaza de forma direta entre 1967 e 2005, e fez menos que zero para melhorar as horríveis condições em que vive a população.

Há apenas 22 centros de saúde, 16 agências de assistência social e 11 centros de distribuição de alimentos, atendendo a cerca de um milhão de pessoas. Não há aeroporto nem porto, ambos destruídos por Israel. A taxa de desemprego é de 50% – a mais alta do planeta. Apenas 5% da população têm acesso a água limpa.

Mas então há a Resistência. Elijah Magnier mostrou que ela já conseguiu furar a aura pré-fabricada de invulnerabilidade e “prestígio” ostentada por Israel – e que só há um caminho a tomar, uma vez que a velocidade, a precisão, o alcance e a potência dos foguetes e mísseis só tende a aumentar.

Em paralelo, em uma sábia jogada estratégica, o Hamas e o Jihad Islâmico deixaram muito claro que preferem que o Hezbollah não se envolva diretamente – por enquanto – para que todo o Sul Global permaneça focado na carnificina perpetrada contra Gaza.

“Uma paisagem de ferro e desolação”.

Sociologie de Jerusalém, de autoria de Sylvaine Bulle, é um livro curto mas bastante esclarecedor, que mostra que a batalha por Jerusalém Oriental é tão imperativa para o futuro da Palestina quanto a tragédia de Gaza.

Bulle concentra-se no “racismo interno” de Israel, diretamente ligado à hegemonia das “elites”sionistas de extrema-direita. Uma consequência importante foi a “periferiferização” e a marginalização  de Jerusalém Oriental, jogada em uma situação de “dependência forçada” da Jerusalém Ocidental ocidentalizada.

Bulle mostra que Jerusalém Oriental só existe como “uma paisagem de ferro e desolação” com a justaposição de zonas ultradensas e outras totalmente abandonadas. Os palestinos que vivem nessas áreas não são reconhecidos nem respeitados como cidadãos.

Tudo piorou muito depois de 2004 e da construção do Muro – que impossibilitava a mobilidade cotidiana dos palestinos que viviam nos territórios ocupados e dos palestinos de Jerusalém. Ocorreu aí uma outra fratura que isolou partes da Jerusalém Oriental do lado oposto do muro, e um grande número de pessoas agora vive em uma verdadeira terra de ninguém. No Ocidente “democrático liberal” são muito poucos os que fazem ideia de como isso é na prática.

Os palestinos de Jerusalém Oriental não têm nacionalidade israelense. A maioria tem passaportes jordanianos. Mas agora, até mesmo os palestinos de nacionalidade israelense vêm-se rebelando – na maioria dos casos em cidades muito pobres da zona central do país. As gerações mais jovens não têm a menor razão para acreditar que elas pertençam a Israel.

Quanto aos israelenses seculares esquerdistas, eles foram “neutralizados” não tendo mais qualquer peso político, por não terem conseguido incorporar as massas trabalhadoras, que por sua vez foram totalmente capturadas pelos religiosos extremistas de linha-dura.

A conclusão de Bulle, expressa com um excesso de diplomacia (estamos na França, afinal) é inevitável: o estado de Israel é cada vez mais judeu e cada vez menos democrático, um regime sionista de fato. Ela crê que talvez seja possível reconstruir o elo entre identidade nacional judaica e democracia, incluindo os direitos das minorias palestinas.

Sinto muito, mas isso não vai acontecer, como demonstrado explicitamente pela atual tragédia, que começou em Jerusalém Oriental.

A Via Dolorosa continua – e nós todos assistimos horrorizados. Imaginem os níveis galácticos de histeria ocidental caso a Rússia e a China estivessem bombardeando, disparando granadas e mísseis e matando crianças em áreas residenciais. Não é de admirar que o Império do Caos – e das Mentiras – posando de “democracia liberal” e ao mesmo tempo possibilitando o projeto assassino sionista, esteja flertando seriamente com a lata de lixo da História.

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga

 

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