Pepe Escobar: A geopolítica de Soleimani, um ano depois 

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4/1/2021, Pepe Escobar, Asia Times

Há um ano, Os furiosos Anos 20s começaram com um assassinato (e em entrevista imperdível, Pepe Escobar, em português).

O assassinato do general-major Qassem Soleimani, comandante da Força Quds do Corpo de Guardas Islâmicos Revolucionários (ing. Islamic Revolutionary Guards Corps, IRGC), e de Abu Mahdi al-Muhandis, vice-comandante da milícia Hashd al-Sha’abi do Iraque, por mísseis Hellfire guiados a laser disparados de dois drones Reaper MQ-9, foi ato de guerra.

O ataque dos drones no aeroporto de Bagdá, diretamente ordenado pelo presidente Trump, não foi só ataque unilateral, sem provocação e ilegal: foi também urdido para gerar reação iraniana que, então, receberia ‘resposta’ de “autodefesa” dos norte-americanos, embalada como “contenção”. Pode-se chamar de forma perversa de falsa bandeira reversa inflada.

O “Poderoso Wurlitzer” fez ressoar a coisa como “assassinato seletivo”, operação preventiva para pôr fim a supostos planos que Soleimani teria, para “ataques iminentes” contra diplomatas e soldados norte-americanos.

Mentira. Jamais se encontrou qualquer prova disso. E então, o primeiro-ministro do Iraque, Adil Abdul-Mahdi, diante do Parlamento de seu país, apresentou o contexto real: Soleimani estava em missão diplomática, viajando em avião de carreira entre Damasco e Bagdá, envolvido em complexas negociações entre Teerã e Riad, com o primeiro-ministro iraquiano como mediador, a pedido do presidente Trump.

Assim se soube que a máquina imperial – zombando da lei internacional – assassinara um enviado diplomático de facto.

As três principais facções que forçaram o assassinato de Soleimani foram neoconservadores norte-americanos – supremamente ignorantes da história, da cultura e da política do sudoeste da Ásia – e os dois lobbies israelense e saudita, que ardentemente creem que seus interesses estariam sendo promovidos cada vez que o Irã é atacado. Trump não conseguiria ver O Grande Quadro em todas consequências desastrosas: só vê o que seu principal doador militante de “Israel em primeiro lugar” Sheldon Adelson mande-o ver e o que o genro, Jared “das Arábias” Kushner, sopre no ouvido de Trump, por ordem de Muhammad bin Salman (MbS) seu parceiro chegado.

A armadura do “prestígio” americano

A resposta contida do Irã ao assassinato de Soleimani foi cuidadosamente calibrada para não disparar a ‘contenção’ vingativa do império: ataques com mísseis de precisão, à base aérea Ain al-Assad no Iraque, controlada pelos EUA. O Pentágono foi alertado sobre o ataque.

Como se poderia prever, a aproximação da data do primeiro aniversário do assassinato de Soleimani fatalmente degeneraria em ataques entre EUA e Irã, novamente à beira da guerra.

É portanto esclarecedor examinar o que o comandante da Divisão Aeroespacial do Corpo de Guardas Islâmicos Revolucionários (IRGC), general-brigadeiro Amir-Ali Hajizadeh, disse à rede libanesa Al Manar:

“EUA e o regime sionista [Israel] não trouxeram segurança a parte alguma e, se algo acontecer aqui (na região), e houver guerra, não consideraremos qualquer diferença entre bases dos EUA e os países que as hospedam.”

Hajizadeh, falando também dos ataques com mísseis de precisão há um ano, acrescentou:

“Estamos preparados para a resposta dos norte-americanos. Toda nossa capacidade de mísseis está em alerta máximo. Se responderem, atacaremos todas as bases dos EUA, da Jordânia ao Iraque e no Golfo Persa e até navios de guerra norte-americanos no Oceano Índico.”

O ataque com mísseis de precisão à base Ain al-Assad, há um ano, foi ataque de nível médio, enfraquecido pelas sanções e em plena terrível crise econômica/financeira, em resposta a um ataque, e tomando por alvos patrimônio imperial e partes do Império de Bases. Foi evento de que não se ouvia falar desde o final da 2ª Guerra Mundial. Foi movimento claramente interpretado em vastas porções do Sul Global como penetração fatal, depois de décadas de efetiva blindagem, na armadura hegemônica do “prestígio” norte-americano.

Assim sendo, Teerã não se impressionou muito com os dois B-52s que podem transportar bombas atômicas, que recentemente sobrevoaram o Golfo Persa; nem com a chegada ao Golfo Persa, semana passada, do USS Georgia, submarino movido a energia nuclear e armado com mísseis.

Esses deslocamentos foram divulgados como resposta à alegação, sem qualquer prova, de que Teerã estaria por trás de um ataque de 21 foguetes contra a sempre crescente embaixada na Zona Verde de Bagdá.

Os foguetes (que não explodiram), calibre 107 mm – e, por falar deles, identificados em inglês, não em farsi – podem ser comprados em qualquer suk do submundo em Bagdá, por praticamente qualquer pessoa, como vi eu mesmo no Iraque, desde meados dos anos 2000s.

Claro que isso não se qualifica como casus belli – ou “autodefesa” misturada com “contenção”. A justificativa do Centcom soa, isso sim, como sketch de Monty Python: ataque “…quase com certeza conduzido por grupo criminoso de milicianos apoiados pelo Irã.” Note-se que “quase com certeza” é expressão em código para “não temos nem ideia de quem fez aquilo”.

Como fazer a – verdadeira – guerra ao terror

O ministro de Relações Exteriores do Irã Javad Zarif deu-se o trabalho (veja o tuíto traduzido adiante) de alertar Trump de que estava sendo envolvido num casus belli forjado – e que o revide seria inevitável. É caso de diplomacia iraniana perfeitamente alinhada com o Corpo de Guardas Islâmicos Revolucionários: afinal de contas, toda a estratégia pós-Soleimani nos vem diretamente do Aiatolá Khamenei.

 

Javad Zarif @JZarif
Nova inteligência vinda do Iraque indica que agentes provocadores israelenses planejam ataques contra norte-americanos – empurrando Trump, que está de saída, para um casus belli forjado.

Cuidado com uma armadilha, @realDonaldTrump. Fogos de artifícios sairão duramente pela culatra contra seus mesmos Amigos Para Sempre.
03 pm  2/1/2021  Twitter Web App  [aqui traduzido]

Isso leva outra vez a Hajizadeh do IRGC, quando estabelece a linha vermelha iraniana, em termos da defesa da República Islâmica: “Não negociaremos com seja quem for o poder dos mísseis” – contendo qualquer movimento, para incorporar redução dos mísseis, até um possível retorno de Washington ao ‘acordo nuclear’ [JCPOA]. Hajizadeh também enfatizou que Teerã limitou a 2.000 km o alcance de seus mísseis.

Meu amigo Elijah Magnier, considerado o principal correspondente de guerra no Sudoeste Asiático já há quatro décadas, detalhou atentamente [tradução automática ao português, aqui] a importância de Soleimani.

Todos concordam, não só ao longo do Eixo da Resistência – Teerã, Bagdá, Damasco, Hezbollah – mas também em vastas áreas do Sul Global há firme consciência de como Soleimani comandou a luta contra ISIS/Daech no Iraque, de 2014 a 2015, e como foi fundamental na retomada de Tikrit em 2015.

Zeinab Soleimani, a impressionante filha do general, apresentou o homem e os sentimentos que inspirou (em árabe, com intérprete ao espanhol. A partir da segunda resposta, no mesmo vídeo, Zeinab fala em excelente inglês, com intérprete ao espanhol. Defende Assange, ao defender o pai. Emocionante. NTs].

E o secretário-geral do Hezbollah, Sayed Nasrallah, em entrevista extraordinária, destacou a “grande humildade” de Soleimani, “também com o povo comum, o povo simples”.

Nasrallah conta uma história essencial para localizar o modus operandi de Soleimani na guerra ao terror real – não fictícia –, e merece ser citada na íntegra: 

“Naquela vez, Hajj Qassem viajou do aeroporto de Bagdá ao aeroporto de Damasco, de onde veio diretamente a Beirute, aos subúrbios do sul da cidade. Chegou à meia-noite aonde eu estava. Lembro perfeitamente o que me disse: “Até o raiar do dia, você tem de me dar 120 comandantes de operação (do Hezbollah).”

Repliquei que “mas Hajj, é meia noite! Como posso dar-lhe 120 comandantes?!” Disse-me que não havia outro meio, se queríamos combater efetivamente contra o ISIS, defender o povo iraquiano, nossos locais sagrados [cinco dos 12 imãs do xiismo têm mausoléu no Iraque], nossos Hawzas [seminários islâmicos], e tudo que há no Iraque. Não tínhamos escolha. “Não preciso de combatentes. Preciso de comandantes de operações [para supervisionar as Unidades Iraquianas de Mobilização Popular (ing. Iraqi Popular Mobilization Units, PMU).”

Por isso, em meu discurso [sobre o assassinato de Soleimani], disse que durante 22 anos aproximadamente de nosso relacionamento com Hajj Qassem Soleimani, ele jamais nos pediu coisa alguma. Nunca nos pediu nada, nem, que fosse, para o Irã. Mas sim, uma vez, nos pediu. E foi para o Iraque, quando nos pediu aqueles 120 comandantes de operações. Naquela noite ficou comigo, e começamos a fazer contacto com nossos irmãos (no Hezbollah), um a um.

Conseguimos reunir quase 60 comandantes de operações, incluindo irmãos que estavam nas linhas de frente na Síria, e que mandamos para o aeroporto de Damasco [para esperar por Soleimani], e outros que estavam no Líbano e que acordamos no meio da noite e tiramos [imediatamente] de casa, porque o Hajj disse que queria que viajassem com ele no avião que o levaria de volta a Damasco, depois da oração da manhã.

E assim foi. Depois de fazerem juntos as orações da manhã, voaram para Damasco com ele, e Hajj Qassem viajou de Damasco a Bagdá com 50, 60 comandantes do Hezbollah libanês, com os quais ele partiu para as linhas de frente no Iraque. Disse que não precisava de combatentes porque, graças a Deus, havia muitos voluntários no Iraque.

Mas precisava de comandantes experimentados em combate para comandar aqueles combatentes, treiná-los, passar-lhe sua experiência e expertise, etc. E não saiu enquanto não lhe prometi que, em dois ou três dias, enviaria os outros 60 comandantes de que ele precisava.”

Orientalismo, tudo outra vez

Um ex-comandante que serviu sob ordens de Soleimani e que encontrei no Irã em 2018 prometeu-nos, a mim e ao meu colega Sebastiano Caputo que tentaria conseguir uma entrevista com o general-major – que nunca falou com veículos estrangeiros. Não tínhamos por que duvidar de nosso interlocutor – e até o último momento que permanecemos em Bagdá, estivemos nessa seleta lista de espera.

Quanto a Abu Mahdi al-Muhandis, assassinado ao lado de Soleimani no ataque de drone, em Bagdá, fiz parte de um pequeno grupo que passou uma tarde com ele numa casa segura dentro – não for a – da Zona Verde de Bagdá em novembro de 2017. Minha coluna, sobre esse encontro está aqui (ing. e traduzida).

O Prof. Mohammad Marandi da Universidade de Teerã, refletindo sobre o assassinado, contou-me que

“a coisa mais importante é que a visão ocidental sobre a situação é muito orientalista. Assumem que o Irã não teria estruturas reais e que tudo dependeria de indivíduos. No Ocidente, um assassinato não destrói um governo, uma empresa ou organização. O Aiatolá Khomeini morreu, e o Ocidente disse que a revolução estaria acabada. Mas o processo constitucional produziu novo líder em questão de horas. O resto é história.”

Isso ajuda muito a explicar a geopolítica de Soleimani. Pode ser um superstar revolucionário – muitos, no Sul Global o veem como o Che Guevara do Sudoeste da Ásia, – mas foi, sobretudo, uma engrenagem bem articulada, em máquina muito bem articulada.

O presidente adjunto do Parlamento Iraniano, Hossein Amirabdollahian, disse à rede Shabake Khabar do Irã, que Soleimani, dois anos antes do assassinato, já previra uma “normalização” inevitável entre Israel e as monarquias do Golfo Persa.

Ao mesmo tempo estava também muito consciente da posição da Liga Árabe em 2002 – partilhada, dentre outros, por Iraque, Síria e Líbano: nenhuma “normalização” pode sequer começar a ser discutida, sem um estado palestino independente – e viável – nas fronteiras de 1967 e com capital em Jerusalém.

Hoje, todos sabem que esse sonho está morto, se não também bem enterrado. Resta a mesma repetição terrível: norte-americanos assassinam Soleimani; israelenses assassinam o principal cientista do Irã, Mohsen Fakhrizadeh; a guerra incansável, de relativamente baixa intensidade, de Israel contra o Irã, totalmente apoiada pelo Departamento de Estado dos EUA; a ocupação ilegal, por Washington, de partes do nordeste da Síria, para roubar um pouco de petróleo, motivo perpétuo para mudança de regime em Damasco; demonização non-stop do Hezbollah.

Para além do Hellfire

Teerã deixou bem claro que uma volta a, pelo menos, algum respeito mútuo entre EUA e Irã envolve Washington voltar a se integrar ao ‘acordo nuclear’ (JCPOA) sem precondições; e o fim das sanções ilegais e unilaterais inventadas pelo governo Trump. Esses parâmetros não são negociáveis.

Nasrallah, por sua vez, em discurso em Beirute, no domingo, destacou:

“um dos principais efeitos do assassinato do general Soleimani e de al-Muhandis é o grito que se levanta a favor de se expulsarem da região as forças dos EUA. Não se ouvia esse grito antes do assassinato. O martírio dos líderes da Resistência pôs as tropas dos EUA na estrada para deixar o Iraque.”

Pode haver aí algo de pensamento desejante, porque o complexo de segurança-militar-industrial jamais abandonará, sem ser expulso, esse ponto central do Império das Bases.

Mais importante é o fato de que o ambiente pós-Soleimani transcende Soleimani.

O Eixo da Resistência – Teerã-Bagdá-Damasco-Hezbollah –, longe de colapsar, continuará a receber reforços.

Internamente, e ainda sob sanções de “máxima pressão”, Irã e Rússia estarão cooperando para produzir vacinas contra a Covid-19, e o Instituto Pasteur do Irã estará coproduzindo uma vacina, com uma empresa cubana.

O Irã vai-se firmando sempre mais como nodo chave das Novas Rotas da Seda no sudoeste da Ásia: a parceria estratégica Irã-China é constantemente revitalizada pelos ministros de Relações Exteriores, Zarif e Wang Yi, e isso inclui Pequim turbinar seus investimentos geoeconômicos em Pars Sul – o maior campo de gás do planeta.

Irã, Rússia e China estarão envolvidas na reconstrução da Síria – o que também incluirá, eventualmente, um novo ramo de Nova Rota da Seda: a ferrovia Irã-Iraque-Síria-Mediterrâneo Oriental.

Tudo isso forma um processo interligado, em andamento, que nenhum míssil Hellfire conseguirá queimar.

Traduzido por Vila Mandinga

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