Pepe Escobar: A barbárie começa em casa

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É bem esclarecedor examinar de que forma a pretensão civilizacional vem se desenrolando no Sudoeste Asiático – aquilo que a perspectiva orientalista define como o Oriente Médio

Protesto de sírios em defesa de Bashar Al Assad

Protesto de sírios em defesa de Bashar Al Assad (Foto: Reuters)

Por Pepe Escobar, para o Asia Times

A Grécia inventou o conceito de barbaros. A Roma Imperial o herdou na forma de barbarus.
O significado de barbaros tem sua origem na linguagem: é uma onomatopeia para “fala ininteligível”, como a de gente cuja fala soa como “bar bar bar”.

Homero não se refere a barbaros, mas sim a barbarophonos (“de fala ininteligível”), como aqueles que não falam grego, ou falam muito mal. O poeta cômico Aristófanes sugeriu que Górgias seria um bárbaro, porque falava um forte dialeto siciliano.

Barbaru significava “estrangeiro” em babilônio-sumério. Os que estudaram latim na escola lembrarão de balbutio (“gaguejar”, “balbuciar”, “falar bobagens”).

Portanto, era a língua que definia o bárbaro em relação ao grego. Tucídides era de opinião que Homero não teria usado a palavra “bárbaros” porque, em seu tempo, os gregos não haviam ainda se distinguido dos demais povos, de modo a ter um único nome comum para expressar esse contraste. Mas o cerne da questão é evidente: o bárbaro era definido em oposição ao grego.

Os gregos inventaram o conceito de bárbaro após as invasões persas de Dario I e Xerxes I, em 490 e 480-79 A.C. Afinal, eles tinham que se distinguir  claramente dos não-gregos. Ésquilo levou ao palco sua peça Os Persas em 472 A.C. Esse foi o ponto de virada: depois de então, bárbaros eram todos que não fossem gregos – persas, fenícios, frígios, trácios.

Agravando ainda mais esse cisma, todos esses bárbaros eram monarquistas. Atenas, uma democracia jovem, via isso como equivalente à escravidão. Atenas exaltava a “liberdade” – que, idealmente, desenvolvia a razão, o autocontrole, a coragem, a generosidade. Ao contrário dos bárbaros – e dos escravos – que eram infantis, efeminados, irracionais, indisciplinados, cruéis, covardes, egoístas, gananciosos, lascivos e pusilânimes.

De tudo o que foi dito acima, duas conclusões são inevitáveis.

 

1. Barbárie e escravidão eram um par natural.

2. Os gregos viam como moralmente elevado ajudar amigos e repelir inimigos e, neste último caso, escravizá-los. Os gregos então, por definição, deveriam dominar os bárbaros.

A história mostrou que essa visão de mundo não apenas migrou para Roma mas, posteriormente, passando pela Cristandade pós-Constantino, chegou ao Ocidente “superior” e, por fim, ao suposto “fim da história ocidental”: a América imperial.

Roma, como de costume, foi pragmática: o termo “bárbaro” foi adaptado para qualificar qualquer coisa ou qualquer pessoa que não fosse romana. Como não nos deliciarmos com essa ironia histórica: para os gregos, os romanos, tecnicamente, também eram bárbaros.

Roma se centrou mais no comportamento que na raça. Se você fosse verdadeiramente civilizado, não se deixaria atolar na  “selvageria” da Natureza, nem habitaria a periferia do mundo (como os vândalos, os visigodos etc.). Você moraria no exato centro da matriz.

Todos os que viviam fora do domínio romano e, principalmente, os que resistiam ao poderio de Roma, eram bárbaros. Um conjunto de traços estabelecia a diferença: raça, tribo, língua, cultura, religião, leis, psicologia, valores morais, vestimentas, cor da pele, padrões de comportamento.

Gente que habitava a Barbária jamais poderia se tornar civilizada.

A partir do século XVI, essa foi a lógica que sustentou a expansão europeia e/ou o estupro das Américas, da África e da Ásia, o cerne da mission civilisatrice portada como uma carga pelo homem branco.

Com tudo isso em mente, uma série de perguntas permanece sem resposta. Todos os bárbaros seriam irremediavelmente bárbaros – selvagens, incivilizados, violentos? O “civilizado”, em muitos casos, poderia também ser considerado bárbaro? Seria possível configurar uma identidade pan-bárbara? E onde fica a Barbária de hoje?

O fim da religião secularizada 

A barbárie começa em casa. Alastair Crooke mostrou que, nos Estados Unidos extremamente polarizados dos dias de hoje, “ambos os partidos”,  essencialmente,  acusam-se mutuamente de bárbaros: “essa gente mente e se rebaixaria a usar quaisquer meios ilegítimos, sediciosos (ou seja, inconstitucionais)  para atingir  seus fins ilícitos”.

Tornando as coisas ainda mais complexas: esse entrechoque de barbáries opõe uma velha guarda conservadora a uma Woke Generation (a geração conscientizada sobre as injustiças sociais), que de várias maneiras macaqueia a mentalidade da Revolução Cultural de Mao.  Esse “woke” poderia facilmente ser interpretado como oposto ao Iluminismo. Trata-se de um termo anglo-americano – visível entre as vítimas desorientadas, socialmente desiludidas, em grande medida desempregadas, com ou sem máscaras e não-distanciadas da Nova Grande Depressão que se avoluma a cada dia. Não há “woke” na China, na Rússia, no Irã ou na Turquia.

No entanto, a questão central da Barbária vai muito além dos protestos de rua. A “nação indispensável” pode ter perdido irrecuperavelmente o equivalente ocidental do “mandato celeste” chinês, que ditava, livre de qualquer oposição, os parâmetros de seu próprio construto: a “civilização universal”.

Os fundamentos do que chega a ser uma religião secularizada estão em frangalhos. Os “pilares estreitos e sectários” dos “princípios liberais básicos de autonomia, liberdade, industriosidade e livre-comércio individuais” só poderiam ser incorporados a um projeto universal – enquanto fossem sustentados pelo poder”.

Nos últimos dois séculos, mais ou menos, essa pretensão civilizacional serviu de base à colonização do Sul Global e da dominação incontestada de todo o Resto pelo Ocidente. Não é mais assim. Sinais vêm se insinuando por toda a parte. O mais gritante deles é a parceria estratégica Rússia-China atualmente em construção.

A “nação indispensável” perdeu para a Rússia sua vantagem em tecnologia militar e está perdendo sua preeminência econômico-comercial para a China. O Presidente Putin viu-se obrigado a escrever um ensaio retificando o relato histórico  quanto a um dos pilares do Século Americano: a vitória na Segunda Guerra Mundial que, em grande medida, só aconteceu graças aos sacrifícios feitos pela URSS.

É bem esclarecedor examinar de que forma a pretensão civilizacional vem se desenrolando no Sudoeste Asiático – aquilo que a perspectiva orientalista define como o Oriente Médio.

Em um paroxismo de zelo missionário, o autodesignado herdeiro do Império Romano – podem chamá-lo de Roma sobre o Potomac – pretende agora, por intermédio do Deep State, destruir, usando de todos os meios que forem necessários, o supostamente “bárbaro” Eixo da Resistência: Teerã, Bagdá, Damasco e o Hezbollah. Não por meios militares, mas com o apocalipse econômico.

Este testemunho, apresentado por um religioso europeu que trabalha com os sírios, mostra de forma concisa que as sanções da Lei de César – perversamente  definidas como a “Lei de Proteção de Civis”,  e promulgadas no governo Obama, em 2016 – têm a intenção de prejudicar e até mesmo matar de fome as populações locais, conduzindo-as deliberadamente a revoltas civis.
James Jeffrey, o enviado dos Estados Unidos à Síria, chegou a festejar, em um pronunciamento público, que as sanções contra “o regime” tivessem  “contribuído para o colapso” do que, essencialmente, são as fontes de sustento do povo sírio.

A Roma sobre o Potomac vê o Eixo de Resistência como a Barbária. Para uma das facções hegemônicas dos Estados Unidos, essas nações são bárbaras porque ousam rejeitar a pretensão norte-americana de superioridade “moral”. Para a outra facção não menos hegemônica, elas são tão bárbaras que apenas uma mudança de regime as redimiria. Boa parte da Europa “iluminista” também apóia essa interpretação, ligeiramente adoçada por laivos de imperialismo humanitário.

O Muro de Alexandre 

É o Iraque, tudo de novo. Em 2003, o farol da civilização lançou a operação Choque e Terror contra o “bárbaro”  Iraque, uma ação criminosa inteiramente baseada em inteligência falsificada – de forma muito semelhante ao capítulo mais recente da infindável Russiagate, onde vemos russos malignos no papel de financiadores do Talibã com a intenção de matar soldados (invasores) dos Estados Unidos.

Essa “inteligência” – sem nenhuma prova que a corroborasse e papagueada de forma totalmente acrítica pela mídia empresarial – veio do mesmo sistema que torturou prisioneiros inocentes em Guantánamo até que eles confessassem seja lá o que fosse; que mentiu sobre as tais armas de destruição em massa no Iraque; e que financiou e instrumentalizou os salafi-jihadis – apresentados como “rebeldes moderados” – para matar sírios, iraquianos e russos.

Não é de admirar que, em 2003, eu ouvisse incessantemente por todo o Iraque, tanto de sunitas quanto de xiitas, que os invasores americanos eram mais bárbaros que os mongóis do século XIII.

Um dos principais alvos da Lei de César é fechar definitivamente a fronteira sírio-libanesa. Uma consequência que não foi levada em conta é que isso fará com que o Líbano se aproxime da Rússia e da China. O secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, já deixou isso bem claro.

Nasrallah acrescentou um sutil insight histórico – ressaltando que o Irã sempre foi o intermediário cultural e estratégico entre a China e o Ocidente: afinal, durante séculos, a língua preferida ao longo das Antigas Rotas da Seda era o persa. Quem é o bárbaro, agora?

O Eixo da Resistência, assim como a China, sabem que será necessário lidar com uma ferida infeccionada: os milhares de  uigurs salafi-jihadi  espalhados por toda a fronteira sírio-turca, que poderiam se converter em um grave problema, obstruindo a rota terrestre do Norte do Levante das Novas Rotas da Seda.

Na Líbia, parte do Grande Oriente Médio, absolutamente destruída pela OTAN e transformada em uma terra arrasada de milícias em guerra,  a tática de “liderar a partir da retaguarda” na luta contra a Barbária tomará a forma de uma perpetuação da guerra – as populações locais que se danem. O enredo é uma reencenação fiel da guerra Irã-Iraque de 1980-1988.

Em poucas palavras, o projeto de “civilização universal” vem conseguindo destruir por completo as estruturas estatais “bárbaras” do Afeganistão, do Iraque, da Líbia e do Iêmen. Mas, agora, chega.

O Irã traçou a nova linha na areia. Beneficiando-se da dura experiência de viver há quatro décadas sob as sanções dos Estados Unidos, Teerã enviou a Damasco uma grande delegação de empresários  para programar o fornecimento de bens de primeira necessidade, e está agora “quebrando o cerco dos combustíveis na Síria, enviando diversos navios-tanque” – de forma muito semelhante à quebra do bloqueio americano da Venezuela. O petróleo será pago em liras sírias.

A Lei de César, portanto, está levando a Rússia, a China e o Irã, os três principais nós das inúmeras estratégias da integração eurasiana – a se aproximarem cada vez mais do Eixo da Resistência “bárbara”. Uma característica especial são os complexos vínculos diplomático-energéticos entre o Irã e a China – também parte de uma parceria estratégica de longo prazo, que inclui até mesmo uma nova estrada de ferro ligando Teerã a Damasco e, futuramente, a Beirute (parte da Iniciativa Cinturão e Rota no Sudoeste Asiático) – que também será usada como um corredor de energia.

No surá 18 do Corão Sagrado, encontramos a história de como Alexandre o Grande, a caminho do Indo, deparou-se com um povo longínquo que “mal conseguia entender algum tipo de fala”. Quer dizer – os bárbaros.

Esses bárbaros disseram a Alexandre que eles vinham sendo ameaçados por gente que eles chamavam – em árabe – de Gog e Magog, e pediram seu auxílio. O macedônio sugeriu que eles juntassem uma grande quantidade de ferro, que o fundissem e construíssem um gigantesco muro – projetado por ele. Segundo o Corão, enquanto Gog e Magog permanecessem do outro lado do muro, o mundo estaria seguro.

Mas então, no Dia do Juízo, o muro cairia por terra. E hordas de monstros beberiam todas as águas do Tigre e do Eufrates.

Enterrado sob morros ao norte do Irã, o lendário Sadd-i-Iskandar (“Muro de Alexandre”) ainda existe. Sim, jamais saberemos que espécie de monstros engendrados pelo sono da razão espreitam por toda a Barbária.

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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