Palestina: Tragédia e Retorno

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Salem H. Nasser explica o que você precisa saber sobre o confronto mais recente

Todo mundo sempre soube que havia palestinos na Palestina.

Os primeiros sionistas, seculares, quando pegaram carona na promessa bíblica e escolheram a Palestina para construir o lar do povo judeu, sabiam que ali havia mais de meio milhão de palestinos muçulmanos, cristãos e judeus.

O Reino Unido, quando, em plena Primeira Guerra Mundial, combinou com os franceses que a Palestina seria sua depois da derrota dos otomanos e comunicou aos sionistas seu apoio à ideia da instalação ali do lar para os judeus, também sabia.

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A Liga das Nações, quando estabeleceu o mandato inglês sobre a Palestina, também sabia.

Os 33 Estados que votaram na ONU, em 1947, favoravelmente ao plano de partilha da Palestina também sabiam, assim como sabiam os 13 que votaram contra e os dez que se abstiveram. Note-se que a ONU tinha então 57 membros; o resto do mundo era submetido a algum tipo de dominação colonial e apenas nas décadas seguintes surgiram os outros cerca de 140 Estados.

Manifestantes palestinos fogem de ataques de bombas e de gás lacrimogêneo pelas forças de Israel, durante protestos contra decisão dos Estados Unidos de mudar embaixada para Jerusalém (Foto: IBRAHEEM ABU MUSTAFA/REUTERS)

Em 1947, os palestinos já eram cerca de 1,4 milhão de pessoas, e algo próximo de 600 mil judeus tinham imigrado para a Palestina, a grande maioria a partir da perseguição nazista.

O plano de partilha continha uma contradição aparentemente insolúvel, já que todas as partes do território eram de maioria populacional palestina.

Apenas aparentemente insolúvel, porque devia estar claro para todos que o projeto sionista não poderia se realizar sem a expulsão de grande parte da população originária. E foi o que aconteceu. Em 1948, antes e depois de 15 de maio, 750 mil palestinos foram expulsos de suas casas, perderam suas propriedades e se viram condenados, junto com seus descendentes, à condição de refugiados.

Esses refugiados, hoje milhões de pessoas, estão espalhados pelo mundo. Na Faixa de Gaza, um território que serve como prisão a céu aberto, onde é coletivamente punido 1,5 milhão de palestinos, dois terços da população ainda conservam as chaves e os títulos de propriedade de suas casas localizadas no que hoje é Israel.

Enquanto boa parte do mundo lembra, e comemora, os 70 anos da fundação do Estado de Israel e tende a esquecer que esse evento foi acompanhado por um terrível processo de limpeza étnica, os palestinos fazem uma Marcha do Retorno, aproximando-se da linha que os separa de sua terra, e são recebidos à bala.

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A versão veiculada a gosto por israelenses e seus apoiadores é a de que os palestinos abandonaram suas casas em 1948 porque foram instados a isso pelos Estados Árabes, que prometiam destruir Israel. A tese foi desconstruída, junto a outros mitos da fundação do Estado e da Guerra de 1948, por historiadores israelenses que trabalham com documentos oficiais tornados públicos nos anos 1980.

Há muito todas as iniciativas de negociação entre palestinos e israelenses incorporam sem exceção o novo piso da chamada legitimidade internacional: a ideia de dois Estados nas fronteiras anteriores à guerra de 1967. Ou seja, não desafiam a noção de que as terras de onde tantos foram expulsos são hoje parte de Israel. Todas incluem na agenda o tema do reconhecimento dos direitos dos refugiados palestinos. Israel, além de sabotar a ideia de dois Estados, resiste a reconhecer qualquer direito aos refugiados e, certamente, opõe-se ao direito de retorno propriamente dito.

Paradoxalmente, Israel tem uma Lei do Retorno que reconhece o direito de qualquer judeu do mundo — cuja enorme maioria não tem qualquer relação com o território da Palestina histórica que não seja a promessa feita no Antigo Testamento — a vir viver em Israel e ser seu cidadão.

Em parte, isso se explica porque o projeto de um Estado para o povo judeu, e que cada vez mais se pretende um Estado ele próprio judeu, continua a viver sua corrida demográfica: assim como precisava expulsar a população original, precisa hoje evitar que a parcela não judia da população supere aquela constituída por judeus.

A corrida demográfica é também uma armadilha. Num Estado que é ele mesmo judeu, o não judeu é, na melhor das hipóteses, um cidadão de segunda classe, e tudo precisa ser feito para evitar que uma parte dos cidadãos supere em números a outra parte.

E a corrida não está circunscrita ao território do Estado de Israel. Ela se estende aos territórios ocupados. Ali simplesmente não há outra explicação para os assentamentos que não seja a incorporação das terras e a continuidade da mudança da demografia de toda a Palestina histórica. E ali a armadilha é ainda maior: não se pode montar uma democracia sobre a ocupação e sobre o apartheid.

Onde quer que alguém se encontre no espectro das convicções políticas e como quer que se posicione em relação ao Estado de Israel ou à solução para a questão palestina, não há como negar a realidade das tragédias que atingem os palestinos, o desterro originário e a condição dos refugiados, o cerco desumano a Gaza e sua catástrofe humanitária, a ocupação e a segregação nos territórios ocupados que logo mais serão anexados.

Nos dias que correm, a principal injustiça que se comete em relação aos palestinos é o apagamento do que sofreram e do que sofrem. Muitas forças têm empurrado a tragédia palestina para o esquecimento. A única força que os palestinos de Gaza têm para nos fazer ver é a de marchar e talvez morrer.

Até recentemente, o que se costuma chamar de comunidade internacional declarava seu apoio ao pacote da paz que incluía as fronteiras de 1967, com ajustes, algum reconhecimento dos direitos dos refugiados, a divisão de Jerusalém e o fim dos assentamentos na Cisjordânia.

Essa ideia de paz está morta. Se existia nela um fio de vida, desde Donald Trump já não há.

Trump acaba de dar dois presentes a Benjamin Netanyahu: a saída do acordo nuclear com o Irã e a mudança da embaixada americana para Jerusalém. Espera-se que nas próximas semanas ofereça-lhe ainda o melhor dos presentes: uma proposta de acordo do tipo pegar ou largar que, ao estilo Trump, quererá fazer engolir aos palestinos.

Esses presentes têm tudo para convulsionar ainda mais a região em que os riscos de uma conflagração geral são crescentes. E os presentes aceleram o ritmo de uma corrida já em curso: veremos se eles nos aproximam antes da morte da questão palestina ou da desconstrução definitiva do que Israel diz ser.

Salem H. Nasser é professor de direito global da FGV direito SP (Foto: Arquivo pessoal)
Publicado por Revista Época, 18 de maio 2018
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