O mito da excelência moral das Unidades de Proteção do Povo Curdo (cur. Yekîneyên Parastina Gel, YPG) 

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11/7/2017, Stephen Gowans, What’s Left

Traduzido por Vila Vudu

Imagem (legenda): “Diferente do que diz a propaganda pró-Lincoln abraçada por stalinistas como Karl Marx, o movimento rebelde norte-americano TAMBÉM incluía camadas sociais que se opunham à escravatura – não sabemos quem são, mas estão lá! – Fim dos bombardeios pró-Lincoln.” Sob o dístico ‘Se a Organização Internacional Socialista existisse em 1865’.”

Crítica fortemente enviesada distribuída pela International Socialist Organization (ISO) dos EUA,* que se vê na Imagem com título “Se a Organização Internacional Socialista existisse em 1865” acaba por revelar a orientação de grandes porções da esquerda ocidental contra o governo árabe nacionalista do presidente Bashar Al-Assad em Damasco.

A verdade que aí se vê é que a ISO e suas organizações cognatas não deixarão pedra sobre pedra, à procura de alguma força – qualquer força – dentro da Síria, que elas possam apoiar e que se tenha armado contra Damasco. Isso, a ponto de já dizerem que ‘algum grupo’ existe… mesmo que ninguém consiga identificá-lo.

Claro que Washington dá uma mão, sempre se referindo nos termos mais elogiosos aos seus ‘delegados’ ativos na Síria. Insurgentes islamistas na Síria, sobretudo a Al-Qaeda, há bem poucos anos eram celebrados como movimentos pró-democracia; quando essa farsa deixou de ser verossímil, criou-se a neofarsa dos “terroristas moderados”.

Agora que os ditos “moderados” também já foram desmascarados e revelados como absolutamente nada democráticos e nada moderados, muitos, na esquerda agarram-se à esperança de que entre os inimigos do governo secular e árabe socialista da Síria seja possível encontrar terroristas que lutem pelos mesmos valores da Ilustração defendidos pelo governo de Damasco. Com certeza –, raciocina essa parte da esquerda –, existem esquerdistas armados organizados contra o governo legal e legítimo da Síria, por trás dos quais aquela esquerda sonha poder alinhar-se; porque parece que o objetivo é encontrar um motivo, qualquer motivo, por tênue que seja, para criar uma auréola de excelência moral em torno de qualquer grupo que faça oposição armada ao governo em Damasco; qualquer grupo terrorista que possa ser travestido e mostrado como não sectário, anti-imperialista, socialista, comprometido com defender direitos das mulheres e das minorias, que defenda os palestinos… Em resumo: um grupo exatamente idêntico aos socialistas árabes do Partido Ba’ath da Síria, mas que não sejam eles!

O partido local que primeiro se apresentou para realizar essa esperança foi o PKK [literalmente Partido dos Trabalhadores do Curdistão (cur. Partiya Karkerên Kurdistanê)], grupo guerrilheiro anarquista demonizado como organização terrorista quando opera na Turquia contra um aliado dos EUA, mas que foi rebatizado na Síria como “Unidades de Proteção do Povo Curdo” [em curdo, YPG], onde é o principal componente da superpropagandeada “Força Democrática Síria”. Essas ‘unidades de proteção do povo’ são tão atraentes para esquerdistas ocidentais que alguns até se apresentaram lá como voluntários. Mas… essas [unidades de proteção do povo curdo] YPGs serão realmente a esperança que tantos creem que sejam?

Curdos in Síria

Mapa: O estado dos curdos

É difícil determinar com precisão quantos curdos há na Síria, mas é claro que o grupo étnico constitui pequena porcentagem da população síria (segundo a CIA, menos de 10%; e 8,5% segundo estimativa citada por Nikolaos Van Dam em seu livro The Struggle for Power in Síria. [1] Estimativas da proporção de curdos na população síria são de 2-7%, considerados os números de população do CIA World Factbook. Metade da comunidade curda vive na Turquia, 28% no Irã e 20% no Iraque. Relatório do Departamento de Estado dos EUA divulgado em 1972, depois de cumprido o prazo legal de sigilo, estima que vivam na Síria apenas entre 4-5% dos curdos [2]. Apesar das estimativas nada precisas, é claro que os curdos são pequena proporção na população síria, e que o número de curdos que vivem na Síria é pequena parte também do total de curdos.

O PKK

Os combatentes curdos na Síria operam sob a denominação de YPG, “unidades ligadas ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão, PKK, movimento de guerrilha radical que une [ideias anarquistas] e nacionalismo curdo. Os guerrilheiros do PKK combateram contra o estado turco desde 1978″ e o PKK é “classificado como organização terrorista pela União Europeia, Turquia e EUA” [3]

Cemil Bayik é o principal comandante em campo de ambos, do PKK na Turquia e de sua encarnação síria, as YPGs. Bayik “comanda a organização guarda-chuva do PKK, a União das Comunidades Curdas (cur. Koma Civakên Kurdistan), que reúne todos os grupos afiliados do PKK em vários países. Todos seguem o mesmo líder Abdullah Ocalan, que está preso na Turquia” [4] desde 1999, quando foi preso por autoridades turcas com ajuda da CIA.

Ocalan “chegou a ser marxista-leninista devotado”, segundo Carne Ross, que escreveu um perfil do líder nacionalista curdo para The Financial Times em 2015. Mas Ocalan “acabou por se convencer de que, assim como o capitalismo, o comunismo também se baseia na coerção”. Preso numa ilha no Mar de Marmara, Ocalan descobriu “a obra-prima de um pensador político de New York, Murray Bookchin.” Bookchin “acreditava que a verdadeira democracia só prosperaria se a tomada de decisões coubesse à comunidade local, sem ser monopolizada por elites distantes e que de modo algum poderiam ser responsabilizadas por seus erros e pagar por eles.” O governo é desejável, argumentava Bookchin, mas a tomada de decisões teria necessariamente de ser descentralizada e inclusiva. Embora anarquista, Bookchin preferiu chamar sua abordagem de “comunalismo”. Ocalan adaptou as ideias de Bookchin ao nacionalismo curdo, e deu forma à filosofia do “confederalismo democrático” [5].

O trabalhismo sionista partilha ideias semelhantes sobre um sistema político baseado em comunidades descentralizadas, mas, no âmago, sempre foi e é movimento nacionalista. Assim também, as ideias de Ocalan não podem ser compreendidas fora do quadro do nacionalismo curdo. O PKK pode ter abraçado belas metas utópicas de confederalismo democrático, mas, no fundo, é organização dedicada a estabelecer o autogoverno curdo – e, como se vê hoje, não só em território tradicional curdo, mas também em território tradicional árabe, mais um traço que o aproxima do trabalhismo sionista. Nos dois países, Síria e Iraque, combatentes curdos usaram a campanha contra o ISIS como uma oportunidade para ‘ampliar’ o Curdistão para territórios tradicionalmente árabes nos quais os curdos jamais foram maioria.

O objetivo do PKK, escreve Sam Dagher do Wall Street Journal, “é uma confederação de enclaves governados por curdos no Irã, Iraque, Síria e Turquia” [6], países nos quais sempre houve curdos, mas, como se vê na Síria, em números não significativos. Em busca desse objetivo, “5.000 curdos já morreram em lutas do PKK desde meados dos anos 1980s, e praticamente todos os principais líderes e mais experientes combatentes do YPG são veteranos de décadas de luta contra a Turquia” [7].

Na Síria, o objetivo do PKK “é estabelecer uma região de autogoverno curdo no norte da Síria” [8], região onde vive significativa população árabe.

Quando os combatentes do PKK atravessam a fronteira para a Turquia, convertem-se em ‘terroristas’ para os EUA e União Europeia. Mas quando novamente cruzam a fronteira e retornam à Síria, são miraculosamente convertidos em ‘guerrilheiros’ em guerra pela democracia, integrados, como principal força armada, à Força Democrática Síria.

Mas a verdade é que, seja do lado turco seja do lado sírio da fronteira, o PKK usa os mesmos métodos, visa aos mesmos objetivos e serve-se do mesmo pessoal. As YPGs são o PKK.

Uma oportunidade

“Os nacionalistas árabes, especialmente o Partido Socialista Ba’ath, no poder desde 1963, representam praticamente tudo que Washington tanto se esforça para ‘proibir’ ao mundo: socialismo, nacionalismo árabe, anti-imperialismo e anti-sionismo.”

Há muito tempo os EUA desejam derrubar o governo dos árabes nacionalistas na Síria, insistindo em vê-los como “foco da luta dos nacionalistas árabes contra uma presença regional dos EUA e seus interesses”, como disse certa vez Amos Ma’oz. Os nacionalistas árabes, especialmente o Partido Socialista Ba’ath, no poder desde 1963, representam excesso de coisas que Washington tanto se esforça para ‘proibir’ ao mundo: socialismo, nacionalismo árabe, anti-imperialismo e anti-sionismo.

Washington denunciou Hafez al-Assad, presidente da Síria de 1970 a 2000, como comunista árabe. E quanto ao filho de Hafez, Bashar, eleito para suceder o pai na presidência, as coisas mudaram um pouco.

Quanto a Bashar, diz o Departamento de Estado, o problema é que não deixou que a economia síria – ‘baseada no modelo dos sovietes’, como dizem os ‘especialistas’ bravateiros – fosse integrada à economia global controlada pelos EUA. Para piorar, Washington não perdoa o apoio que Damasco dá ao Hezbollah e ao movimento de libertação nacional palestino.

Os ‘planejadores’ norte-americanos decidiram que, para eliminar todos os nacionalistas árabes da Ásia, os países deles seriam invadidos. Primeiro, o Iraque, em 2003, o qual, como a Síria, era governado pelos socialistas árabes do Partido Socialista Ba’ath; em seguida, a Síria.

Mas o Pentágono logo descobriu que seus recursos estavam sob forte pressão da resistência contra a ocupação norte-americana no Afeganistão e no Iraque, e que invadir a Síria estava fora de questão. Como alternativa, Washington imediatamente começou campanha de guerra econômica contra a Síria. A campanha, que de fato ainda é a mesma até hoje, 14 anos depois, deveria, conforme os ‘planos’ dos EUA, paralisar algum dia a economia e impedir que Damasco oferecesse educação, atendimento à saúde e outros serviços essenciais à população de partes do país. Ao mesmo tempo, Washington tomou providências para reaquecer a guerra santa de longa duração que islamistas sírios faziam contra o estado secular. Essa guerra começara nos anos 1960s e culminou com a sangrenta tomada de Hama, a quarta maior cidade da Síria, em 1982. A partir de 2006, Washington trabalhou com a Fraternidade Muçulmana na Síria, para reposicionar, contra o governo secular de Assad,  a jihad da FM. Os Irmãos tiveram duas reuniões na Casa Branca e frequentemente se reuniam com o Departamento de Estado e o Conselho de Segurança Nacional dos EUA.

A eclosão da violência dos extremistas islamistas em março de 2011 foi saudada pelo PKK como uma oportunidade. Como narra Yaroslav Trofimov do Wall Street Journal, “O PKK, que antes fora aliado de Damasco tinha presença significativa entre as comunidades curdas do norte da Síria. Quando a maré revolucionária chegou à Síria, os afiliados sírios do grupo rapidamente assumiram o comando sobre as três regiões de maioria curda ao longo da fronteira turca. Combatentes do PKK e armas fluíram para lá, de outras partes do Curdistão”[9]. Os “curdos sírios”, escreveram dois colegas de Trofimov, Joe Parkinson e Ayla Albayrak, viram “a guerra civil como uma oportunidade para constituir um enclave autogovernado – semelhante ao que seus parentes étnicos haviam estabelecido no Iraque” [10]. Aquele enclave, há muito tempo sustentado por EUA e Israel, era tido como uma das ferramentas para enfraquecer o estado iraquiano.

Damasco facilitou a ação do PKK, ao ordenar a retirada de seus soldados das áreas controladas pelos curdos. Patrick Seale, especialista em Oriente Médio, que escreveu que os curdos “colheram a oportunidade” do caos gerado pelo levante islamista, “para promover sua própria agenda política” [11] especulou que o objetivo do governo sírio, ao retirar-se das áreas de maioria curda, era redirecionar “tropas para defender Damasco e Aleppo;” castigar a Turquia pelo apoio que dava aos insurgentes islamistas; e “promover a conciliação de todos os curdos, como meio para dissuadi-los de se unir aos rebeldes” [12]. Como depois se viu, o PKK, não se uniu aos insurgentes islamistas como Damasco esperara. E, sim, uniu-se a parte mais significativa da oposição à Síria árabe nacionalista: ao próprio operador dos fantoches por ali, os EUA.

Em 2014, o PKK já “declarara três governos autoadministrados, ou ‘cantões’, como são chamados lá, no norte da Síria: Afreen, no noroeste, perto da cidade de Aleppo; Kobani e Jazeera no nordeste, que inclui Ras al-Ain e a cidade de Qamishli. O objetivo deles era conectar os três cantões” [13]. Significaria controle curdo sobre espaços ocupados por árabes.

Um acordo com Washington

Nesse ponto, o PKK decidiu que seus objetivos políticos estariam mais bem atendidos se fizessem um acordo com Washington.

O Departamento de Estado “abrira a possibilidade de uma forma de descentralização pela qual diferentes grupos” – os curdos, o governo secular e os insurgentes islamistas – receberiam, cada grupo, algum tipo de autonomia dentro da Síria. [14]

Não se deve deixar de anotar que há aí, implícita, a ideia de que Washington teria algum tipo de direito de ‘distribuir’ fatias de autonomia dentro da Síria, ao mesmo tempo em que o direito de decidir se a descentralização interessaria ou não ao país, que é direito exclusivo do povo sírio, é simplesmente apagado do mundo. Se as ideias de Ocalan inspiradas em Bookchin estivessem realmente sendo levadas a sério, essa abominação antidemocrática jamais seria tolerada.

Ao mesmo tempo, o PKK estava também excitado pela ideia norte-americana de “dividir a Síria em zonas mais ou menos correspondentes às áreas [então] sob controle do estado sírio, do ISIS, das milícias curdas e outros insurgentes”. Estabelecer-se-ia um “sistema federal”, “não só para as áreas de maioria curda, mas para toda a Síria. Seria criada uma região federal curda” no território [então] controlado pelo PKK. A zona seria expandida para incluir territórios que os curdos tinham esperança de “conquistar em combate, não só do ISIS mas também de outros grupos árabes insurgentes” [15].

O PKK “pressionou funcionários dos EUA” para trabalhar nesse esquema, prometendo, em troca, agir como força em campo contra o ISIS [16]. O grupo disse que estava “ansioso para se unir à coalizão liderada pelos EUA contra o Estado Islâmico, em troca de Washington reconhecer e apoiar o estabelecimento de uma região autogovernada por curdos, que os próprios curdos haviam estabelecido no norte da Síria” [17].

Esse arranjo só agradou ao PKK, a Israel e aos EUA.

“O apoio dos EUA a esses grupos curdos” não só na Síria mas também no Iraque, onde os curdos também se aproveitavam da batalha com o ISIS para expandir seu domínio para tradicionais áreas árabes, ajudou “curdos e o ISIS a dividir a Síria e a dividir o Iraque” – escreveu o veterano correspondente do Independent no Oriente Médio, Robert Fisk [18]. A divisão só beneficiou EUA e Israel, que têm ambos interesse em manter e aprofundar políticas de dividir para governar para impor sua hegemonia partilhada sobre o mundo árabe. Patrick Seale observou que o plano de EUA e curdos para um governo curdo no norte da Síria foi recebido com “júbilo silencioso em Israel, que há muito tempo mantém relações semiclandestinas com os curdos, e sempre aprecia qualquer desenvolvimento que leve a enfraquecer ou desmembrar a Síria” [19].

Por sua vez, os turcos objetaram, ao ver que Washington concordara com ‘dar um estado’ ao PKK em todo o norte da Síria. [20] E Damasco opôs-se frontalmente, “vendo ali um passo na direção de um fracionamento permanente da nação” [21].

Vale recordar que a Síria dos nossos dias já é produto de uma divisão da Síria Expandida, por ação de britânicos e franceses que dividiram e ‘distribuíram’ o país em porções para Líbano, Palestina, Cisjordânia e a porção que é hoje a Síria. Em março de 1920, o segundo Congresso Geral Sírio proclamou a Síria “completamente independente dentro de suas fronteiras ‘naturais’, incluindo Líbano e Palestina.” Ao mesmo tempo, “uma delegação árabe na Palestina confrontou o comando militar britânico, com uma resolução em que se se opunham ao sionismo e requeriam o direito de a Palestina ser incluída como parte de uma Síria independente” [22]. A França mandou seu Exército para o Levante, soldados recrutados principalmente de sua colônia no Senegal, para esmagar pela força os esforços dos árabes do Levante para estabelecer seu próprio governo.

A Síria, já truncada pelas maquinações imperialistas de britânicos e franceses depois da 1ª Guerra Mundial “é pequena demais para ser estado federal” – opina o presidente da Síria Bashar al-Assad. Mas Assad rapidamente acrescenta que seu pessoal ponto de vista não é importante; a questão de se a Síria deve tornar-se estado federal ou confederal ou unitário, diz ele, cabe aos sírios decidir, em referendo constitucional [23], reconfortadora visão democrática, tão diferente do que diz o ocidente, que Washington deve decidir pelos sírios sobre como os sírios devem decidir suas questões políticas (e econômicas).

EUA “na ponta da espada”

Para Washington, o PKK oferece um benefício adicional à utilidade do grupo de guerrilheiros curdos, para promover o objetivo dos EUA de enfraquecer a Síria, fraturando-a, a saber, o PKK pode ser pressionado para servir como agente ‘terceirizado’ do Exército dos EUA, o que elimina a necessidade de os EUA deslocaram dezenas de milhares de soldados para a Síria, o que permite que a Casa Branca e o Pentágono consigam escapar de muitas dificuldades no campo da legalidade, do orçamento e das relações públicas. “A situação destaca o desafio crítico que o Pentágono enfrenta”, escreveu Paul Sonne do Wall Street Journal’s; a saber, “apoiar tropas locais (…) em vez de pôr soldados norte-americanos “na ponta da espada” [24].

Tendo prometido apoio aos curdos no norte da Síria em troca de os PKK porem-se na posição de ponta de espada dos EUA, os EUA “está fornecendo” armas leves, metralhadoras e munição e possivelmente algum acessório não letal, como caminhões leves, às forças curda” [25].

As armas são entregues em parcelas, em abordagem do tipo “armar, operar e avaliar”. As entregas são feitas por mar, os curdos são armados, executam uma operação e os EUA avaliam o sucesso da missão, antes de fornecerem mais armas”. Um funcionário dos EUA disse que “só lhes fornecemos armas e munição suficientes para executar cada missão” [26].

Os soldados de infantaria do PKK são apoiados por “mais de 750 Marines dos EUA”, Rangers do Exército e Forças Especiais de EUA, França e Alemanha, “usando helicópteros, artilharia e ataques aéreos”. – Assim o mestre-operador dos fantoches ocidentais atua ilegalmente na Síria, em clara contravenção da lei internacional [27].

‘Limpeza étnica’

“Grandes números de residentes árabes vivem nas regiões que os curdos designam como deles” [28]. O PKK tomou larga faixa de território sírio no norte do país, inclusive cidades e vilas predominantemente árabes” [29]. Raqqa e partes circundantes do Vale do Eufrates nos quais o PKK pôs os olhos são habitados por maioria de árabes, observa o veterano correspondente estrangeiro do Independent Patrick Cockburn – e os árabes opõem-se à ocupação curda [30].

Forças curdas não estão “retomando” cidades árabes muçulmanas e cristãs só na Síria: fazem o mesmo também na província de Nineveh do Iraque – áreas “que, para começar, nunca foram curdas. Os curdos agora veem Qamishleh e a província Hassakeh na Síria como se fossem parte de algum ‘Curdistão’, mesmo os curdos sendo minoria em muitas dessas áreas” [31].

O PKK controla agora 52 mil km2 de território sírio [32], cerca de 17% do país, mesmo os curdos representando menos de 8% da população.

Em seus esforços para criar uma região curda dentro da Síria, o PKK “tem sido acusado de abusos por civis árabes no norte da Síria, inclusive prisões arbitrárias e deslocamento forçado de populações em nome de fazer retroceder o Estado Islâmico” [33]. O PKK “expulsou árabes e turcomenos étnicos de partes do norte da Síria”, noticiou o Wall Street Journal [34]. O Journal observa também que “grupos de direitos humanos acusaram [combatentes curdos iraquianos e curdos sírios] de impedir que árabes retornem a áreas libertadas” [35].

Forças nem sírias nem democráticas

O PKK domina as Forças Sírias Democráticas, mau nome dado a grupo de combatentes predominantemente curdos pelo próprio patrão delas, os EUA.

O grupo não é sírio, dado que muitos são não sírios que se identificam como curdos e que fluem em torrentes vindos da Turquia para tentar beneficiar-se do caos gerado pela insurgência islamista na Síria e implantar uma área de controle curdo.

O grupo tampouco é notavelmente democrático, dado que existe para impor o poder curdo sobre populações árabes. Robert Fisk desqualifica as “Forças Sírias Democráticas” como “nome de fachada para grande número de combatentes curdos e uns poucos árabes” [36].

O PKK posa de Forças Sírias Democráticas e trabalha com uma pequena força de árabes sírios, para disfarçar a realidade de que as áreas povoadas de árabes que elas controlam e as que venham a capturar estão e estarão sob ocupação curda.

Uma zona aérea de exclusão de facto (e ilegal)

Em agosto de 2016, depois que bombardeiros do governo sírio atacaram posições curdas próximas da cidade Hasakah, onde os EUA apoiavam forças curdas, “o Pentágono contrabandeou jatos para lá, para protegê-las. Os jatos dos EUA chegaram exatamente quando os dois bombardeiros Su-24 do governo sírio saíam de lá.” Nessas circunstâncias, a coalizão comandada pelos EUA pode começar a patrulhar o espaço aéreo sobre Hasakah, o que gerou outro incidente (…) quando dois bombardeiros sírios Su-24 tentaram voar naquela área, mas foram impedidos por jatos de combate da coalizão” [37].

O Pentágono “avisou os sírios para se manterem afastados. Jatos de combate F-22 dos EUA explicitaram a mensagem, patrulhando a área” [38].

O New York Times observou que, ao usar “força aérea para salvaguardar áreas no norte da Síria onde conselheiros norte-americanos” comandam os combatentes do PKK, os EUA efetivamente estabeleceram uma zona aérea de exclusão, mas observaram que “o Pentágono recusou-se obsessivamente” a usar a expressão [39]. Mesmo assim a realidade é que o Pentágono estabeleceu ilegalmente uma zona aérea de exclusão de facto sobre o norte da Síria para proteger guerrilheiros do PKK, a ponta da espada dos EUA, engajados agora numa campanha para realmente dividir a Síria, inclusive mediante “limpeza étnica” contra a população árabe, para deleite de Israel e de acordo com o objetivo dos EUA de enfraquecer o nacionalismo árabe em Damasco.

Uma analogia astigmática

Há quem veja um paralelo entre a aliança das YPGs com os EUA, e o movimento de Lênin ao aceitar ajuda alemã para voltar do exílio na Suíça, para a Rússia, depois da Revolução de Março de 1917. É analogia errada. Lênin usava uma potência imperialista contra outra. A Síria nem de longe é análoga à Rússia Imperial, a qual, há um século, estava presa numa disputa por mercados, recursos e esperas de influência, contra impérios opositores. Diferente disso, a Síria sempre foi país dividido, dominado, explorado e ameaçado por impérios. Emancipou-se do colonialismo e agora novamente tem de lutar – dessa vez contra os esforços opositores do PKK – para resistir à recolonização.

O PKK fez uma barganha com os EUA para alcançar seu objetivo de estabelecer um estado nacional curdo, mas em oposição aos esforços sírios para salvaguardar a própria independência contra esforços dos EUA, que já se arrastam por uma década, para negá-la. A partição da Síria por linhas sectárias, como desejam igualmente o PKK, Washington e Telavive, serve aos objetivos de EUA e Israel, que sonham com enfraquecer um foco de oposição ao projeto sionista e à dominação pelos EUA sobre a Ásia Ocidental.

Analogia mais adequada é a que anota as similitudes entre o PKK na Síria e o Sionismo Trabalhista, força sionista dominante na Palestina ocupada até o final dos anos 1970s. Como Ocalan, o sionismo inicial enfatizava as comunas descentralizadas. Os kibbutzim eram comunidades utopistas, que têm raízes no socialismo. Como a encarnação síria do PKK, o Sionismo Trabalhista dependia do patrocínio de potências imperialistas; para que esse patrocínio não lhe faltasse, ofereceu-se para ser ‘a ponta das espadas’ imperialistas no mundo árabe.

Os sionistas serviram-se de conquista armada de território árabe, e também de “limpeza étnica” e impedimento a qualquer repatriação, para estabelecerem um estado étnico, antecipando a extensão do PKK por força armada, do domínio de um estado curdo em território sírio de maioria árabe (e combatentes curdos fazem o mesmo também no Iraque).

Anarquistas e outros esquerdistas podem até se ter inspirado nas comunidades agrícolas coletivas na Palestina, mas isso de modo algum tornou progressista ou emancipatório o projeto sionista, porque quaisquer elementos progressistas e emancipatórios que houvesse entre os sionistas, foram logo renegados pela opressão e expropriação violenta contra a população árabe indígena e pela colusão do sionismo com o imperialismo ocidental, contra o mundo árabe.

Conclusão

Representando uma comunidade étnica que reúne menos de 10% da população síria, o PKK, um grupo curdo de guerrilha anarquista ativo na Turquia e na Síria, está usando os EUA – a Força Aérea, os Marines, os Rangers do Exército e soldados das Forças Especiais norte-americanas – como força multiplicadora num esforço para impor uma partição da Síria, pela qual uma parte populacionalmente insignificante de curdos controlaria parte significativa do território sírio, incluindo áreas habitadas por árabes na maioria, e onde os curdos jamais foram maioria.

Para alcançar seus objetivos, o PKK não só urdiu um acordo com um regime despótico em Washington que visa a recolonizar o mundo árabe, como também, além disso, investe em “limpeza étnica” e em impedir que árabes que fugiram ou foram expulsos de suas áreas originais retornem, para implantar o controle curdo sobre o norte da Síria, tática em tudo semelhante à que usaram as forças sionistas em 1948 para criar um estado judeu na Palestina de maioria árabe.

Washington e Israel (Israel há muito tempo mantém relações semiclandestinas com os curdos) contam com um sistema confederal na Síria como meio para enfraquecer a influência do nacionalismo árabe na Ásia árabe – um polo de oposição ao sionismo, ao colonialismo e à ditadura que os EUA impõem onde cheguem.

Forças que resistam contra as ditaduras, inclusive contra a mais odiosa delas, a ditadura dos EUA sobre o mundo, são verdadeiros combatentes a favor da democracia, categoria à qual o PKK, como o comprovam suas ações na Síria, não pertence.

NOTAS

  1. Nikolaos Van Dam, The Struggle for Power in Syria: Politics and Society under Assad and the Ba’ath Party, IB Taurus, 2011, p.1.
  1. “The Kurds of Iraq: Renewed Insurgency?”, US Department of State, 31/5/1972,  https://2001-2009.state.gove/documents/organization/70896.pdf
  1. Sam Dagher, “Kurds fight Islamic State to claim a piece of Syria,” The Wall Street Journal, 12/11/2014.
  1. Patrick Cockburn, “War against ISIS: PKK commander tasked with the defence of Syrian Kurds claims ‘we will save Kobani’”, The Independent, 11/11/2014.
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  1. Yaroslav Trofimov, “The State of the Kurds,” The Wall Street Journal, 19/6/2015.
  1. Joe Parkinson and Ayla Albayrak, “Syrian Kurds grow more assertive”, The Wall Street Journal, 15/11/2013.
  1. Patrick Seale, “Al Assad uses Kurds to fan regional tensions”, Gulf News, 2/8/2012.
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  1. David E. Sanger, “Legacy of a secret pact haunts efforts to end war in Syria,” the New York Times, 16/5/2016.
  1. Anne Barnard, “Syrian Kurds hope to establish a federal region in country’s north,” The New York Times, 16/3/2016.
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  1. Robert Fisk, “This is the aim of Donald Trump’s visit to Saudi Arabia – and it isn’t good for Shia communities,” The Independent, 18/5/2017.
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  1. Yaroslav Trofimov, “US is caught between ally Turquia and Kurdish partner in Syria,” The Wall Street Journal, 4/5/2017.
  1. Anne Barnard, “Syrian Kurds hope to establish a federal region in country’s north,” The New York Times, 16/3/2016.
  1. David Fromkin, A Peace to End All Peace: The Fall of the Ottoman Empire and the Creation of the Modern Middle East, Henry Holt & Company, 2009, p. 437.
  1. “President al-Assad to RIA Novosti and Sputnik: Syria is not prepared for federalism,” SANA, 30/3/2016.
  1. Paul Sonne, “US seeks Sunni forces to take militant hub,” The Wall Street Journal, 29/4/2016.
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  1. Dion Nissenbaum and Maria Abi-Habib, “Syria’s newest flashpoint is bringing US and Irã face to face,” The Wall Street Journal, 15/6/2017; “Syria condemns presence of French and German special forces in Ain al-Arab and Manbij as overt unjustified aggression on Syria’s sovereignty and independence,” SANA, 5/6/2016; Michael R. Gordon. “US is sending 400 more troops to Syria.” The New York Times, 9/3/2017.
  1. Matt Bradley, Ayla Albayrak, and Dana Ballout, “Kurds declare ‘federal region’ in Syria, says official,” The Wall Street Journal, 17/3/2016.
  1. Maria Abi-Habib and Raja Abdulrahim, “Kurd-led force homes in on ISIS bastion with assent of US and Syria alike,” The Wall Street Journal, 11/5/2017.
  1. Patrick Cockburn, “Battle for Raqqa: Fighters begin offensive to push ISIS out of Old City,” The Independent, 7/7/2017.
  1. Robert Fisk, “This is the aim of Donald Trump’s visit to Saudi Arabia – and it isn’t good for Shia communities,” The Independent, 18/5/2017.
  1. Dion Nissenbaum and Maria Abi-Habib, “US split over plan to take Raqqa from Islamic state,” The Wall Street Journal, 9/3/2017.
  1. Raja Abdulrahim, Maria Abi_Habin and Dion J. Nissenbaum, “US-backed forces in Syria launch offensive to seize ISIS stronghold Raqqa,” The Wall Street Journal, 6/11/2016.
  1. Margherita Stancati and Alia A. Nabhan, “During Mosul offensive, Kurdish fighters clear Arab village, demolish homes,” The Wall Street Journal, 14/11/2016.
  1. Matt Bradley, Ayla Albayrak, and Dana Ballout, “Kurds declare ‘federal region’ in Syria, says official,” The Wall Street Journal, 17/3/2016.
  1. Robert Fisk, “The US seems keener to strike at Syria’s Assad than it does to destroy ISIS,” The Independent, 20/6/2017.
  1. Paul Sonne and Raja Abdulrahim, “Pentagon warns Assad regime to avoid action near US and allied forces,” The Wall Street Journal, 19/8/2016.
  1. Michael R. Gordon and Neil MacFarquhar, “US election cycle offers Kremlin a window of opportunity in Syria,” The New York Times, 4/10/2016.
  1. Michael R. Gordon and Neil MacFarquhar, “US election cycle offers Kremlin a window of opportunity in Syria,” The New York Times, 4/10/2016.

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* Não confundir com a Internacional Socialista (IS, ing. Socialist International, SI). A ISO da qual trata esse artigo é organização norte-americana, operante em muitas universidades e com conexões com o Partido Democrata [NTs].

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