O martírio e a imortalidade da Voz da Palestina

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Dentro da dor revela-se a grandeza de um povo, território, países e nação agredidos há mais de cem anos, alvos de cobiça e conspirações

Forças israelenses atacam palestinos que carregavam o caixão da jornalista morta da Al-Jazeera Shireen Abu Akleh, em 13 de maio de 2022 [Mostafa Alkharouf/Agência Anadolu]

O martírio e a imortalidade da Voz da Palestina

por Bruno Beaklini

O artigo que segue distingue dos demais produzidos semanalmente por este analista. Temos análise, mas mesclada com ensaio e a indignação pela crueza dos fatos e a crueldade do opressor. O martírio da jornalista palestina Shireen Abu Akleh foi mais um assassinato dentre centenas de profissionais de mídia desde o início da ocupação colonial. Não se trata de mais um texto de homenagem, todos mais que justificados.

Partimos de um ensaio com a poética de nossas brimas e brimos e observamos esse momento único, onde um fato singular revela toda a estrutura dos crimes sionistas. Dentro da dor revela-se a grandeza de um povo, território, países e nação agredidos há mais de cem anos, alvos de cobiça e conspirações das potências imperialistas. Culmina na própria imortalidade de shaheeds em escala de milhares, quase milhões.

Shireen Abu Akleh foi assassinada no dia 11 de maio deste corrente ano pelas forças da ocupação que marcaram toda sua vida. A repórter que começou a trabalhar na emissora Al Jazeera em 1997, nasceu em Jerusalém Oriental (Al Quds), no ano de 1971, já sob a ocupação estrangeira. Sua vida foi após a Naksa e sua existência devotou-se para combater os efeitos nefastos concretizados na Nakba.

Shireen era de família melquita, católica bizantina, uma das clássicas igrejas cristãs do Oriente, mais próxima do cristianismo de Issa e não do Império que matou o Messias. Como Eescho, foi assassinada por invasores, à luz do dia e identificada como jornalista; e não combatente, sequer manifestante. Ela lutava com os instrumentos da fala, da palavra e da verdade dos fatos.

Israel mata a tiros a jornalista da Al Jazeera Shireen Abu Akleh durante a invasão de Jenin [Sabaaneh/Monitor do Oriente Médio]

Como se não bastasse, teve seu velório violado, com repressão, prisões, apostasia contra sua igreja melquita, agressão contra o ato ecumênico. Nada foi escondido, ceifaram sua vida à luz do dia e brutalizaram o ritual de passagem sob o sol da Palestina Ocupada. Shireen exemplifica o martírio do povo palestino.

O fim da hipocrisia, o reino do eufemismo

Cada vez mais o cinismo deixa de ser parte da liturgia do Terrorismo de Estado, o motor da economia de guerra que alimenta a entidade colonial sionista apelidada pelos invasores como “Estado de Israel”. Se todas as chacinas e massacres oficiais até a década de 1980 foram praticados pelos trabalhistas sionistas, após a segunda invasão do Líbano, o crime de Sabra e Chatila e o início da 1ª Intifada, a “direita” israelense começa a ser hegemônica na política doméstica no interior do Apartheid.

O “outro” é sempre o alvo permanente, a legitimidade de quem lá reside há mais de três mil anos, o fato de que até a tal “diáspora europeia” tem tanta veracidade como o dilúvio a inundar todo o planeta. Pouco importa a verdade histórica, o fato concreto, as alianças sem fim das colônias sionistas com os impérios de turno, com preferência para o “mandato” britânico e imanência dentro do Congresso dos EUA.

Se o polonês David Grün (apelidado de David Ben Gurion) organizava a informação colonial e forças paramilitares auxiliando os cruzados ingleses, seus descendentes como governadores coloniais, colocam a população leal não europeia como ponta de lança da limpeza étnica. Mizrahins e afrodescendentes são a bucha de canhão dos invasores, como os regimentos coloniais britânicos empregavam gurkhas e sikhs contra punjabis, hindis e tâmiles. Manobra antiga, manipulada através da lente de última geração financiada como “ajuda militar” vinda do Departamento de Estado.

As mesmas câmeras que abordam a tudo como “disputa narrativa”, os embates sem fim com os “sionistas de esquerda” (eu mesmo já entrei nessa vala comum e não saí sem estar sujo), ganham ainda mais intensidade quando o inimigo cria um ministério para tal. Atende eufemisticamente como Ministério de Assuntos Estratégicos e Diplomacia Pública de Israel e acusa a tudo e a todos que combatem os invasores como “antissemitas”.

Quase sempre é a mesma ladainha. Europeus de fé judaica e apoiadores da ocupação da Palestina acusam a semitas ou descendentes de semitas de serem “antissemitas”! E enquanto do lado de cá do oceano entramos em embates de palavras, em Al Quds o inimigo assassina uma repórter, autêntica “tecelã das letras”.

A imortalidade da Voz da Palestina 

Toda a guerra de propaganda do inimigo, empregando termos em inglês como “greenwashing”, “pinkwashing”, cai por terra quando o caixão de Shireen é atacado, e esta agressão é transmitida em escala planetária. O projeto colonial atrai capitais transnacionalizados e tem penetração em importantes centros de decisão, como Washington, Londres, mas também Moscou e Berlim. No mundo europeu e anglo-saxão, faz o que pode para se colocar como aliado fundamental, ou grupo de pressão imbatível na política doméstica das democracias ocidentais.

Shireen era cristã, mulher, independente, profissional consagrada, voz ativa e altiva. Conhecida mundialmente, venerada no Mundo Árabe e Islâmico. A repórter da Al Jazeera carregava em si toda a quebra de estereótipos muito bem trabalhados pelos invasores. As famílias palestinas são “atrasadas”, inimigas do progresso e do ocidente, o arabismo é anti-cristão e outras mentiras mais. De novo, pouco importa para o caluniador lembrar que o pan-arabismo, o movimento nacional árabe e as lutas de libertação nasceram umbilicalmente ligadas a famílias cristãs, como de Abu Akleh, Habash, Hawatmeh, Aflaq, Zaydan, Said e centenas de outras.

A entidade sionista se porta como a iluminada civilização francesa, celebrando a libertação de Paris dos ocupantes nazistas, e logo depois torturando árabes e vietnamitas, empregando até mercenários que serviram aos antigos inimigos. O cinismo colonial não tem fim nem limite, e menos ainda a defesa do “privilégio histórico” que denomina de “conflito” uma luta popular tão assimétrica como a greve geral seguida da Grande Revolta Árabe na Palestina contra os tiranos do Mandato Britânico e seus protegidos europeus.

Choramos nossas mártires e seguimos. A Palestina e o Bilad al-Sham são imortais, assim como a Voz da Palestina através do exemplo de Shireen Abu Akleh.

Bruno Beaklini (Bruno Lima Rocha Beaklini), militante socialista libertário de origem árabe-brasileira, cientista político e professor de relações internacionais e jornalismo. Escreve semanalmente para o MEMO e tem seus textos publicados regularmente em portais como IHU, GGN, Repórter Popular, Semana On, El Coyote, Blog de Canhota, Brasil de Fato, Fórum, Outras Palavras, Brasil Debate e artigos especiais na Carta Maior. Tem presença frequente em rádios latino-americanas e de língua espanhola, além de participação em entrevistas para Hispan TV, Press TV, RT e Radio Sputnik. Editor dos canais do portal Estratégia & Análise.

Contato com o autor:

Fonte GGN

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