Nossa civilização-atoleiro – A verdade olho no olho

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Coronavírus mata mais um médico na China | Mundo | G118/5/2020, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation

Onde se vê que o presidente Lula e Alastair Crooke tiveram exatamente a mesma ideia, no mesmo momento: o coronavírus traz-nos a oportunidade de analisar também o impossível, como saída para o desespero em que a humanidade vai mergulhando.
É ideia que nasceria do espírito empenhado de um Sun Tzu, de um Mao Tse Tung, de um Deng Xiaoping.

Mas nesse desgraçado Brasil pós-Bolsonaro e pós-STF-com-tudo, o imbecilismo bem-pensante acha que não…
Que NINGUÉM poderia nem pensar em pensar em arrancar do coronavírus algum avanço.
E decidiram que o presidente Lula teria de pedir desculpas (o que é ruim), e ele pediu (o que é ainda pior).
Aí vai o artigo publicado em Strategic Culture Foundation, para conhecimento de todos.
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Primeiro, a conclusão: se não se resolver a biologia, a economia não se recuperará. Estamos nesse ponto, no momento. Uma forma mentis excepcionalista vedada levou a um – surpresa, surpresa – resultado padrão ‘excepcionalista’. Temos simultaneamente um dilúvio de mortes evitáveis e, claramente, quantidade assustadora de danos econômicos possivelmente evitáveis (embora, sim, alguns desses danos estivessem destinados a acontecer logo, fosse como fosse).

É o pior dos dois mundos. Inicialmente morosos em mitigar a pandemia, de medo de ferir a economia, líderes políticos (particularmente na anglosfera) implementaram (meias) medidas tardias (quando o fogo do vírus já chegara ao mato seco) e agora estão em pânico com os custos que só crescem associados aos seus erros iniciais – e assim forçam para tentar ‘abrir’ o mais cedo que se atrevam a tentar.

Mas a biologia não está resolvida, e a tensão de tentar apontar simultaneamente em direções opostas está incendiando uma fogueira específica, furiosa, política.

Na guerra norte-americana entre ‘Azul e Vermelho’ [Democratas e Republicanos], alguns estados estão aplicando um retorno ao trabalho (ameaçando com duras penas os que faltem ao trabalho), enquanto outros ordenam medidas exatamente opostas: ordens estritas para ‘ficar em casa’. Esse absurdo alcança um pico, como por exemplo na pequena cidade norte-americana de Bristol, metade da qual fica no Tennessee e a outra metade, na Virginia, dois estados, um ao lado do outro. Metade dos cidadãos ‘animados’ numa economia aberta; metade hibernando em lockdown. Não surpreende que as pessoas estejam perdendo a confiança na sabedoria de seus líderes.

Agora, os fatos estão consumados – guerra política. ‘Metade dos patriotas’ veem o lado ‘Azul’ manter deliberadamente a economia em lockdown – para dificultar a vida dos Vermelhos em novembro. Mas também veem o coronavírus como uma agenda globalista sintética aplicada e exagerada, para assim roubar as liberdades do povo. E nessa fermentação fétida, o candidato Azul presuntivo e o ex-presidente dos EUA inter alia, estão sendo explicitamente ‘derrubados’, desmascarados como ‘Meio Traidores’ (pelo papel que tiveram no Obamagate).

E, com os ânimos domésticos incendiados, o pensamento de bolha sem válvula de escape exige que se ofereçam distrações – sempre culpando estrangeiros – para impedir que os Democratas comecem a acumular pontos de vantagem culpando o governo Trump pela resposta à crise do Covid-19.

Assim, relações com a China são jogadas despenhadeiro abaixo. Pendentes estão também os projetos de lei da Lei dos Direitos Humanos dos Uigures e da Lei de Responsabilização e Punição pelo Covid-19 [ing. Uyghur Human Rights Act e Covid-19 Accountability Act – ambos à espera de serem aprovados e convertidos em lei. Esse último projeto de lei, se aprovado, dará a Trump 60 dias para garantir que a China pague, acusada por algum corpo declarado independente, como a ONU, pelas circunstâncias nas quais surgiu o vírus, que feche todos os seus mercados onde se vendem animais selvagens e que liberte todos os ‘ativistas pró-democracia’ de Hong Kong recentemente presos.

Se nada disso for feito, Trump estará autorizado a impor sanções como congelamento de bens, proibição de viagens, revogação de vistos e restrições ao acesso de empresas chinesas ao sistema bancário e aos mercados de capital dos EUA. Mas nenhuma dessas duas leis – por incendiárias que sejam – tem a mesma capacidade ígnea do lento ‘retorno’ de Washington à campanha de ‘Uma só China’ em relação a Taiwan. Aí se chega ‘à’ linha vermelha. A China já está furiosa, e pode decidir não continuar a se curvar por muito mais tempo, para ‘atender ao vento norte-americano’.

Mas esse não é o fim do caso. Os tempos são incertos. O povo norte-americano tem humor caprichoso. Assim as demais ferramentas para garantir sucesso em novembro exigem que Trump mostre que é melhor ‘amigo de Israel’ que Obama foi (permitindo – inclusive encorajando – a anexação de parte ainda maior da Cisjordânia); e que é tão duro contra a Rússia quanto Obama foi: “Meu trabalho é fazer [da Síria] um atoleiro para os russos” – como o Enviado Especial dos EUA James Jeffries, explicou semana passada. Similarmente, exige também fazer do Iraque um atoleiro para o Irã (e assim desfazer o erro de Obama de sair ‘cedo demais’ do Iraque) – e voltar a chicotear o Irã com sanções do Conselho de Segurança da ONU (como diz Brian Hook), de modo a fazer o Irã sofrer tão terrivelmente a ponto de aceitar um novo acordo nuclear – outro, muito melhor que o de Obama.

Ora… feitas as contas, não haveria aí perfeita receita para violência e tumulto? Para maior anemia econômica (à medida que as raízes econômicas globais são arrancadas do próprio solo e afastadas)? Ah, sim, há – claramente há. A próxima eleição nos EUA é vista por Vermelhos e Azuis como risco existencial. Talvez seja a eleição mais carregada de maus presságios, de toda a história dos EUA.

Serão ‘reais’ todas essas ameaças? Talvez não – mas de a China ser responsabilizada pelo vírus e jogada despenhadeiro abaixo; e de acontecer a anexação da Cisjordânia e do Vale do Jordão são ameaças reais. Ambas jogam a favor de interesses eleitorais domésticos nos EUA.

Pois o jornalista israelense Gideon Levy no Haaretz, escrevendo sobre Israel anexar terras palestinas, põe todos esses eventos tenebrosos, sob luz muito diferente: A Anexação – embora “castigo ultrajante para os ocupados” – é algo que, de alguma forma, “porá fim às mentiras e exigirá que todos olhem a verdade diretamente nos olhos. E a verdade é que a ocupação está aqui para ficar. Que jamais houve qualquer intenção de fazer coisa diferente”. A anexação, escreve Levy, vai tomando forma como único meio para pôr fim ao impasse, único abalo que pode pôr fim ao status quo de desespero no qual nos encurralamos, e que já não pode levar a qualquer bem.”

“Precisamente quem mais se opõe à anexação, Shaul Arieli, é quem melhor descreve suas vantagens” – Levy opina contraintuitivamente. “Em recente artigo (Haaretz, ed. em hebraico, 24 de abril), Arieli viu que a Autoridade Palestina entraria em colapso; os Acordos de Oslo seriam cancelados; que a imagem Israel sofreria dano e que outro ciclo de derramamento de sangue provavelmente eclodiria. São perigos reais que não se podem tomar levianamente. Mas simultaneamente [Arieli] diz: “A anexação seria duro golpe contra os pontos de equilíbrio da atual situação, e abalaria essa frágil falsa estabilidade”.

Israel que anexe! Assim se exporá à luz do dia a vergonha que é esse todo esse falso processo de paz. Esse processo “já criou situação irreversível (…) porque, sem a remoção (dos colonos, o que jamais acontecerá), só restarão aos palestinos os Bantustãos: nem estado nem sequer alguma caricatura de estado” – escreve Levy. “Melhor olhar a verdade olho no olho”.

E não é isso precisamente – ao seu modo de tudo separar – o que o coronavírus está fazendo quanto à geopolítica mais ampla – ao fazer cascatear umas sobre as outras tantas fragilidades, abalando tantos equilíbrios tão precários, como o da União Europeia?

O coronavírus está-se mostrando um ‘pivô da anexação’ para a política global. Os “castigos ultrajantes” que os EUA infligiram aos palestinos, à Síria, à Rússia, à China… etc? Não é a mesma coisa? O mesmo que diz Lewy, embora em contexto de anexação?

A mentira de que os EUA e a economia global estariam a ponto de ‘dar a volta por cima’, tão logo se levantem as medidas de mitigação do vírus; a mentira de que Covid-19 seria ou golpe (não passa de mais uma ‘gripezinha’); ou que estaria sendo ‘superestimado’; a mentira de que EUA e Europa teriam estruturas políticas e econômicas resilientes – e a mentira de que, tão logo ‘passe’ a doença que se conhece como Covid, todos voltaremos a um mundo exatamente como havia antes?

Gideon Levy sugere que “temos de parar de temê-la [a anexação]. De fato, temos de parar de temer duas coisas – a anexação e o coronavírus. E até dizer ‘sim’ a eles. O especialista em probabilística estratégica Nassim Taleb pensa de modo similar: o coronavírus é uma oportunidade. “Façam um reset total profissionalmente, economicamente e pessoalmente. Trate a coisa como se estivesse aí para ficar, e trate de sobreviver a ela”.

É modelar as coisas como única saída que nos livre de nossos múltiplos bloqueios. Mas essa ‘saída’ impõe que sejamos capazes de olhar diretamente para a verdade, olho no olho. E nossos processos de pensamento foram de tal modo calcinados no forno intelectual do racionalismo que a massa de que eram feitos secou, torrou; perdeu sabor, vida e verdade e converteu-se em pouco mais que uma porção mal servida de egoísmo.

Carl Jung conta a história do “escaravelho dourado”. É a história de uma jovem paciente que se mostrava psicologicamente inacessível. O processo analítico estava obstruído por algo que Jung descreve como um estado de univisão psíquica que se manifestava na forma de racionalidade dominante. Ela sempre sabia mais e melhor. “A educação lhe garantira uma arma idealmente adequada a esse objetivo, a saber, um racionalismo cartesiano altamente cultivado”. Quando todas as tentativas de Jung para amolecer o racionalismo dela provaram-se infrutíferas, Jung percebeu-se esperando “que algo inesperado e irracional aparecesse, algo que explodisse a retorta dentro da qual ela se fechara”.

“Um dia, eu estava sentado à sua frente”, Jung escreveu, (ela) “com as costas para a janela (…) Na noite anterior ela sonhara que alguém lhe dera um escaravelho dourado, uma joia cara. Mas enquanto ela contava o sonho, ouvi algo que batia no vidro da janela (…) um inseto (…) Um besouro escaravelho, cuja coloração verde iridescente o fazia parecer dourado (…) Entreguei o besouro a minha paciente e lhe disse: ‘Aqui está seu escaravelho’.”

Jung relata que, com o choque da intrusão completamente repentina, vinda não se sabia de onde, “o ser natural dela conseguiu atravessar a armadura [da racionalidade férrea e] a transformação pôde afinal começar”.

Não só os pacientes de Jung, mas também as civilizações, tornaram-se prisioneiras cada uma da própria retorta intelectual selada. Quando a peça Rãs, de Aristófanes foi apresentada na Grande Dionisíada em 405 BC, já era evidente a todos que a civilização ateniense degenerara. Rãs, apesar de ser comédia ‘escrachada’, faz sombria reflexão sobre o triste futuro de Atenas. O tema era que, dado que os três grandes poetas atenienses estavam mortos, a única salvação possível para Atenas seria enviar Dionísio ao submundo dos mortos com a missão de trazer de volta, com ele, o maior daqueles poetas. Quando Dionísio chegou ao seu destino, ‘a sombra de Eurípedes’ perguntou-lhe para que, afinal, tanto queria levar de volta um poeta?

Dionísio responde “para salvar Atenas, é claro”.

Por quê? Porque a mais importante função dessas peças era sempre desafiar e expor os falsos mitos dos quais todos vivemos. Rebentar a bolha – e oferecer compreensão de nossos sofrimento e de nossa experiência humana, de tal modo que se torne inteligível, mas também que alcance camadas mais profundas da experiência humana acumulada que se guarda na psique – permite-nos imaginar como solução o ‘impossível’.

Com Eurípides infortunadamente ainda habitante do submundo, temos de depender do menos cordial Coronavírus para chocar e nos assustar e assim nos forçar a sair de nossa retorta intelectual – para consumarmos o casamento alquímico (reunir num todo) das partes separadas de nossa psique que cozinhou demais.

Traduzido por Vila Mandinga


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