“Nós trouxemos o conflito ao ponto de não retorno”

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Vladimir Kultygin

Voz da Rússia, Moscou 26/09/2014

islamismo, entrevista, estado islamico

Foto: SXC.hu

As raízes da atual vaga de violência no Oriente Médio devem ser procuradas inclusive nas ações dos políticos europeus e norte-americanos que ainda não conseguem resolver o problema dos imigrantes e refugiados de países árabes e do Magrebe. Esta é a opinião do historiador e arabista belga Pieter van Ostaeyen que ele compartilhou com um repórter da agência noticiosa Rossiya Segodnya.

– Parece que o conflito no Oriente Médio já se tornou um problema bastante europeu.

– Hoje, os holandeses, os belgas e os franceses já estão fortemente envolvidos neste conflito. Na quarta-feira foi decapitado o refém francês do Jund al-Khilafa (Exército do Califado), os extremistas divulgaram um vídeo com esta execução. O fato de que a Bélgica e a Holanda se estão juntando à guerra contra o Estado Islâmico (EI), vai se voltar contra nós. Devemos desconfiar não só dos sujeitos que estão agora lutando na Síria e podem voltar, mas também dos elementos radicais aqui na Europa que são capazes de realizar ataques fortes. Cá em Bruxelas, em Antuérpia, é muito fácil comprar uma metralhadora ou um fuzil Kalashnikov. Por isso sim, eu acho que este é realmente um problema sério que no futuro próximo irá crescer.

– Na mídia belga aparece muitas vezes, no contexto dos acontecimentos na Síria, o nome de Fouad Belkacem, chefe da organização Sharia4Belgium (Sharia para a Bélgica). Que papel desempenhou essa organização no recrutamento de islamistas belgas para a Síria?

– A organização Sharia4Belgium teve realmente um papel de destaque. No final de agosto, eu escrevi em meu blog sobre os belgas na Síria apresentando dados atualizados que mostram a que grupos armados operando em território da Síria se juntaram membros de Sharia4Belgium. A maioria dos belgas que hoje estão lutando na Síria são membros do EI. E muitos deles eram membros de Sharia4Belgium. Essa organização já não existe: no final de 2012 a Sharia4Belgium foi dissolvida. Mas suas ideias continuam vivas. Na Bélgica existe um grupo cujo nome significa algo como “Estilo de vida”. A ideia deles é viver com a ideia da jihad, criar um califado na Bélgica. Eles queriam criar um estado islâmico aqui na Bélgica, e eles foram para a Síria para participar nas atividades de grupos como Jabhat al-Nusra, Ahrar al-Sham. Todos esses caras deixaram seus grupos e se juntaram ao Estado Islâmico do Iraque e do Levante. Agora, novos belgas deixam a Europa e geralmente vão direto para o EI.

– Por que razão o Islã radical atrai jovens belgas?

– Principalmente, trata-se de um problema de integração e assimilação de imigrantes muçulmanos na Bélgica. Nas décadas de 1960-1970, convidamos multidões de imigrantes de Marrocos, Argélia, Tunísia, Turquia. Essas pessoas trabalhavam na indústria metalúrgica e nas minas de carvão. Mas o governo não tem feito nada para a integração das pessoas da segunda, terceira e agora já quarta geração. Eles sempre sentiram que o governo belga não os nota. Alguns desses radicais acreditam que os belgas e o governo belga discriminam os muçulmanos. Esta é uma das razões principais.

– Quer dizer que isso é uma espécie de reação às políticas das autoridades europeias?

– Sim, isso é como colocar uma panela de água a ferver, em algum momento, a água começa a ferver e a transbordar. Algo parecido está acontecendo agora. Chegamos ao ponto de ebulição. Cada vez mais jovens estão saindo daqui dizendo que é tudo por causa da Bélgica, por causa da política belga. Vemos a mesma retórica em França, na Holanda, no Reino Unido, na Dinamarca, na Suécia. Eles justificam suas ações dizendo que em casa não têm nenhumas chances, que a democracia ocidental na realidade não é nenhuma democracia, que eles querem viver num estado islâmico, que apoia as leis islâmicas.

– Quais são as perspetivas? O conflito pode se acalmar?

– Agora, depois dos ataques aéreos dos Estados Unidos e da coalizão às posições do EI no Iraque, a Jabhat al-Nusra começou novamente a falar sobre cooperação com o Estado Islâmico, para ajudá-lo a lutar contra os Estados Unidos. Eu não sei se isso vai realmente acontecer, mas é um fato que nós, o Ocidente, estamos lidando com um inimigo poderoso e perigoso. Vamos criar um problema ainda maior do que aquele que já era. Deixamos a situação na Síria apodrecer por três anos e meio, e agora estamos novamente nos envolvendo no conflito por causa de terem sido decapitados jornalistas norte-americanos. Os Estados Unidos baseiam suas ações nisso, como eu acabei de perceber. Eu acredito que haverá mais homicídios, como o assassinato de hoje de um refém francês na Argélia, haverá mais raptos e mortes. E veremos também mais e maiores ameaças ao Ocidente na Europa. E haverá mais ataques no estilo de Mehdi Nemmouche. Eu acredito que agora existe uma ameaça bastante grande.

– Mas não é só da Bélgica e países vizinhos que pessoas vão lutar no Oriente Médio, no lado dos terroristas?

– Segundo os dados que temos hoje, na Síria estão lutando pessoas de 18-19 países. Para todos a razão é geralmente a mesma. Vejamos, por exemplo, Marrocos e Tunísia. Lá, as pessoas acreditam que estão vivendo numa ditadura, viram as costas para o seu regime e vão lutar pela “terra santa”. Todos eles querem contribuir para a criação de um estado islâmico, um califado global. Vídeos do EI e Jabhat al-Nusra também são uma espécie de forma de recrutamento. Esses vídeos não apenas causam medo, mas também inspiram os jovens que se sentem atraídos pela crueldade brutal. Eu não digo todos, claro, mas alguns buscam aventuras, querem viver num filme de Rambo.

– Como você descreveria a situação atual em geral?

– Samuel Huntington chamou isso em seu livro de “choque de civilizações”. Durante a Guerra Fria, os nossos inimigos eram principalmente vocês, os russos. Vocês eram “comunistas”, e nós eramos o “mundo livre”. Depois, após o colapso do comunismo, nós encontramos um novo inimigo, que foi o Islã. E parece-me que, seguindo tal linha, o Ocidente e a comunidade islâmica – não só o Oriente Médio mas também a comunidade muçulmana europeia – alcançarão um novo nível de ódio, discriminação e violência. Parece-me que nós trouxemos o conflito a tal escala que já não temos como voltar. Precisamos encontrar uma saída, mas isso vai ser muito, muito, muito difícil.

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