Michael Hudson: O colapso da civilização moderna e o futuro da humanidade

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Por Michael Hudson | Tradução: Vitor Costa

O maior desafio enfrentado pelas sociedades sempre foi como conduzir o comércio e o crédito sem permitir que comerciantes e credores ganhem dinheiro explorando seus clientes e devedores. Toda a Antiguidade reconhecia que o impulso para adquirir dinheiro é compulsivo e tende a ser explorador e, portanto, socialmente prejudicial. Os valores morais da maioria das sociedades opunham-se ao egoísmo, sobretudo na forma de avareza e vício em riqueza, que os gregos chamavam de philarguria – amor ao dinheiro, obsessão pela prata. Indivíduos e famílias que se entregavam ao consumo exagerado tendiam ao ostracismo, porque se reconhecia que a riqueza muitas vezes era obtida à custa de outros, especialmente os fracos.

O conceito grego de “hybris” envolvia o comportamento egoísta causador de dano aos outros. A avareza e a ganância seriam punidas pela deusa da justiça Nemesis, que tinha muitos antecedentes do Oriente Próximo, como Nanshe de Lagash na Suméria, protegendo os fracos contra os poderosos, os devedores contra os credores.

Essa proteção é o que os governantes deveriam prover, ao servir aos deuses. É por isso que os governantes estavam imbuídos de poder suficiente para evitar que as populações fossem reduzidas à dependência e subordinação às dívidas. Chefes, reis e templos estavam encarregados de oferecer crédito e terras agrícolas aos pequenos proprietários em troca de serviço militar e trabalho gratuito. Os governantes que se comportassem de forma egoísta estavam sujeitos a serem destituídos, seus súditos poderiam fugir, ou apoiar líderes rebeldes ou invasores estrangeiros que prometessem cancelar dívidas e redistribuir terras de forma mais equitativa.

A função mais básica da realeza do Oriente Médio era proclamar a “ordem econômica” e o cancelamento de dívidas, expresso por exemplo no Ano do Jubileu do Judaísmo. Não havia “democracia” no sentido de os cidadãos elegerem seus líderes e administradores, mas a “realeza divina” era obrigada a alcançar o objetivo econômico implícito da democracia: “proteger os fracos dos poderosos”.

O poder real era apoiado por templos e sistemas éticos ou religiosos. As principais religiões que surgiram em meados do primeiro milênio antes de Cristo, como as de Buda, Lao-Tzu e Zoroastro, sustentavam que os impulsos pessoais deveriam estar subordinados à promoção do bem-estar geral e da ajuda mútua.

O que não parecia provável há 2.500 anos era que uma aristocracia de senhores da guerra conquistaria o mundo ocidental. Ao criar o que se tornou o Império Romano, uma oligarquia assumiu o controle da terra e, mais adiante, do sistema político. Aboliu a autoridade real ou cívica, transferiu a carga fiscal para as classes mais baixas e endividou a população e os negócios.

Isso foi feito em uma base puramente oportunista. Não houve nenhuma tentativa de defender ideologicamente o processo. Não havia indícios de um Milton Friedman arcaico emergindo para popularizar uma nova ordem moral radical celebrando a avareza, alegando que a ganância é o que impulsiona as economias, convencendo a sociedade a deixar a distribuição de terra e dinheiro para “o mercado” controlado por corporações e agiotas em vez de regulamentação comunalista por governantes e templos palacianos – ou, por extensão contemporânea, o socialismo. Palácios, templos e governos civis eram credores. Eles não eram forçados a tomar empréstimos para funcionar e, portanto, não eram submetidos às demandas políticas de uma classe de credores.

Mas colocar a população, os negócios e até os governos em dívida com uma elite oligárquica é precisamente o que ocorreu no Ocidente, que agora está tentando impor a variante moderna desse regime econômico baseado na dívida – o capitalismo financeiro neoliberal centrado nos EUA – ao mundo inteiro. É disso que trata a Nova Guerra Fria de hoje.

Pela moralidade tradicional das primeiras sociedades, o Ocidente – a começar na Grécia clássica e na Itália por volta do século VIII a.C. – era bárbaro. O Ocidente estava de fato na periferia do mundo antigo quando comerciantes sírios e fenícios trouxeram a ideia de dívidas com juros do Oriente Próximo para sociedades que não tinham tradição real de cancelamentos periódicos de dívidas. A ausência de um forte poder palaciano e da administração do poder permitiu o surgimento de oligarquias credoras em todo o mundo mediterrâneo.

A Grécia acabou sendo conquistada primeiro pela oligárquica Esparta, depois pela Macedônia e finalmente por Roma. É o avarento sistema legal pró-credor desta última que moldou a civilização ocidental subsequente. Hoje, um sistema financeirizado de controle oligárquico cujas raízes remontam a Roma está sendo apoiado e, de fato, imposto pela diplomacia da Nova Guerra Fria dos EUA, força militar e sanções econômicas aos países que buscam resistir.

O assalto oligárquico da antiguidade clássica

Para entender como a civilização ocidental se desenvolveu de forma que continha as sementes fatais de sua própria desigualdade econômica, declínio e queda, é necessário reconhecer que, quando a Grécia e Roma clássicas aparecem no registro histórico, uma idade das trevas havia interrompido a vida econômica, do Oriente Médio ao Mediterrâneo oriental, de 1200 a cerca de 750 a.C. Uma mudança climática aparentemente causou um despovoamento severo, acabando com as economias da Era Micênica, e a vida voltou à dimensão local durante esse período.

Algumas famílias criaram autocracias semelhantes à máfia, monopolizando a terra e vinculando o trabalho a ela por várias formas de clientela coercitiva e dívida. Acima de tudo estava o problema da dívida com juros, que os comerciantes do Oriente Próximo trouxeram para as terras do Egeu e do Mediterrâneo – sem os cancelamentos de dívidas correspondentes.

Desta situação surgiram os “tiranos” reformadores gregos nos séculos VII e VI a.C. de Esparta a Corinto, Atenas e as ilhas gregas. A dinastia de Cypselus em Corinto e novos líderes semelhantes em outras cidades teriam cancelado as dívidas que mantinham os devedores em servidão na terra, redistribuído os lotes para os cidadãos e realizado gastos de infraestrutura pública para construir o comércio, abrindo caminho para o desenvolvimento da cidadania e para os rudimentos da democracia. Esparta promulgou as reformas de Licurgo contra o consumo conspícuo e o luxo. A poesia de Arquíloco na ilha de Paros e Sólon de Atenas denunciavam o desejo de riqueza pessoal como viciante, levando à arrogância e ferindo os outros – o que seria punido por Nêmesis, deusa da justiça. Havia éticas semelhantes nas civilizações babilônica, judaico e de outras religiões.

Roma teve sete reis lendários (753-509 a.C.), que teriam atraído imigrantes e impedido uma oligarquia de explorá-los. Mas as famílias ricas derrubaram o último rei. Não havia nenhum líder religioso para verificar seu poder, pois as principais famílias aristocráticas controlavam o sacerdócio. Não havia líderes que combinassem a reforma econômica doméstica com uma escola religiosa, e não havia tradição ocidental de cancelamento de dívidas, como Jesus defenderia ao tentar restaurar o Ano do Jubileu à prática judaica. Havia muitos filósofos estoicos, e locais religiosos anfictiônicos como Delfos e Delos, que expressavam uma religião de moralidade pessoal para evitar a arrogância, ou hubris.

Os aristocratas de Roma criaram uma Constituição e um Senado antidemocráticos, e leis que tornaram a servidão por dívida – e a consequente perda de terras – irreversível. Embora a ética “politicamente correta” fosse evitar o comércio e o empréstimo de dinheiro, ela não impediu que uma oligarquia surgisse para tomar a terra e reduzir grande parte da população à escravidão. Por volta do século II a.C. Roma havia conquistado toda a região do Mediterrâneo e da Ásia Menor, e as maiores corporações eram os publicanos cobradores de impostos, que teriam saqueado as províncias de Roma.

Sempre houve maneiras para os ricos agirem de forma hipócrita em harmonia com a ética altruísta, evitando a ganância comercial enquanto se enriquecem. Os ricos da antiguidade ocidental foram capazes de chegar a um acordo com essa ética evitando empréstimos diretos e comércio, atribuindo esse “trabalho sujo” a seus escravos ou aos homens livres, e gastando a receita de tais atividades em filantropia (que se tornou um espetáculo esperado em campanhas eleitorais de Roma). E depois que o cristianismo se tornou a religião romana no século IV d.C., o dinheiro foi capaz de comprar a absolvição por meio de doações generosas à Igreja.

O legado de Roma e o imperialismo financeiro do Ocidente

O que distingue as economias ocidentais das sociedades anteriores do Oriente Médio e da maior parte da Ásia é a ausência de perdão da dívida para restaurar o equilíbrio de toda a economia. Todas as nações ocidentais herdaram de Roma a “santidade” pró-credor dos princípios da dívida que priorizam as exigências dos credores e legitimam a transferência permanente, aos credores, das propriedades dos devedores inadimplentes. Da Roma antiga à Espanha dos Habsburgos, à Grã-Bretanha imperial e aos Estados Unidos, as oligarquias ocidentais apropriaram-se da renda e da terra dos devedores, enquanto transferiam os impostos para o trabalho e ao negócios. Isso causou “austeridade” doméstica e levou as oligarquias a buscar a prosperidade por meio da conquista externa, para obter dos estrangeiros o que não era produzido pelas economias domésticas endividadas e sujeitas a princípios legais sempre a favor dos credores.

A Espanha do século XVI saqueou grandes carregamentos de prata e ouro do Novo Mundo, mas essa riqueza não parou em suas mãos, dissipada na guerra em vez de ser investida na economia doméstica. Deixados com uma economia fortemente desigual e polarizada, além profundamente endividada, os Habsburgos perderam sua antiga possessão, a República Holandesa, que prosperou como uma sociedade menos oligárquica e com mais poder como credora do que como devedora.

A Grã-Bretanha seguiu uma ascensão e queda semelhantes. A I Guerra Mundial deixou-a com pesadas dívidas bélicas devidas à sua própria ex-colônia, os Estados Unidos. Impondo austeridade anti-trabalhista internamente, na tentativa de pagar essas dívidas, a área de influência da libra esterlina britânica posteriormente tornou-se satélite do dólar americano sob os termos do Lend-Lease na Segunda Guerra Mundial e do British Loan de 1946. As políticas neoliberais de Margaret Thatcher e Tony Blair aumentaram drasticamente o custo de vida ao privatizar e monopolizar a habitação e a infraestrutura públicas, acabando com a antiga competitividade industrial da Grã-Bretanha ao elevar o custo de vida e, portanto, os níveis salariais.

Os Estados Unidos seguiram uma trajetória semelhante de superação imperial às custas de sua economia doméstica. Seus gastos militares no exterior a partir de 1950 forçaram a desvinculação entre o dólar e o ouro, em 1971. Essa mudança teve o benefício inesperado de inaugurar um “padrão do dólar” que permitiu à economia dos EUA e sua diplomacia militar obter uma carta branca do resto do mundo, acumulando dívidas em dólares com os bancos centrais de outras nações sem qualquer restrição prática.

A colonização financeira da pós-União Soviética nos anos 1990 por meio da “terapia de choque” da privatização, seguida pela admissão da China na Organização Mundial do Comércio em 2001 – com a expectativa de que este país, como a Rússia de Yeltsin, se tornasse uma colônia financeira dos EUA – levou a economia dos Estados Unidos a se desindustrializar, transferindo o emprego para a Ásia. A tentativa de forçar a submissão aos EUA, que inaugurou a atual Nova Guerra Fria levou a Rússia, a China e outros países a romper com o sistema de comércio e investimento dolarizado, deixando os Estados Unidos e os países europeus da OTAN sob o tacão da austeridade e aprofundando a desigualdade à medida que os índices de dívida são crescentexs para indivíduos, corporações e órgãos governamentais.

Faz apenas uma década que o senador John McCain e o presidente Barack Obama caracterizaram a Rússia como apenas um posto de gasolina com bombas atômicas. O mesmo poderia ser dito agora dos Estados Unidos, baseando seu poder econômico mundial no controle do comércio de petróleo do Ocidente, enquanto seus principais excedentes de exportação são colheitas agrícolas e armas. A combinação de alavancagem da dívida financeira e privatização tornou os Estados Unidos uma economia de alto custo, perdendo sua antiga liderança industrial, assim como a Grã-Bretanha. Os Estados Unidos estão agora tentando viver principalmente de ganhos financeiros (juros, lucros sobre investimentos estrangeiros e criação de crédito do banco central para inflacionar ganhos de capital), em vez de criar riqueza por meio de seu próprio trabalho e indústria. Seus aliados ocidentais procuram fazer o mesmo. Eles tratam esse sistema dominado pelos EUA como “globalização”, mas é simplesmente uma forma financeira de colonialismo – apoiada com a habitual ameaça militar de força e “regime change” encoberta para impedir que os países se retirem do sistema.

Este sistema imperial baseado nos EUA e na OTAN procura endividar os países mais fracos e forçá-los a entregar o controle de suas políticas ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial. Obedecer ao “conselho” neoliberal antitrabalhista dessas instituições leva a uma crise da dívida que força a depreciação da taxa de câmbio do país devedor. O FMI então os “resgata” da insolvência com a “condicionalidade” de vender os bens públicos e transferir o peso impostos, dos ricos (especialmente investidores estrangeiros) para os trabalhadores.

A oligarquia e a dívida são as características definidoras das economias ocidentais. Os gastos militares estrangeiros dos Estados Unidos e as guerras quase constantes deixaram seu próprio Tesouro profundamente endividado com governos estrangeiros e seus bancos centrais. Os Estados Unidos estão, portanto, seguindo o mesmo caminho pelo qual o imperialismo espanhol deixou a dinastia dos Habsburgos em dívida com os banqueiros europeus, e a participação da Grã-Bretanha em duas guerras mundiais na esperança de manter sua posição mundial dominante a deixou endividada e acabou com sua antiga vantagem industrial. A crescente dívida externa dos Estados Unidos tem sido sustentada por seu privilégio de “moeda-chave” de emitir sua própria dívida em dólar sob o “padrão do dólar” sem que outros países tenham qualquer expectativa razoável de serem pagos – exceto em ainda mais “dólares de papel”.

Essa afluência monetária permitiu que a elite gerencial de Wall Street aumentasse as despesas rentistas dos Estados Unidos pela financeirização e privatização, aumentando o custo de vida e dos negócios, como ocorreu na Grã-Bretanha sob as políticas neoliberais de Margaret Thatcher e Tony Blair. As companhias industriais responderam mudando suas fábricas para economias de baixos salários para maximizar os lucros. Mas à medida que a América se desindustrializa com a crescente dependência de importações da Ásia, a diplomacia dos EUA está buscando uma Nova Guerra Fria que está levando as economias mais produtivas do mundo a se desvincularem da órbita econômica dos EUA.

O aumento da dívida destrói as economias quando não está sendo usado para financiar novos investimentos de capital em meios de produção. A maior parte do crédito ocidental hoje é criado para inflar os preços de ações, títulos e imóveis, não para restaurar a capacidade industrial. Como resultado dessa abordagem de dívida sem produção, a economia doméstica dos EUA foi sobrecarregada por dívidas devidas à sua própria oligarquia financeira. Apesar do “almoço grátis” da economia americana na forma de aumento contínuo de sua dívida oficial com bancos centrais estrangeiros – sem perspectiva visível de pagamento de sua dívida internacional ou doméstica – sua dívida continua a se expandir e a economia se tornou ainda mais nivelada no débito. Os EUA polarizaram-se com uma riqueza extrema concentrada no topo, enquanto a maior parte da economia está profundamente endividada.

O fracasso das democracias oligárquicas em proteger a população endividada em geral
O que tornou as economias ocidentais oligárquicas é o fracasso em proteger os cidadãos de serem levados à dependência de uma classe credora proprietária de propriedades. Essas economias mantiveram as leis de dívida baseadas em credores de Roma, principalmente a prioridade das reivindicações dos credores sobre a propriedade dos devedores. O 1% credor tornou-se uma oligarquia politicamente poderosa, apesar das reformas políticas democráticas nominais que expandem os direitos de voto. As agências reguladoras governamentais foram capturadas e o poder tributário tornou-se regressivo, deixando o controle econômico e o planejamento nas mãos de uma elite rentista.

Roma nunca foi uma democracia. E de qualquer forma, Aristóteles reconheceu que as democracias evoluiriam mais ou menos naturalmente para oligarquias – que afirmam ser democráticas para fins de relações públicas enquanto fingem que sua concentração de riqueza cada vez mais forte é o melhor. A retórica do trickle-down de hoje retrata os bancos e os gerentes financeiros direcionando a poupança da maneira mais eficiente para produzir prosperidade para toda a economia, não apenas para eles mesmos.

O presidente Biden e seus neoliberais do Departamento de Estado acusam a China e qualquer outro país que busca manter sua independência econômica e autoconfiança de serem “autocráticos”. Seu truque retórico justapõe a democracia à autocracia. O que eles chamam de “autocracia” é um governo forte o suficiente para evitar que uma oligarquia financeira orientada para o Ocidente endivide a população para si mesma – para então arrancar suas terras e outras propriedades para suas próprias mãos e as de seus patrocinadores americanos e outros estrangeiros.

O duplipensar orwelliano de chamar as oligarquias de “democracias” é seguido pela definição de um mercado livre como aquele que é livre para a busca de renda financeira. A diplomacia apoiada pelos EUA tem endividado os países, forçando-os a vender o controle de sua infraestrutura pública e transformar as “alturas de comando” de sua economia em oportunidades para extrair renda de monopólio.

Essa retórica da autocracia versus democracia é semelhante à retórica que as oligarquias gregas e romanas usaram quando acusaram os reformadores democráticos de buscarem “tirania” (na Grécia) ou “realeza” (em Roma). Foram os “tiranos” gregos que derrubaram as autocracias mafiosas nos séculos VII e VI a.C., abrindo caminho para as decolagens econômicas e protodemocráticas de Esparta, Corinto e Atenas. E foram os reis de Roma que construíram sua cidade-estado oferecendo aos cidadãos a posse da terra por conta própria. Essa política atraiu imigrantes de cidades-estados italianas vizinhas cujas populações estavam sendo forçadas à servidão por dívida.

O problema é que as democracias ocidentais não se mostraram hábeis em impedir o surgimento de oligarquias e a polarização da distribuição de renda e riqueza. Desde Roma, as “democracias” oligárquicas não protegem seus cidadãos dos credores que buscam se apropriar da terra, de seu rendimento e do domínio público.

Se perguntarmos quem hoje está decretando e aplicando políticas que buscam controlar a oligarquia para proteger a subsistência dos cidadãos, a resposta é que isso é feito por estados socialistas. Somente um Estado forte tem o poder de controlar uma oligarquia financeira e de busca de renda. A embaixada chinesa na América demonstrou isso em sua resposta à descrição do presidente Biden da China como uma autocracia:

Apegados à mentalidade da Guerra Fria e à lógica hegemônica, os EUA perseguem a política do bloco, inventam a narrativa “democracia versus autoritarismo” […] e intensificam alianças militares bilaterais, em uma clara tentativa de combater a China.

Guiado por uma filosofia centrada no povo, desde o dia em que foi fundado […] o Partido tem trabalhado incansavelmente pelo interesse do povo, e tem se dedicado a realizar as aspirações do povo por uma vida melhor. A China vem promovendo a democracia popular em todo o processo, promovendo a salvaguarda legal dos direitos humanos e defendendo a equidade e a justiça sociais. O povo chinês agora desfruta de direitos democráticos mais amplos e abrangentes.

Quase todas as primeiras sociedades não-ocidentais tinham proteções contra o surgimento de oligarquias mercantis e rentistas. É por isso que é tão importante reconhecer que o que se tornou a civilização ocidental representa uma ruptura com o Oriente Próximo, Sul e Leste da Ásia. Cada uma dessas regiões tinha seu próprio sistema de administração pública para salvar seu equilíbrio social da riqueza comercial e monetária que ameaçava destruir o equilíbrio econômico se não fosse controlada. Mas o caráter econômico do Ocidente foi moldado pelas oligarquias rentistas. A República de Roma enriqueceu sua oligarquia despojando a riqueza das regiões que conquistou, deixando-as empobrecidas. Essa continua sendo a estratégia extrativista do colonialismo europeu subsequente e, mais recentemente, da globalização neoliberal centrada nos EUA. O objetivo sempre foi o de “libertar” as oligarquias das restrições ao seu egoísmo.

A grande questão é, “liberdade” para quem? A economia política clássica definiu um mercado livre como aquele livre de renda não adquirida, encabeçado pela renda da terra e outras rendas de recursos naturais, renda de monopólio, juros financeiros e privilégios de credores relacionados. Mas no final do século XIX a oligarquia rentista patrocinou uma contrarrevolução fiscal e ideológica, redefinindo um mercado livre como livre para os rentistas extraírem renda econômica – renda não merecida.

Essa rejeição da crítica clássica da renda dos rentistas foi acompanhada pela redefinição da “democracia” para exigir um “livre mercado” de variedade rentista oligárquica anticlássica. Em vez de o governo ser o regulador econômico do interesse público, a regulação pública do crédito e dos monopólios é desmantelada. Isso permite que as empresas cobrem o que quiserem pelo crédito que fornecem e pelos produtos que vendem. Privatizar o privilégio de criar dinheiro de crédito permite que o setor financeiro assuma o papel de alocar a titularidade da propriedade.

O resultado foi centralizar o planejamento econômico em Wall Street, na City de Londres, na Bolsa de Paris e em outros centros financeiros imperiais. É exatamente disso que se trata na Nova Guerra Fria de hoje: proteger esse sistema de capitalismo financeiro neoliberal centrado nos EUA, destruindo ou isolando os sistemas alternativos da China, da Rússia e de seus aliados, enquanto busca financiar ainda mais o antigo sistema colonialista patrocinando o poder credor em lugar de proteger os devedores, impondo austeridade alicerçada na dívida em vez de crescimento, e tornando irreversível a perda de propriedade por meio de execução hipotecária ou venda forçada.

A civilização ocidental é um longo desvio de onde a Antiguidade parecia estar indo?
O que é tão importante na polarização econômica e no colapso de Roma que resultou da dinâmica da dívida com juros nas mãos gananciosas de sua classe credora é quão radicalmente seu sistema legal pró-credor oligárquico diferia das leis de sociedades anteriores que controlavam os credores e a proliferação de dívidas. A ascensão de uma oligarquia credora que usou sua riqueza para monopolizar a terra e assumir o governo e os tribunais (sem hesitar em usar a força e assassinatos políticos contra aspirantes a reformadores) foi impedida por milhares de anos em todo o Oriente Próximo e outros países das terras asiáticas. Mas a periferia do mar Egeu e do Mediterrâneo carecia dos freios e contrapesos econômicos que haviam proporcionado resiliência em outras partes do Oriente Próximo.

Todas as economias antigas operavam a crédito, acumulando dívidas rurais durante o ano agrícola. Guerras, secas ou inundações, doenças e outras perturbações muitas vezes impediam o pagamento de dívidas. Mas os governantes do Oriente Próximo cancelavam dívidas sob essas condições. Isso evitou que seus cidadãos-soldados e trabalhadores forçados perdessem suas terras de autossustento para os credores, que eram reconhecidos como um poder rival em potencial do palácio. Em meados do primeiro milênio a.C., a servidão por dívida havia se reduzido a apenas um fenômeno marginal na Babilônia, Pérsia e outros reinos do Oriente Próximo. Mas a Grécia e Roma estavam imersas em um meio-milênio de revoltas populares exigindo o cancelamento da dívida e a liberdade da servidão por dívida e a perda de terras autossustentáveis.

Foram apenas os reis romanos e os tiranos gregos que, por um tempo, conseguiram proteger seus súditos da servidão por dívida. Mas eles acabaram perdendo para as oligarquias credoras dos senhores da guerra. A lição da história é, portanto, que um forte poder regulador do governo é necessário para impedir que as oligarquias surjam e usem as reivindicações dos credores e a apropriação de terras para transformar os cidadãos em devedores, locatários, clientes e, finalmente, servos.

A ascensão do controle dos credores sobre os governos modernos
Palácios e templos em todo o mundo antigo eram credores. Somente no Ocidente surgiu uma classe de credores privados. Um milênio após a queda de Roma, uma nova classe bancária obrigou os reinos medievais a se endividarem. Famílias bancárias internacionais usaram seu poder de credor para obter o controle de monopólios públicos e recursos naturais, assim como os credores conquistaram o controle de terras individuais na antiguidade clássica.

A Primeira Guerra Mundial viu as economias ocidentais atingirem uma crise sem precedentes como resultado de dívidas entre aliados e das reparações alemãs. O comércio entrou em colapso e as economias ocidentais caíram em depressão. O que os resgatou foi a Segunda Guerra Mundial e, desta vez, nenhuma reparação foi imposta após o fim da guerra. No lugar das dívidas de guerra, a Inglaterra simplesmente foi obrigada a abrir sua área monetária aos exportadores norte-americanos e abster-se de reavivar seus mercados industriais desvalorizando a libra esterlina, sob os termos do Lend-Lease e do British Loan de 1946, conforme observado acima.

O Ocidente emergiu da Segunda Guerra Mundial relativamente livre de dívidas privadas – e completamente sob o domínio dos EUA. Mas desde 1945, o volume da dívida se expandiu exponencialmente, atingindo proporções de crise em 2008, quando a bolha das hipotecas de alto risco, a fraude bancária maciça e a pirâmide da dívida financeira explodiram, sobrecarregando os EUA, bem como as economias da Europa e do Sul Global.

O Federal Reserve dos EUA monetizou US$ 8 trilhões para salvar as ações, títulos e hipotecas imobiliárias da elite financeira, em vez de resgatar as vítimas do subprime e países estrangeiros superendividados. O Banco Central Europeu fez a mesma coisa para evitar que os europeus mais ricos perdessem o valor de mercado de sua riqueza financeira.

Mas era tarde demais para salvar as economias dos EUA e da Europa. O longo acúmulo de dívidas pós-1945 chegou ao fim. A economia dos EUA foi desindustrializada, sua infraestrutura está entrando em colapso e sua população está tão endividada que resta pouca renda disponível para sustentar os padrões de vida. Assim como ocorreu com o Império de Roma, a resposta americana é tentar manter a prosperidade de sua própria elite financeira explorando países estrangeiros. Esse é o objetivo da atual diplomacia da Nova Guerra Fria. Envolve extrair tributo econômico empurrando as economias estrangeiras ainda mais para a dívida dolarizada, a ser paga impondo depressão e austeridade a si mesmas.

Essa subjugação é descrita pelos economistas tradicionais como uma lei da natureza e, portanto, como uma forma inevitável de equilíbrio, na qual a economia de cada nação recebe “o que vale”. Os modelos econômicos dominantes de hoje são baseados na suposição irreal de que todas as dívidas podem ser pagas, sem polarizar renda e riqueza. Todos os problemas econômicos são considerados resolvidos pela “magia do mercado”, sem qualquer necessidade de intervenção da autoridade cívica. A regulamentação governamental é considerada ineficiente e ineficaz e, portanto, desnecessária. Isso deixa credores, grileiros e privatizadores com liberdade para privar outros de sua liberdade. Isso é descrito como o destino final da globalização de hoje e da própria história.

O fim da história? Ou apenas da financeirização e privatização do Ocidente?
A pretensão neoliberal é que privatizar o domínio público e deixar o setor financeiro assumir o planejamento econômico e social nos países-alvo trará prosperidade mutuamente benéfica. Isso deveria tornar voluntária a submissão estrangeira à ordem mundial centrada nos EUA. Mas o efeito real da política neoliberal foi polarizar as economias do Sul Global e sujeitá-las à austeridade amarrada à dívida.

O neoliberalismo americano afirma que a privatização, a financeirização e a mudança do planejamento econômico da América do governo para Wall Street e outros centros financeiros é o resultado de uma vitória darwiniana alcançando tal perfeição que é “o fim da história”. É como se o resto do mundo não tivesse alternativa a não ser aceitar o controle dos EUA do sistema financeiro global (isto é, neocolonial), do comércio e da organização social. E só para garantir, a diplomacia dos EUA procura respaldar seu controle financeiro e diplomático pela força militar.

A ironia é que a própria diplomacia dos EUA ajudou a acelerar uma resposta internacional ao neoliberalismo, forçando governos fortes o suficiente para recuperar a longa tendência da história que vê governos capacitados para impedir que dinâmicas oligárquicas corrosivas descarrilhem o progresso da civilização.

O século XXI começou com os neoliberais americanos imaginando que sua financeirização e privatização alavancadas pela dívida coroariam a longa ascensão da história humana como o legado da Grécia e Roma clássicas. A visão neoliberal da história antiga ecoa a das oligarquias da antiguidade, enxovalhando os reis de Roma e os reformadores-tiranos da Grécia como aqueles que ameaçavam uma intervenção pública forte demais quando visavam manter os cidadãos livres da servidão por dívida e garantir a posse da terra autossustentável. O que é visto como o ponto de partida decisivo é a “segurança dos contratos” da oligarquia, dando aos credores o direito de expropriar os devedores. Isso, de fato, permaneceu como uma característica definidora dos sistemas jurídicos ocidentais nos últimos 2 mil anos.

Um fim real da história significaria que a reforma pararia em todos os países. Esse sonho parecia próximo quando os neoliberais dos EUA receberam carta branca para remodelar a Rússia e outros estados pós-soviéticos depois que a União Soviética se dissolveu em 1991, começando com a terapia de choque privatizando recursos naturais e outros bens públicos nas mãos de cleptocratas ocidentais a registrar a riqueza pública em seus próprios nomes – e monetizando na venda seus ganhos para os EUA e outros investidores ocidentais.

O fim da história da União Soviética deveria consolidar o fim da história da América, mostrando como seria fútil para as nações tentarem criar uma ordem econômica alternativa baseada no controle público do dinheiro e dos bancos, saúde pública, educação gratuita e outros subsídios de necessidades básicas, livres de financiamento de dívidas. A admissão da China na Organização Mundial do Comércio em 2001 foi vista como uma confirmação da afirmação de Margaret Thatcher de que “não há alternativa” (There Is No Alternative – TINA) à nova ordem neoliberal patrocinada pela diplomacia dos EUA.

Há uma alternativa econômica, é claro. Observando a extensão da história antiga, podemos ver que o principal objetivo dos antigos governantes da Babilônia ao sul e ao leste da Ásia era impedir que uma oligarquia mercantil e credora reduzisse a população em geral à clientela, à servidão por dívida e à escravidão. Se o mundo eurasiano não norte-americano agora seguir esse objetivo básico, seria restaurar o fluxo da história ao seu curso pré-ocidental. Isso não seria o fim da história, mas retornaria aos ideais básicos do mundo não-ocidental de equilíbrio econômico, justiça e equidade.

Hoje, China, Índia, Irã e outras economias da Eurásia deram o primeiro passo como pré-condição para um mundo multipolar, rejeitando a insistência dos Estados Unidos em fazê-los aderir às suas sanções comerciais e financeiras contra a Rússia. Esses países percebem que, se os Estados Unidos pudessem destruir a economia da Rússia e substituir seu governo por seus “procuradores” (proxies) semelhantes a Yeltsin, os demais países da Eurásia seriam os próximos da fila.

A única maneira possível de a história realmente terminar seria os militares americanos destruirem todas as nações que buscam uma alternativa à privatização e financeirização neoliberais. A diplomacia dos EUA insiste que a história não deve seguir nenhum caminho que não culmine em seu próprio império financeiro sendo governado por oligarquias clientes. Os diplomatas americanos esperam que suas ameaças militares e apoio a exércitos por procuração forcem outros países a se submeterem às demandas neoliberais – para evitar serem bombardeados ou sofrerem “revoluções coloridas”, assassinatos políticos e golpes do exército, ao estilo Pinochet. Mas a única maneira real de acabar com a história é pela guerra atômica para acabar com a vida humana neste planeta.

A Nova Guerra Fria está dividindo o mundo em dois sistemas econômicos contrastantes
A guerra por procuração da OTAN na Ucrânia contra a Rússia é o catalisador que divide o mundo em duas esferas opostas com filosofias econômicas incompatíveis. A China, o país que cresce mais rapidamente, trata o dinheiro e o crédito como uma utilidade pública alocada pelo governo em vez de permitir que o privilégio monopolista da criação de crédito seja privatizado pelos bancos, levando-os a deslocar o governo como planejador econômico e social. Essa independência monetária, contando com sua própria criação de dinheiro doméstico em vez de emprestar dólares eletrônicos dos EUA, e denominando comércio exterior e investimento em sua própria moeda em vez de dólares, é vista como uma ameaça existencial ao controle americano da economia global.

A doutrina neoliberal dos EUA pede que a história termine “libertando” as classes ricas de um governo forte o suficiente para impedir a polarização da riqueza e o declínio e queda final. A imposição de sanções comerciais e financeiras contra a Rússia, Irã, Venezuela e outros países que resistem à diplomacia dos EUA e, finalmente, ao confronto militar, é como os Estados Unidos pretendem “espalhar a democracia” pela OTAN na Ucrânia até os mares da China.

O Ocidente, em seu avatar neoliberal dos EUA, parece estar repetindo o padrão de declínio e queda de Roma. Concentrar a riqueza nas mãos do 1% sempre foi a trajetória da civilização ocidental. É o resultado da antiguidade clássica ter tomado um caminho errado quando Grécia e Roma permitiram o crescimento inexorável da dívida, levando à expropriação de grande parte dos cidadãos e reduzindo-a à servidão a uma oligarquia credora proprietária de terras. Essa é a dinâmica embutida no DNA do que é chamado de Ocidente e sua “segurança de contratos” sem qualquer supervisão governamental do interesse público. Ao eliminar a prosperidade em casa, essa dinâmica exige um esforço constante para extrair uma riqueza econômica (literalmente um “fluxo”) às custas de colônias ou países devedores.

Os Estados Unidos, por meio de sua Nova Guerra Fria, pretendem garantir precisamente esse tributo econômico de outros países. O conflito vindouro pode durar talvez 20 anos e determinará que tipo de sistema político e econômico o mundo terá. Em pauta está mais do que apenas a hegemonia dos EUA e seu controle dolarizado das finanças internacionais e da criação de dinheiro. Politicamente está em questão a ideia de “democracia”, que se tornou um eufemismo para uma oligarquia financeira agressiva que busca se impor globalmente pelo controle financeiro, econômico e político predatório apoiado pela força militar.

Como procurei enfatizar, o controle oligárquico do governo tem sido uma importante característica distintiva da civilização ocidental desde a antiguidade clássica. E a chave para esse controle tem sido a oposição a um governo forte – isto é, um governo civil forte o suficiente para impedir que uma oligarquia credora emerja e monopolize o controle da terra e da riqueza, tornando-se uma aristocracia hereditária, uma classe rentista que vive das rendas da terra, juros e privilégios de monopólio que reduzem a população em geral à austeridade.

A ordem unipolar centrada nos EUA na esperança de “acabar com a história” refletiu uma dinâmica econômica e política básica que tem sido uma característica da civilização ocidental desde que a Grécia e Roma clássicas partiram por um caminho diferente da matriz do Oriente Próximo no primeiro milênio antes de Cristo.

Para evitar ser arrastado para o redemoinho de destruição econômica que agora envolve o Ocidente, os países do núcleo eurasiano em rápido crescimento do mundo estão desenvolvendo novas instituições econômicas baseadas em uma filosofia social e econômica alternativa. Com a China sendo a maior e mais rápida economia da região, suas políticas socialistas provavelmente serão influentes na formação desse emergente sistema financeiro e comercial não-ocidental.

Em vez da privatização ocidental da infraestrutura econômica básica para criar fortunas privadas por meio da extração de renda monopolista, a China mantém essa infraestrutura em mãos públicas. Sua grande vantagem sobre o Ocidente é que trata o dinheiro e o crédito como uma utilidade pública, a ser alocada pelo governo em vez de permitir que os bancos privados criem crédito, com a dívida crescendo sem expandir a produção para elevar os padrões de vida. A China também está mantendo a saúde e a educação, o transporte e as comunicações em mãos públicas, como direitos humanos básicos.

A política socialista da China é, em muitos aspectos, um retorno às ideias básicas de resiliência que caracterizaram a maioria das civilizações antes da Grécia e Roma clássicas. Criou um Estado forte o suficiente para resistir ao surgimento de uma oligarquia financeira que ganha o controle da terra e dos ativos rentáveis. Em contraste, as economias ocidentais de hoje estão repetindo precisamente aquele impulso oligárquico que polarizou e destruiu as economias da Grécia e Roma clássicas, com os Estados Unidos servindo como o análogo moderno de Roma.

Fonte: Boletim Outras Palavras

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