Lampedusa: a tragédia e a grande decepção

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Andrea Davolo

A recente tragédia no litoral de Lampedusa causou uma sensação geral de raiva e indignação, tanto pela magnitude quanto pela forma como o desastre ocorreu, e que vai muito além das vergonhosas e hipócritas palavras e lágrimas de crocodilo das classes governantes e dos políticos da Itália e da Europa, os verdadeiros cúmplices e instigadores de tais desgraças.

Agora o governo italiano anuncia que um funeral de Estado será realizado pelas centenas de imigrantes que morreram na tragédia. Enquanto estavam vivos, todos eram “criminosos” potenciais para o Estado italiano, e uma vez que tivessem posto os pés em solo italiano, muito provavelmente teriam terminado em algum dos muitos centros de detenção que os sucessivos governos italianos puseram em operação para enfrentar o “problema”. Agora que estão mortos, a hipocrisia dos governantes da Itália, que parecem não ver a contradição nesta última proposta, lhes dá as boas-vindas.

O primeiro-ministro Letta ajoelhou-se dramaticamente ante os féretros e fez o anúncio em sua visita a Lampedusa, junto com o Presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso. O fato é que esta tragédia e as muitas outras que a precederam são o resultado direto das medidas draconianas introduzidas pelos sucessivos governos para reprimir a “imigração ilegal”. E os governos italianos permanecem sob a pressão da União Europeia (UE) para reforçar o controle das fronteiras. Não é de estranhar que tanto Letta quanto Barroso fossem interrompidos por uma multidão de manifestantes que gritavam “vergonha” e “assassinos”, enquanto chegavam à ilha na quarta-feira passada!

Desgraçadamente, esta não é a primeira tragédia deste tipo neste trecho de mar que separa a costa africana da Itália e Europa. De fato, faz parte de uma larga esteira de mortes que se estima chegou a 20 mil vítimas nos últimos 25 anos. A cifra real poderia, contudo, ser ainda maior, porque as estatísticas disponíveis se baseiam unicamente no que se pode captar da imprensa internacional.

O mito da imigração ilegal

Estamos vendo lágrimas sendo abundantemente derramadas nas latas de lixo por funcionários do governo e deputados, que são os mesmos políticos que apoiaram e votaram a favor de todas as leis contra a imigração aprovadas nos últimos anos. O que temos presenciado é de fato uma longa campanha sobre esta questão, que se iniciou há mais de duas décadas por parte da centro-esquerda e centro-direita através das diferentes leis que regulam a imigração.

Isto começou com a Lei Martelli (nome de seu principal patrocinador, o então vice-primeiro-ministro Claudio Martelli, figura destacada do PSI, o Partido Socialista Italiano), em 1990. A lei foi projetada para apaziguar aos sócios da Itália na UE, que viam as fronteiras italianas como uma “porta aberta” para os “imigrantes ilegais” adentrar facilmente toda a UE. A esta lei se seguiu, em 1998, a Lei 40/98, a chamada lei Turco-Napolitano, introduzida pelo então governo de centro-esquerda (que leva o nome de dois líderes da então Esquerda Democrática que são agora figuras do Partido Democrático; Napolitano é o presidente atual da Itália). A lei estabeleceu os procedimentos para a deportação de imigrantes ilegais e também permitiu a deportação depois de que o caso fosse tratado ante um magistrado.

Logo tivemos a infame Lei Bossi-Fini, de 2002 (Bossi foi o líder da racista Liga do Norte que estava em uma coalizão com Berlusconi e Fini foi o líder da ex-fascista Aliança Nacional, também em coalizão com Berlusconi). Esta lei constituiu depois o conteúdo repressivo de todas as leis anteriores. De acordo com ela, os imigrantes ilegais podiam ser deportados imediatamente, embora apelassem aos tribunais. Ademais, permite que os imigrantes irregulares sejam levados aos centros especiais de detenção sob o controle da polícia, onde poderiam ser detidos até 60 dias e, em caso de ser imigrantes ilegais, poderiam ser obrigados a abandonar o país no máximo de cinco dias. Se não acatam as ordens, são detidos novamente entre seis meses e um ano, ou são deportados. Se depois voltam à Itália, são presos e levados aos tribunais.

O último ato desta pressão cada vez maior sobre os “imigrantes ilegais” foi o “pacote de segurança” de 2009, que transformou a imigração ilegal em delito. A lei também aumentou em um terço a pena para os imigrantes irregulares que cometam um delito, com a expulsão do país se é condenado a dois anos ou mais. O novo conceito de “ajuda e assistência na imigração irregular” (isto é, dar trabalho o proporcionar refúgio aos imigrantes irregulares) se converteu em um fato penalizado pela lei. Ademais, o período de possível reclusão dos imigrantes ilegais em centros de detenção foi incrementado a 180 dias. Outras medidas incluem a obrigação para o imigrante de apresentar uma permissão de residência legal para poder se beneficiar da assistência e da ajuda social, e o pagamento de até 200 euros para obter ou renovar a permissão de residência.

Como se pode observar, as leis que regem a “imigração ilegal” se tornaram cada vez mais duras nos últimos anos, e todas elas se inspiraram na mesma cultura e na mesma lógica de “deportação”, e foram projetadas especificamente para cumprir com as disposições da União Europeia. Estas leis levaram à criação de um imenso exército de imigrantes “ilegais” e “clandestinos”, ou seja, pessoas que, em virtude destas leis, também não podem se declarar legais em território italiano.

O que temos aqui é um fenômeno que envolve pouco mais de 300 mil pessoas, apesar dos meios de comunicação que alardeiam constantemente sobre uma “invasão”. A verdade é que, do ponto de vista da economia capitalista, estes “imigrantes ilegais” constituem uma fonte muito útil de mão-de-obra barata a ser utilizada nas explorações agrícolas no sul e em pequenas empresas no norte, e que vive e trabalha em condições de escravidão, enquanto, ao mesmo tempo, é uma alavanca útil com a qual minam os direitos dos trabalhadores em geral. Este é o caso, particularmente, da agricultura e da indústria têxtil, onde o trabalho ilegal costuma ser a norma, e é utilizado para deteriorar as condições de todos os trabalhadores.

A classe dominante arremete contra os imigrantes ilegais através de seus jornais e por meio de suas leis draconianas que criam o fenômeno da imigração ilegal. E mediante a introdução dessas pessoas sem nenhum direito no mercado de trabalho – tornando-os, dessa forma, mais “competitivos”, uma vez que são mais fácil de explorar – os chefes podem produzir maiores lucros, enquanto minam os direitos sindicais e facilitam o caminho para a ideologia racista numa tentativa de confrontar os trabalhadores italianos contra os trabalhadores imigrantes.

Naturalmente, o delito de cumplicidade na imigração ilegal somente serve para frear o fenômeno de forma isolada e de acordo com as necessidades do sistema – da mesma forma como alguém abre e fecha uma torneira de água –, mas sua função é principalmente ideológica, visto que serve para reforçar a imagem do inimigo, do culpado, do bode expiatório. Entre os fatores que contribuíram para esta última tragédia no litoral de Lampedusa – para não falarmos da negação do direito à liberdade de movimento dos seres humanos – está o fato de que “ajudar à imigração ilegal”, agora é um delito em si mesmo.

Consta que vários barcos que estavam na zona do acidente evitaram se aproximar dos imigrantes em risco e não puderam oferecer auxílio precisamente pelo temor de ser levados aos tribunais por um delito! Um pescador que varreu para o lado esses temores e resgatou 47 pessoas disse que os guarda-costeiros o detiveram para que não salvasse mais pessoas. Aproximou-se dos guarda-costeiros com os imigrantes que havia resgatado e lhes pediu permissão para levá-los ao porto para que pudesse voltar a sair e resgatar mais pessoas, mas disse que sua solicitação foi rechaçada, visto que seria “contra o protocolo”. Naturalmente, a história oficial é que se fez de tudo para salvar aos que estavam se afogando!

Todas as vítimas deste último massacre eram, de fato, eritreus e somalis, o que significa que são todas pessoas que têm o direito a solicitar asilo político e proteção internacional, visto que fugiam de guerras e de perseguição política, religiosa e gênero étnico. Na Itália, tal número de refugiados é de pouco mais de 60 mil pessoas, em sua maioria de somente cinco países: Afeganistão, Somália, Iraque, Síria e Sudão, todos eles cenário de guerras. E o que agrava a hipocrisia dos países imperialistas é que estas guerras são causadas diretamente pelas próprias potências imperialistas ou por representantes seus.

Deportações

A Lei Bossi-Fini se centra, dentro da política da Itália de lutar contra a “imigração ilegal”, nas deportações e nos acordos bilaterais, especialmente com a Líbia, e foi adotada por todos os governos, fossem de centro-direita, centro-esquerda ou tecnocrático. Estima-se que, desde 2005, foram gastos aproximadamente 1,6 bilhões de euros na aplicação das políticas de deportação. A isto há que se acrescentar também o dinheiro gasto na construção e na manutenção das prisões líbias, acordo que foi alcançado nas negociações entre o governo de Berlusconi e o de Kadhafi, em 2009, e que foram reiterados no ano passado entre o governo de Monti e o novo governo de transição líbio.

À raiz da tragédia atual de Lampedusa, Alfano, o ministro do Interior (que pertence ao partido de Berlusconi) sugeriu reforçar e renovar estes acordos, enquanto Napolitano, o presidente da Itália e promotor do conceito de “imigração ilegal” na legislação de 1998, junto com Turco, sugeriu reforçar Frontex, as operações das patrulhas militares fronteiriças que foram utilizadas para realizar as deportações à Líbia. As palavras do presidente da república se destacam por toda a sua hipocrisia quando aparece em cena como um homem caridoso que declama “nunca devemos permitir que estas tragédias ocorram de novo” e logo, mesmo antes de que termine suas amáveis palavras, reitera a necessidade de recortar sistematicamente centenas de milhões de euros de gasto social e ao mesmo tempo de aumentar o gasto em centros de detenção onde se registraram casos de tortura, violações e mesmo, como se informou, de assassinatos!

Refugiados desesperados, grande oportunidade de negócio para os empresários

Estas pobres pessoas desesperadas se veem obrigadas a pagar até 15 mil dólares, vendendo tudo o que têm para cruzar o deserto, chegar à Líbia e tratar de chegar ao outro lado do mar. No processo, experimentam violência, tortura e cárcere, e arriscam suas vidas nas águas do Mediterrâneo. Em tudo isto, o Estado italiano explorou cinicamente a situação permitindo que diversas empresas façam bons negócios. Este foi o caso durante a chamada Emergência da África do Norte, em 2011, depois da explosão da guerra contra a Líbia. Kadhafi, em represália contra países da OTAN, esvaziou esses mesmos cárceres construídos com o dinheiro italiano e organizou a deportação coletiva de em torno de 60 mil imigrantes à Itália.

Desses, muitos saíram da Itália para outros países, mas ainda permanecem uns 20 mil. O então ministro do Interior, Maroni, da Liga do Norte, decidiu confiar à Protezione Civile [Departamento de Proteção Civil da Itália] a tarefa de coordenar a recepção destes refugiados, mas ante a ausência de normas de procedimento e controle, estas funções foram outorgadas a licitadores privados, empresas, cooperativas e hotéis que recebem do Estado 1400 euros ao mês por cada refugiado acolhido. Muito frequentemente, os refugiados se amontoam em choupanas e vivendas em mal estado, privados de assistência sanitária, dos serviços de saúde ou de acesso ao sistema de integração. Estes casos foram confirmados por uma série de queixas e denúncias que apareceram nos meios de comunicação.

A Emergência da África do Norte terminou oficialmente em fevereiro passado, deixando a muitos destes refugiados na mesma posição indefesa em que estavam quando chegaram pela primeira vez, mas deixou os bolsos de vários contratantes cheios de dinheiro público, um acordo no valor de 1,5 bilhões de euros, todo isso à custa do Estado do Bem-Estar e das pessoas que teriam direito a uma política de proteção e integração social. Naturalmente, enquanto seu ministro havia prometido suculentos contratos aos seus amigos empresários, as seções locais da Liga do Norte, durante os meses do governo de Monti, não tiveram reparos em lançar uma campanha repugnante e enganosa dirigida contra os refugiados, durante a qual reclamavam que o Estado supostamente lhes havia garantido um vale de desconto de 46 euros ao dia. Aqui vemos mais uma vez como a ideologia racista, falseando a realidade, serviu para ocultar as responsabilidades e os crimes da classe dominante.

Por uma política de classe contra o racismo

Esta campanha racista logrou obter um ponto de apoio entre algumas camadas das massas nestes longos anos de guerra contra a imigração, e logrou apresentar uma imagem totalmente falsa da realidade. A verdade é que os trabalhadores imigrantes não são “rivais” dos trabalhadores italianos no local de trabalho. É o sistema de exploração capitalista que requer a figura do trabalhador imigrante “ilegal” que pode ser chantageado. Não é o imigrante que está levando os recursos públicos de um Estado do Bem-Estar cada vez mais residual, é a burguesia que está recortando o gasto em educação e saúde, enquanto que, ao mesmo tempo, se aproveita das “emergências” da imigração (frequentemente causadas pelas guerras provocadas pela própria burguesia) para conseguir grandes lucros.

Somente uma política favorável aos trabalhadores, realizada com audácia por um partido que tenha como objetivo a reconstrução da classe trabalhadora, baseada na esquerda, pode derrocar o racismo e pôr um fim à tragédia das mortes no Mediterrâneo (e no Saara). O fato é que na atualidade as soluções pouco realistas dominam à esquerda. É inútil fazer um apelo para uma “reforma” da Lei Bossi-Fini, como a eliminação do artigo que faz da imigração ilegal um delito. Não é mais que uma mudança cosmética que deixaria o resto da lei – e as outras leis anteriores sobre a questão – como antes estavam, enquanto que, ao mesmo tempo, proporciona legitimidade a uma das leis mais odiosas e injustas da direita na Itália. A lei deve ser abolida inteiramente! Tampouco seria suficiente solicitar a abertura de um canal que proporcione ajuda humanitária aos refugiados, visto que, embora isto seja claramente necessário, seria muito parcial, uma vez que não mudaria nem um ápice as condições de exploração e marginalização dos imigrantes na Itália.

O que, em troca, se requer é uma política que comece com a exigência de que todas as leis contra a imigração sejam suprimidas para depois se passar ao princípio do direito de livre circulação, levantar a demanda da nacionalização sob o controle dos trabalhadores das empresas que estão fechando e despedindo trabalhadores ou que estão explorando mão-de-obra ilegalmente. Esta seria uma forma de unir a classe trabalhadora em seu conjunto, tanto os italianos quanto os trabalhadores imigrantes. Este não é um caminho fácil de percorrer, mas, como se demonstrou com as exitosas lutas dos trabalhadores imigrantes do setor da logística, isto se pode fazer e semelhante luta se pode ganhar ampliando os direitos dos trabalhadores. O que é necessário, contudo, é que estas lutas sejam generalizadas e sejam realizadas pela classe trabalhadora.

Pós-data

Desde que este artigo foi escrito os deputados pertencentes ao Movimento Cinco Estrelas de Grillo (M5S) apresentaram uma solicitação de modificação da Lei Bossi-Fini para eliminar o artigo que torna a imigração ilegal um delito. O governo, à raiz da catástrofe de Lampedusa, deu indicações de que estaria a favor de tal modificação. No entanto, Grillo repudiou publicamente aos dois deputados, afirmando que tal mudança na lei promoveria novas chegadas de imigrantes clandestinos ao litoral italiano, o que revela o profundo caráter reacionário de Grillo e de outros dirigentes do M5S. Ele afirma que a Itália não pode aceitar mais imigrantes, já que não há o suficiente para os próprios italianos! Isto demonstra que seu ponto de vista não vai além do capitalismo. Em lugar de explicar que há muito dinheiro disponível, mas que está nas mãos de uma pequena minoria capitalista, contribui para que os trabalhadores italianos pobres se posicionem contra os imigrantes pobres.

A Liga do Norte ainda vai além, não somente se opõe à emenda como também sugere que a Itália deveria enviar tropas a países como Eritreia e Somália para “resolver” os problemas ali. Dessa forma, enquanto afirmam que a Itália não tem os meios financeiros para receber as pessoas desesperadas que fogem dos países pobres, deveria ter os recursos para uma operação militar, basicamente uma guerra de ocupação. Mais uma vez se põe de manifesto o caráter totalmente reacionário da Liga do Norte.

Traduzido por Fabiano Adalberto

Publicado em  Esquerda  Marxistas em 12/11/2013

 

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