Impressões de uma viajem à Síria

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Caio Botelho*

Entre os dias 24 de novembro e 2 de dezembro, uma delegação de brasileiros visitou a República Árabe da Síria em uma missão de solidariedade ao país, atingindo por uma guerra civil que já dura quase três anos e contabiliza mais de 120 mil vítimas fatais. Como tivemos a oportunidade de integrar essa missão, compartilhamos algumas impressões dessa marcante experiência.

Desde o início dos conflitos, em março de 2011, a imprensa internacional esforça-se para criar uma versão sobre o que ocorre no país árabe e vendê-la ao resto do mundo. De acordo com ela, os “revolucionários” (como assim são chamados) lutam por democracia e contra a ditadura do presidente Bashar Al Assad. É um outro tipo de guerra que está sendo travada, a guerra midiática.

Mas não é preciso tornar-se um arabista para entender que o que ocorre na Síria é bem diferente do que pinta a mídia e as grandes potências mundiais. Tem muito mais coisa em jogo nesse conflito.

Para início de conversa, é necessário conhecer aqueles que lutam contra o governo de Bashar Al Assad: de acordo com estimativas do governo sírio e de organismos internacionais, calcula-se entre 60 e 75 mil o número de combatentes estrangeiros que cruzaram ilegalmente a fronteira da Síria para combater o governo. Esses rebeldes compõem mais de 80 nacionalidades diferentes – uma verdadeira guerra mundial travada dentro do território sírio.

Obviamente, não se trata de militantes internacionalistas que foram à Síria prestar solidariedade e pegar em armas junto ao povo irmão. São, em sua quase totalidade, fundamentalistas ligados à correntes ultra-radicais do islamismo, como os jihadistas, wahabistas e os takfiristas. Lá está também a Al Qaeda – que dispensa apresentações – e a sua irmã mais nova, a Frente Al Nusra. A Irmandade Muçulmana, partido que defende abertamente o estabelecimento de um estado islâmico, também milita nas trincheiras da oposição à Assad.

No período em que estivemos no país tomamos conhecimento de uma série de crimes de guerra cometidos pelos rebeldes, solenemente ignorados pela grande mídia internacional. No segundo dia de nossa estadia em Damasco, uma van que transportava cinco médicos e duas enfermeiras foi sequestrada pelos fundamentalistas. As mulheres foram violentadas e depois todos, inclusive o motorista, foram degolados e tiveram seu corações arrancados com uma faca.

Durante uma reunião que fazíamos com o vice-ministro das Relações Exteriores da Síria, Faisal Al Mekdad, um telefonema nos interrompeu para comunicar que uma bomba havia sido lançada sobre a embaixada da Rússia. No atentado morreu uma pessoa e nove ficaram feridas.

Também tivemos a oportunidade de visitar a Catedral de Damasco, principal templo dos cristãos ortodoxos (segunda maior religião do país, depois do islamismo) e conversar com parte da cúpula da Igreja. No dia seguinte, um carro bomba explodiu nas proximidades da Igreja, matou pelo menos oito pessoas e deixou outras 24 feridas. Diga-se de passagem, os cristãos são alvo constante dos atentados praticados pelos rebeldes. O objetivo, além de disseminar o ódio, é o de criar um clima de pânico e expulsar do país os adeptos do cristianismo.

Vale ressaltar que a Síria, sob o governo de Bashar Al Assad, sempre foi palco de um convívio harmônico entre as religiões, fato destacado não apenas pelos líderes ortodoxos mas também pelo carismático Mufti de Damasco (principal autoridade islâmica do país), Ahmad Hassoun, com quem também nos encontramos e de quem ouvimos uma firme condenação aos crimes cometidos pelos extremistas. Por conta de seu posicionamento, o seu filho, Sariya Hassoun, foi assassinado pelos fundamentalistas em outubro de 2011.

Na medida em que o governo avança militarmente os rebeldes apelam para mais atos de terror. Todos os dias a cidade de Damasco é alvo de morteiros jogados aleatoriamente, além de carros bombas e outros atentados do tipo. As vítimas, como é de supor, são quase sempre civis inocentes.

E é justamente a parcela mais pobre da população a mais atingida pelo conflito. A indústria e os campos de petróleo – bases da economia síria – foram quase integralmente destruídos (diversas usinas, galpões de cerais e trens foram explodidos pelos rebeldes) e uma grave crise econômica, acompanhada por uma inflação acumulada de cerca de 300% nesses três anos, criou o imenso flagelo da fome e dos refugiados, a despeito do esforço do governo em assegurar o mínimo para a sobrevivência (mesmo com a crise, dois quilos de pão custa o equivalente a um real). Ainda assim, de acordo com a ONU, aproximadamente 2,2 milhões de sírios foram obrigados a abandonar o país e viver em campos de refugiados, principalmente no Líbano. 52% são crianças.

Uma das cenas mais fortes vistas pela delegação brasileira foi justamente na fronteira do Líbano com a Síria, onde está localizado um posto da ACNUR, braço da ONU para os refugiados. É um mar de gente, em sua maioria mulheres e crianças, estas últimas quase sempre chorando de fome. Diante desse cenário não há como não ser invadido por uma incômoda sensação de impotência.

Mas é claro que também existem setores da oposição dispostos a chegar a um entendimento. O próprio governo vem tomando importantes iniciativas nesse sentido, como a de montar uma mesa de diálogo com os mais de vinte partidos políticos existentes para discutir as saídas da crise. Também foram convocadas eleições presidenciais para maio de 2014 e, de acordo com a nova Constituição – mais democrática que a anterior – é obrigatório que haja mais de um candidato.

O governo sírio também se comprometeu a comparecer em Genebra 2, uma Conferência Internacional que será realizada em 22 de janeiro de 2014, na capital da Suíça, para discutir os rumos da crise. As únicas pré-condições estabelecidas foram: primeiro, os destinos da Síria e a escolha do presidente da República serão de responsabilidade exclusiva do povo daquele país, sem interferências externas, como desejam os EUA e outras potências mundiais. E segundo, não há possibilidade de diálogo com a oposição armada. Além disso, o governo da Síria tem proposto que as eventuais divergências que forem mantidas sejam decididas através de um plebiscito popular.

De acordo com o presidente do Parlamento Sírio, Jihad Lahham, que também recebeu a missão brasileira, parte da oposição tem receio de decidir no voto os rumos do país “porque não são donos da decisão”. Ele se refere à uma outra parte da oposição, sediada em hotéis luxuosos de Paris e de Londres e que se organiza através de entidades como o Observatório Sírio de Direitos Humanos (OSDH, sua sigla em ingês) que recebem financiamentos vultosos das grandes potências para manter o discurso oposicionista e financiar a luta armada contra o governo de Assad. Para Lahham, esses setores não representam os interesses do povo sírio, mas de seus financiadores, que por sua vez não estão interessados na promoção da paz.

Existem também interesses na disputa pela hegemonia econômica e política no Oriente Médio. Para derrotar a Síria, o governo da Turquia (que ganha com o desmantelamento econômico de seu vizinho) abriu suas fronteiras para a entrada dos mercenários. A Arábia Saudita, uma decrépita e autoritária monarquia absolutista satélite dos EUA, por sua vez, tem despejado rios de dinheiro na oposição armada e contribuído para arregimentar soldados para lutar contra Assad no chamado Exército “Livre” da Síria. O governo saudita, que diz defender a liberdade na Síria, a nega para seu próprio povo.

Quem também marcha ao lado dos EUA, da Arábia Saudita e dos fundamentalistas e hipoteca apoio à esse pretenso Exército “Livre” são os trotskistas. Mas quem conhece os objetivos dessa corrente ideológica e seu papel contra-revolucionário não se surpreende com tal posicionamento.

Nessas condições, apoiar o governo de Bashar Al Assad é lutar contra os interesses do imperialismo. É claro que não se trata de uma carta branca, de um apoio incondicional. Afinal não devemos excluir as críticas necessárias e nem deixar de apontar as limitações de seu governo.

Essa é a posição, por exemplo, do Partido Comunista Sírio Unificado, que faz parte da coalizão que sustenta o governo de Assad, possui três parlamentares e um ministro de estado, mas que também defende a necessidade de reformas, a ampliação das liberdades coletivas e tem insistido na necessidade do cumprimento de um papel mais efetivo da frente ampla liderada pelo Partido Baath (do presidente Bashar).

Para o secretário geral do Partido Comunista, Hunein Nemer, “o relacionamento dos comunistas com o governo é de cooperação, mas também de críticas construtivas”. Entretanto, não há dúvidas de que lado está o PC Sírio quando o assunto são os conflitos e a tentativa de intervenção imperialista: “nesse caso, nós [comunistas] e o Baath formamos uma só frente na defesa da pátria”, afirmou o líder do Partido Comunista, que também é deputado do Parlamento Sírio.

Os setores progressistas e de esquerda não podem ter dúvidas sobre o que ocorre na Síria. Trata-se de uma batalha que interessa à todo o planeta. Ao contrário da propaganda da grande mídia ocidental, ali não se encontram insurgentes em luta por democracia e liberdade, mas mercenários a serviço dos EUA e de outras potências mundiais que tentam, à todo custo e lançando mão dos mais torpes instrumentos, derrubar o presidente Bashar Al Assad – uma pedra no sapato dos interesses estadunidenses no Oriente Médio – e em seu lugar colocar um governo fantoche, como fizeram no Iraque e no Afeganistão.

Mas o povo, o exército e o governo sírio resistem. Durante o período que estivemos em Damasco e nas diversas reuniões que fizemos com partidos políticos, representantes do governo e de organizações sociais, conhecemos um povo tenaz, unido, resistente e que sabe o que está em jogo nessa batalha. A prova disso é que desde o começo dos conflitos armados a popularidade de Assad aumentou.

A Síria resiste e imprime uma colossal derrota aos EUA, que pela primeira vez desde a débâcle da URSS viu-se obrigado a recuar em sua intenção de invadir um país considerado inimigo. Rússia e China vão ocupando cada vez mais um papel proeminente no cenário mundial e a unipolaridade estadunidense vem sendo substituída por um mundo multipolar, onde a Casa Branca não pode impor arbitrariamente seus interesses e agir como a “polícia do mundo”.

Cabe apenas ao povo sírio decidir seu caminho, sem intervenções externas alheias aos seus interesses. A batalha da Síria é, em última instância, a luta em defesa da soberania e da autodeterminação de todos os povos do mundo, inclusive o povo brasileiro.

* Diretor da União da Juventude Socialista (UJS) e compõe o Comitê Estadual do PCdoB na Bahia. É do Cebrapaz/BA e advogado.

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