Hora de confrontar a dita ‘guerra cultural’ na União Européia 

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“Moralocracia’ Europeia Super-Woke”* 

5/7/2021, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation

“O ‘Mundo globalista’, para os poucos que aspirem a se tornar nele imensamente ricos, é compreendido como
verdadeira cornucópia de incontáveis satisfações materiais.”

No fim do mês passado, a União Europeia (UE) colapsou por derretimento emocional. Aconteceu quando Charles Michel, presidente do Conselho, decidiu promover um debate de cúpula sobre LGBTQIA+[1] e valores da UE — em reação a uma carta de preocupações rascunhadas por 17 membros do Conselho.

Rutte, primeiro-ministro holandês, usou o momento para ‘falar como bomba atômica’ (como havia dito que falaria), e disse antes da reunião que: “Meu objetivo é pôr a Hungria de joelhos, nessa questão.” E, na própria reunião, Rutte ameaçou que a Hungria “tem de repelir” sua (suposta) “lei anti-gays” e respeitar direitos humanos fundamentais, “que não são negociáveis, – ou têm de deixar [a União Europeia]”.

Rutte reconheceu que “não posso pô-los para fora”. Argumentou, contudo, que a (suposta) lei ‘anti-gays’ de Orbán “contradiz seriamente os valores que a Europa defende”, e insistiu que esses valores não são discutíveis. Rute insistiu que se a UE não agir agora, deixará de ser união de valores, e tornar-se-á mero bloco comercial. O debate então mergulhou em águas as mais altamente pessoais e emocionais:

“Nos conhecemos, nós dois, há oito anos, mas isso me toca” – disse Xavier Bettel a Orbán na sala de reunião. O primeiro-ministro de Luxemburgo é casado com um homem, e foi um dos proponentes e iniciadores da carta de protesto dos 17 estados-membros. “Não me tornei gay. Sou como sou. Não é escolha. Minha mãe me odeia por isso. Isso [o texto da lei húngara] é muito ruim. É estigmatizante” – disse ele, segundo funcionários. “Respeito você, mas essa é uma linha vermelha. São direitos básicos, o direito de ser diferente”.

Pois aí está: a guerra das culturas e outra que sempre a acompanha – a guerra contra o “populismo” – sempre flui com violência tão logo se abrem as comportas. Como nos EUA, terá consequências profundas, e fará surgir agudas tensões internas.

O início dessa ‘guerra’ está nos anos 1990s, “quando Hungria e Polônia lideraram o leste da Europa numa terapia de choque econômico, promovendo reformas de mercado além do que os conselheiros ocidentais demandavam. Mas em termos culturais, a Direita polonesa e húngara escolheu via mais conservadora”.

Em particular, em vez de abrir as próprias fronteiras nacionais para compensar o declínio populacional, Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro, escolheu a família nuclear como rota chave para acelerar o crescimento nacional. Desde 2010, que marcou o início do papel de Orbán como primeiro-ministro, o número de casamentos entre húngaros cresceu 89,5%; e a taxa de fertilidade está aumentando.

Hungria e Polônia, seja como for, continuam a se ver, os dois países, como profundamente europeus, apesar de se terem afastado ainda mais da valorização do cosmopolitismo como principal objetivo cultural na UE, a ser realizado com fronteiras abertas, e a consequente mistura voluntária de grande número de povos diversos.

Orbán absolutamente não está só nessa posição tradicionalista. Em Roma, por exemplo, o Vaticano tomou a medida não usual de uma démarche diplomática com o governo italiano para que haja um projeto de lei. A chamada Lei Zan (nome do deputado gay ativista Alessandro Zan), foi aprovada ano passado na Câmara baixa italiana e desde então está sendo furiosamente discutida no Senado. A lei explicitamente define a violência contra pessoas LGBTQIA+ como crime de ódio, tornando esse crime equivalente a ataques racistas ou antissemitas, e prescrevendo duras penas para esses crimes. O líder do (Partido) Liga Norte , Salvini, disse que a lei puniria “os que acreditam que mãe é mãe e pai é pai”. Muitos italianos comuns concordariam com ele.

Mas até pais da elite liberal estão ansiosos – considere-se a démarche do Vaticano – ao ver que sua sonhada Comunidade liberal de Meritocracia vai-se convertendo numa espécie de “Moralocracia” super-woke. E pode ser só questão de tempo até que os exames acadêmicos sejam abolidos, em nome de combater o racismo. “E como você consegue pôr sua filha em Oxford, se ela é branca? Pagar cirurgião woke (será que o convênio cobre?) para extrair-lhe os seios, quando completa 16 anos – é o novo ‘cool’.” Abigail Shrier escreve sobre isso em seu novo livro Irreversible Damage: The Transgender Craze Seducing Our Daughters (Danos irreversíveis: Loucura Transgênero Seduz Nossas Filhas). Muitos pais aproximam-se do colapso.

E, como nos EUA, pais e mães tampouco se incomodam de suas crianças terem aulas de Teoria Crítica da Raça. Essa “teoria crítica” tem raízes numa escola de pensamento que se constituiu entre intelectuais marxistas pós-Revolução Russa, incomodados com o fato de que a Revolução Russa não ‘varreu’ a Europa, como Marx previra. Essa teoria revisionista ‘da Raça’ ‘atualizaria’ Marx, ao falar dos que ‘têm poder na sociedade e dos que não têm poder, apagando, com isso, qualquer ‘memória’ de alguma luta de classes.

Mas as duas variantes do Marxismo repousam sobre o dualismo do opressor versus oprimido, que visa a descrever o conflito entre estratos sociais. E está fazendo exatamente isso: com uma jovem geração separada e em oposição aos pais, os quais os jovens estão sendo ensinados a ver como racistas congênitos.

OK. Semana passada a UE declarou guerra a essas ansiedades paternas e maternas. E pendurou sua cartola, de vez, no cabide da ‘Teoria da Raça’ e do [movimento] LGBTQIA+.

J. Hopkins, que Matt Taibbi descreveu certa vez como versão pós-soviética de escritor de самиздат [Samizdat, aprox. “panfletos clandestinos”], alguém cujos insights são tão certeiros que, mais cedo ou mais tarde, todos, autor e leitores acabam presos; e forte elogio na opinião de Taibbi, vale anotar. E procurou mostrar o que ‘se passa’ aqui.

Yves Smith, escrevendo em seu prestigiado blog de economia Naked Capitalism, expande a profecia de Hopkins. Escreve ela:

Quando começo a explicar o trabalho de Hopkins a amigos e vizinhos liberais bem educados (os poucos que restam) [em NY], surpreendo-me eu mesma cada vez mais frequentemente, ante a constatação de que todos estão serenamente esquecidos de, e indiferentes a, algo que para mim é tão sinistro, tão ameaçador: o aumento da censura nos EUA – censura feita por liberais! (…)

“Vejam”, [Hopkins escreveu em 2017, primeiro ano do governo Trump] “Sei o que vocês estão provavelmente pensando. Mas não é que os liberais não deem importância, de fato, aos valores liberais fundamentais, como a liberdade de imprensa e de expressão – e tudo isso. O caso é que precisam desesperadamente retomar a Câmara de Representantes e o Senado para os Democratas, ano que vem, para conseguir o impeachment de Trump (…) “O objetivo de toda essa propaganda [especialmente tudo que tenha a ver com o ‘hacker’ russo] é deslegitimar Donald Trump (…) e profilaticamente reafirmar a ‘realidade’ e a ‘verdade’ das classes governantes neoliberais.”

Na prática, a narrativa de ‘Rússia roubou a eleição para Trump’ foi pedra jogada contra dois ‘pássaros’ ao mesmo tempo: um, Trump; mas o outro ‘pássaro’ foi Putin. Por quê? Bem… no capitalismo oligárquico, a grande riqueza de Putin é o martelo e a bigorna nas quais se modelam as narrativas ocidentais da ‘realidade’ política. Eles ‘modelaram’ cada ‘realidade’ sucessiva. Na Rússia e na China nada é assim. O poder dos líderes políticos naqueles países vence as maquinações oligárquicas. Nem sempre foi assim. Oligarcas cosmopolitas chegaram muito próximos de literalmente roubar a própria Rússia, no governo de Yeltsin; mas então Putin entrou em cena – para estragar ‘o plano’. Os oligarcas ainda são extremamente ativos.

Mas o principal tema de Hopkins é a Guerra ao Populismo (tópico que tanto absorveu as euroelites na cúpula do Conselho). E pergunta: Então como e por quê o capitalismo global não confrontado resultou nessa Guerra ao Populismo? “O problema [Hopkins respondeu] (…) bem (…) o problema é o povo”.

Hopkins escreveu, em The Last Days of the Trumpian Reich: “[O problema] não é o pessoal rico e poderoso como tal, ou o pessoal que os ricos precisam que continue a trabalhar e a consumir e a pagar juros de empréstimos, mas… vocês sabem, o problema é o ‘resto’ do povo. Não educados, não ‘conscientizados’, gente da classe trabalhadora. Os apaixonados por armas, os religiosos fanáticos. Os racistas, os das teorias da conspiração. O povo “deplorável”. O povo populista. O pessoal do qual eles já não carecem. Essa gente, sim, tem sido problema. Não são só obstáculo para o sistema: eles e elas estão ativamente interferindo no sistema, votaram a favor do Brexit, elegeram Donald Trump, recusaram-se a abandonar seus valores tradicionais e ideias fora de moda (em outras palavras, soberania nacional, liberdade de expressão e biologia de mamíferos) e não se renderam à ideologia capitalista global –, quer dizer: os “deploráveis” têm sido um pé no saco.”

Yves Smith novamente:

“O parágrafo [acima] ilumina e ao mesmo tempo é iluminado pelo trabalho de Thomas Frank, tão brilhantemente exposto – sobretudo em sua obra-prima, Listen: Liberal — o modo como, desde a eleição de nosso primeiro presidente neoliberal em 1992 (significativamente, o primeiro depois do colapso da URSS), os Democratas reinventaram-se como o partido da Classe Liberal Criativa Professional Gerencial: o partido da meritocracia credenciada, o partido, sobretudo, dos vencedores. Assim sendo, sim, de fato, os Democratas foram ensinados a ser abertamente hostis à classe trabalhadora, aos tais “deploráveis”, como Hillary Clinton denominou-os oficialmente; foram ensinados a ver neles “um pé no saco”, escreve Hopkins.

“E os deploráveis são mesmo enorme peso às costas do sistema capitalista global. (Muitos deles querem assistência pública e gratuita de saúde! Ora… Façam-me o favor!) Muitos deles votaram no socialista Bernie Sanders; e muito, muito pior, número ainda maior deles votaram no “suprematista branco e nacionalista branco ditador fascista nazi-hitler” (como disse Glenn Greenwald!), ou seja: Trump. E só são, realmente – aqui a conclusão – perdedores com “P” maiúsculo.

“Os liberais, os bem-pensantes (como Thomas Frank chamou-os) — os ‘vencedores’, isso é — quem lê The New York Times e The Washington Post e ouve a National Public Radio (NPR) e assiste à MSNBC e CNN, que frequentou bons colégios e obteve todos os tipos de credenciais profissionais, são, sim, suficientemente bem informados para saber que o futuro tem a ver, integralmente, com o capitalismo global. E sabem que, se agirem pelas regras, o capitalismo global tem lugar para eles. Além do mais, sabem (ou podem facilmente perceber), que o capitalismo global não tem lugar para derrotados na vida. Mas que merda difícil, essa, não é?”

Assim sendo, o Re-set – o ‘Novo Normal’ – foi desvelado em Davos, milhões de pessoas já viviam então realidade na qual os fatos absolutamente já não interessam, onde eventos que jamais aconteceram oficialmente – aconteceram. E outras coisas que obviamente aconteceram nunca aconteceram: não oficialmente, vale dizer – nunca passaram de teorias de conspiração, de “extrema-direita extremista, de “fake news” ou de “desinformação” ou coisas dessas – inobstante o fato de que as pessoas saibam que, sim, aconteceram.

Como então Davos proporia que se instilasse humanidade nesse ‘novo normal’? Ora! Será que, por acaso o homem de Davos deseja andar na direção oposta à da pureza epistemológica? Sim, é isso: aí se visa a gerar grande número de realidades contraditórias, não só ideologias contraditórias, mas realidades mutuamente excludentes, que de modo algum poderiam existir simultaneamente (…) mas ainda assim assustariam muito as pessoas.

Assim se chegaria à tal ‘página em branco’ mental, sobre a qual seria possível escrever as realidades deliberadamente tornadas fluidas de algum ‘gênero’ cosmopolitista, e de identidades autodefinidas.

Os Eleitos por oligarquias buscam hoje ‘esvaziar’ de qualquer valor – ‘desvalorizar’, nesse sentido – todos os valores nacionais remanescentes, desatar os laços da coesão nacional – porque seu objetivo lógico é não criar qualquer nova ideologia (da qual não carecem). Para impor uma única ordem global, mercantilista, mediante, primeiro, a monetização de qualquer ‘coisa’; e então a ‘capitalização’ de tudo, com tudo já convertido em novos ‘ativos’ financeiros.

Claro que até um Re-set carece de ‘narrativa’ para chamar de sua. Mas a questão aqui, das narrativas – de toda e qualquer narrativa do Establishment (exemplo aqui, da seção de “Reality Check” da BBC) –, é traçar uma Linha Maginot, uma fronteira ideológica defensiva, entre ‘a verdade’ definida pelas classes governantes e qualquer outra ‘verdade’ que desminta a narrativa construída pelo poder governante.

As ‘classes gerencialistas’ credenciadas (como a que governam Bruxelas) sabem que o sucesso delas mesmas é em parte possibilitado pelo ostensivo entusiasmo com que acolhem narrativas oficiais. E pela esperança coletiva que a todos anima, de que a tal narrativa ‘politicamente correta’ garantirá a eles mesmos espaço seguro e duradouro.

De um lado dessa Linha Maginot estão a sociedade ‘normal’, os empregos bem remunerados e com chances de avanços na carreira e todos os demais consideráveis benefícios que advêm de aqueles Privilegiados cooperarem com as classes dominantes. Do outro lado da mesma Linha Maginot estão a miséria, a ansiedade, a estigmatização social e profissional, e as mais variadas outras modalidades de produzir sofrimento e discriminação.

“De que lado do muro vocês desejam estar? Todos os dias, sob incontáveis formas, cada um de nós somos interpelados e temos de responder essa pergunta. Renda-se, conforme-se, e há lugar para você do lado de dentro. Recuse-se, e… ok, problema seu, boa sorte aí ao relento.”

Assim sendo, que feições terá a “Conquista de Absolutamente Tudo” pela oligarquia global? Um mundo de consumidores atomizados, despidos de todos os direitos e de todas as lealdades a família, clã ou nação ou religião ou, mesmo, de qualquer avaliação cultural significativa.

Ainda assim, um mundo globalista para os poucos que aspirem a se tornar nele imensamente ricos é compreendido como verdadeira cornucópia de incontáveis satisfações materiais. Um tapete mágico que amaldiçoa quem o abandone.

Mas fato é que as ansiedades estão em alta, mesmo entre os bilionários. O mundo tateia em novas direções incertas. Jogar as próprias fichas a favor dos “Mestres do Universo” pode acabar por se revelar reles e fugaz quimera.

Para ‘os muitos’, por outro lado, o Re-set tecno e robótico proclamado pelo pessoal de Davos será lugar de escravidão glorificada, vivida em desertos de isolamento social. Os que, dentre ‘os muitos’, viram o que o Re-set técnico reservava para eles não gostaram. Cheirava a totalitarismo, a tecno-feudalismo – e muitos ‘muitos’ começaram a se opor àquilo. Esses são hoje declarados ‘populistas’.

Implica que esses ‘populistas’ converteram-se em enorme problema para os próprios patrões. Não surpreende que a reunião de Cúpula do Conselho da União Europeia tenha sido tão acalorada, com tantos tão extremamente preocupados.*******

* A expressão “woke” opera muito bem como ‘palavra-guarda-chuva’. Infelizmente, é conceito nunca explicado aos não falantes do inglês norte-americano, com pós-graduação em estudos do inglês falado nos guetos novaiorquinos. Nessas condições, é conceito intraduzível para quem, em todo o mundo, não seja letrado em gírias das comunidades segregadas em New York. De modo geral, significa, como adjetivo, “pessoa alerta para as injustiças e discriminações na sociedade, especialmente o racismo”, como se lê no Dicionário Oxford. A expressão circula desde 1962. Passou a aparecer no Brasil suposto inteligentíssimo, associada ao movimento “Vidas negras importam!”, para dizer – sem dizer – que os negros norte-americanos ficariam satisfeitíssimos se a GG (Grande Grana) passasse a tratar os negros pobres como trata os pobres brancos, amarelos, pardos, peles vermelhas etc. Essa ideia é fascistizante e, posta a circular sem tradução no mundo não anglófono visa a disseminar a ignorância, ou é golpe [NTs].

[1] L = Lésbicas / G = Gays / B = Bissexuais / T = Transexuais / Q = Queer / I = Intersexo / A= Assexual / + = e outros.

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga

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