Futuro em perigo: conflito sírio mutila educação

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Por Fedra Rodríguez Hinojosa*

Estudos e debates conduzidos por educadores de diferentes correntes já demonstraram, em diversas ocasiões, que o espaço escolar vai muito além de um mero estabelecimento em que crianças e jovens passam boa parte de seus dias aprendendo a fazer contas ou lendo textos de assuntos variados. É consabido, então, que a escola funde os processos de ensino e aprendizagem, promovendo a formação de valores e perfis sociais. Norteados por tais ideias, governos de alguns países tornam a educação um alvo importante de seus esforços, dirigindo verbas e propondo agendas de incentivo à adesão escolar.

Desde a subida ao poder do partido Ba’ath na Síria, em 1º de março de 1966, instituições de ensino primário, secundário e superior têm sido assistidas de perto pelo governo, que responde pela administração, supervisão e planos curriculares. Embora alguns acusem o partido Ba’ath de usar a escola para manipular massas e instruir indivíduos para a perpetuação de suas ideias, é fato incontestável, até para os opositores, que os ba’athistas modificaram a educação na Síria.

O primeiro passo foi dado em 1967, quando o país assinou o Tratado de União Cultural Árabe com o Egito e a Jordânia, estabelecendo o sistema de ensino em vigência até hoje. Raymond Hinnebusch, em seu livro Syria: revolution from above (2002), aponta os efeitos quase imediatos: entre 1967 e 1977, o número de estudantes e professores do ensino fundamental ao superior aumentou em 85%, e o acesso à educação tornou-se mais equilibrado entre áreas urbanas e rurais.

Durante o governo de Hafez al-Assad (1971-2000), as políticas de estímulo foram ampliadas; o chamado Quarto Plano Quinquenal (1976-1980) e um de seus objetivos, a completa adesão de estudantes do sexo masculino, foi alcançado. Outro foco do plano era o combate ao analfabetismo: em 1981, estimava-se que 2 milhões de sírios, ou 42% da população acima de 12 anos de idade, eram analfabetos. Dois anos mais tarde, 57 mil adultos já sabiam ler e escrever e mais de 109 mil estudantes encontravam-se regularmente matriculados em universidades públicas. Uma década depois, esse valor já havia duplicado.

O panorama continuou o mesmo a partir do ano 2000, quando o atual presidente, Bashar al-Assad tomou posse. Nesse mesmo ano, a Síria assinou um acordo de cooperação internacional com o Líbano para intercâmbios na educação, e, a partir dessa data, o governo sírio aumentou os gastos com escolas e universidades, seguindo a mesma linha de incentivo estabelecida em 1967. A educação, então, tornou-se motivo de orgulho para o país e a menina dos olhos do governo: as escolas primárias registravam uma taxa de 97% de frequência e as secundárias, aproximadamente 67%, valores acima dos verificados em outros países árabes como o Iraque e o Egito.

Entretanto, a partir de março de 2011, com a deflagração do conflito, o cenário mudou por completo: em quase três anos, mais de 4000 prédios escolares foram inteiramente destruídos, e muitos que ainda estão em pé são usados como abrigos para civis ou esconderijos de grupos armados. Em estimativa feita pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (UNHCR), quase 600 mil crianças e adolescentes estão fora das escolas e o abandono dos cursos superiores por estudantes universitários atinge níveis alarmantes. O medo, a destruição, a falta de perspectivas, o desemprego e os problemas psicológicos trazidos pela guerra são os principais fatores que ameaçam a educação e, portanto, o futuro da Síria.

Contudo, a apresentação destes números e dados seria apenas um informe frio a respeito dos efeitos diretos da guerra na formação da juventude daquele país. Organizações internacionais e instituições voltadas para a ajuda humanitária, como a World Vision e a International Save the Children Alliance, afirmam que é primordial tomar providências para tentar reverter o processo e assegurar que o país possa se reerguer quando a tempestade passar.

A primeira medida consiste em traçar um planejamento a longo prazo para a educação de crianças e adolescentes sírios ainda em território nacional, bem como dos refugiados palestinos que ali moram: escolas especializadas, preparadas para o ensino de ofícios técnicos, devem ser uma das prioridades, combinando formação profissional, garantia de mercado de trabalho e reconstrução da nação. Esse conjunto fornece, consequentemente, um dos elementos essenciais neste momento: esperança.

Longe de casa, jovens sírios refugiados em países vizinhos, como o Líbano, a Turquia e a Jordânia, também têm dificuldades para frequentar instituições de ensino, em virtude das diferenças curriculares, variações do árabe dialetal e limitações no espaço físico. A gravidade da situação requer uma ação imediata, como a disponibilização de recursos financeiros para os países anfitriões, que estão neste momento sob uma forte pressão. A distribuição de verbas permitiria a instalação de escolas pré-fabricadas, a contratação de professores e a aquisição de material pedagógico, assegurando, igualmente, que a problemática dos estudantes refugiados seja minimizada e um possível prejuízo na educação dos jovens nativos seja evitado, fato que comprometeria ainda mais o drama da região.

A última disposição citada pelo mais recente relatório da UNICEF, em parceria com a World Vision, Education Interrupted, de dezembro de 2013, poderia (e deveria!) estar em primeiro lugar: o apoio psicológico às crianças sírias, dentro e fora do país. Muitas delas foram recrutadas por milícias, outras foram usadas como escudos humanos, e praticamente todas perderam algum familiar de forma violenta, presenciando os horrores da guerra sem qualquer proteção. Não seria possível formar um indivíduo capaz de auxiliar na reconstrução de seu país, mesmo oferecendo-lhe oportunidades de desenvolvimento profissional, se ele próprio ainda está em fragmentos. Deste modo, as novas escolas deverão disponibilizar psicólogos e psicopedagogos, aptos a colaborar no processo de volta às salas de aula e, principalmente, na reestruturação emocional das vítimas do conflito.

É evidente, entretanto, que as propostas acima descritas não são mais que paliativos e que a solução ideal é o fim da crise. No entanto, se essa solução não parece estar ao alcance neste exato momento, devemos, ao menos, preservar o patrimônio da infância e da juventude, resgatando os sonhos em meio aos destroços.

Versão em Inglês: Threatened future 

*Doutora em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina e Universidade de Sevilha, Espanha, Fedra Rodríguez Hinojosa atua como tradutora, redatora, revisora e pesquisadora acadêmica no campo da Literatura e Cultura Árabe. Integra o corpo editorial e a equipe de pareceristas de revistas e sites como a (n.t.) Revista Literária em Tradução, a Catalysta Ed., de Nova York, USA e a African Studies Review, da Universidade de Massachusetts, USA.

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