Europa, em momento maquiavélico 

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21/12/2020, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation

“Todos os caminhos levam a Roma”
[25/12/2020, entreouvido na Vila Mandinga]*

 

“O mais significativo sobre as eleições nos EUA (…) foi o movimento de pôr para escanteio qualquer ilusão de democracia. E a violenta demonstração de que o poder real é exercido por uma gangue de bilionários. (…)

(…) China, Rússia, América Latina – e o Oriente Médio, que sofreu a pior parte das guerras e do sítio dito ‘moral’ que lhes aplicaram os EUA e a Europa —  já perceberam. Nunca mais se deixarão enganar no carnaval [de autoritarismo imbecil e ditatorial autoproclamado] ‘moral’ inventado por europeus e norte-americanos.”
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Ainda é cedo demais para dizer, mas talvez a eleição nos EUA seja o início de uma nova “virada” (no sentido de Fourth Turning, “A Quarta Virada”). Claro, o que acontece nos EUA é agora o principal foco de muita gente nos EUA, mas ainda que aconteça ao longo do ano que vem – as sementes semeadas dia 3/11 e respectivas consequências, nos levam para um momento crucial.

Será que o projeto de centralizar um ‘despertar’ [orig. ‘wokedom’] autodeclarado progressista nos EUA Democratas e na Europa de Merkel tem a ‘pegada’, o grit para perseverar – ou seus líderes se curvarão diante das crises que se aproximam – e da concomitante fúria popular?

O Projeto tem três eixos em torno dos quais giram as forças principais: centralizar as Big Tech e os veículos da grande mídia comercial (ing. midia mainstream, MSM); concentrar num Banking Central a tecnologia financeira e de banking; e Merkel centralizando a política na Europa, à cabeça de um império que se apresenta para ocupar ‘o altar’ da mais imaculada moralidade.

O mais significativo sobre as eleições nos EUA; o mais significativo sobre os últimos quatro anos em Washington – anos confusos, desorganizados, aplicados a tornar importante o que não tem importância alguma –, foi o movimento de pôr para escanteio qualquer ilusão de democracia. E a violenta demonstração de que o poder real é exercido por uma gangue de bilionários.

Os europeus, que contam com praticamente nenhum veículo noticioso independente, podem ser os últimos a perceber.

Mas não há dúvidas de que China, Rússia, América Latina – e o Oriente Médio, que sofreu a pior parte das guerras e do sítio dito ‘moral’ que lhes aplicaram os EUA e a Europa – sem dúvida alguma já perceberam e tomaram nota. Nunca mais se deixarão enganar no carnaval [de autoritarismo imbecil e ditatorial autoproclamado] ‘moral’ inventado por europeus e norte-americanos.

Podemos olhar para trás e concluir que a era pós-guerra chegou ao fim efetivamente no dia 3/11/2020.

O que aconteceu? Muitos norte-americanos, se perguntados sobre o que os fez norte-americanos, é provável que resmunguem alguma coisa sobre a Constituição, sobre as Emendas 1ª e 5ª, sobre o ethos fundacional da nação. Mas as cortes de Justiça e as instituições dos EUA ‘andaram adiante’ sob a influência de um ativismo que emenda as velhas leis, para introduzir ‘novos valores.

Mesmo a Suprema Corte, com três juízes nomeados por Trump, já não vê a Constituição como ‘contrato’ entre 50 estados soberanos. Agora, o derradeiro tribunal parece ser o da opinião pública (roteirizada e dirigida pelas Big Tech e pela mídia comercial mainstream). Norte-americanos que esposaram aquela noção tradicional de identidade descobriram que não passa de mito. Sentem que sua própria criatura virou-se contra eles.

Então, as eleições – o mecanismo para a transição do poder: semana passada, Fox News distribuiu pesquisa segundo a qual 68% dos Republicanos creem que o presidente Trump foi reeleito e que a reeleição foi-lhe roubada. 36% do total de eleitores norte-americanos dizem que acreditam que o presidente tenha sido vítima de roubo eleitoral. Independente de se alguém acredite que houve ou que não houve fraude eleitoral decisiva, os EUA – Avatar da democracia – estão desembrulhando todo o seu vasto ferramental de fraude eleitoral, e lavando essa roupa suja bem aí, à vista de todos.

É possível que em um ano, pouco mais pouco menos, os EUA conheçam alguma investigação. A investigação descobrirá que, sim, houve fraude. Mas então o presidente – Biden – dirá simplesmente aos norte-americanos que as lacunas na lei ‘foram sanadas’. Quem acreditará em Biden?

Por hora, as Big Tech e os veículos da mídia comercial mainstream apenas repetem que ‘não há provas’ e repetidamente apagam ou censuram postados. Em seguida, lavam, enxáguam e apagam tudo que não confirme o que eles mesmos tenham determinado sobre qual seja a melhor saúde dos norte-americanos, sobre a pandemia ou sobre ‘interesses’ a favor da vacina. Norte-americanos ‘aprendem’ que têm de obedecer – e exibir um certificado de vacina para provar que obedecem. Mas… obedecerão?

E os magos do Banco Central – no frigir dos ovos – estão admitindo as distorções econômicas e sociais massivas perpetuadas por suas próprias políticas, e aceitam também que os encurralaram, deixando-os sem ferramentas para abrir qualquer via de escape. Só podem continuar a fazer sempre o mesmo (até que alguma coisa ceda). E quando ceder… terão as elites o ‘aço’ para fazer frente à fúria?

Por fim, o movimento de pivô na União Europeia: Perry Anderson, em artigo intitulado The European Coup (O Golpe Europeu) resenha livro de autoria de um ‘verdadeiro crente’ e insider na União Europeia – van Middelaar (que foi do gabinete de Van Rompuy, primeiro presidente em tempo integral do Conselho Europeu):


“Durante setenta anos’, o livro começa, ‘predominaram as precondições do milagre: isto é, desapareceu da vista uma sociedade livre – e a conversa na Europa era só crescimento, educação, atendimento à saúde e coisas assim, com pouca atenção às questões abrangentes de ‘estado e autoridade, estratégica e guerra, segurança e fronteira, cidadania e oposição’. Então, de repente, vieram as crises, uma após outra: ‘bancos colapsaram, o euro balançou, a Rússia atacou a Ucrânia e anexou a Crimeia, grandes números de pessoas desesperadas tentaram entrar na Europa, e Donald Trump puxou o tapete da segurança norte-americana sobre o qual se instalara o continente europeu.”

A resposta a essa torrente de males, como adiante se viu, seguiu efetivamente o manual norte-americano: ‘infiltração’ [orig. ‘entryism’] por atores ideologicamente alinhados com pensamento norte-americano, nas instituições e na mídia europeias, acompanhada de desatenção institucional a velhas regras, que passavam a ter de ser atualizadas em relação à agenda progressista de Bruxelas:


“Primeiro vieram os problemas com a moeda única. E a declaração de Merkel, de que ‘se o euro fracassa, a Europa fracassa’ foi decisiva – demarcando o crescimento do poder da Alemanha na União. As medidas subsequentes respeitaram o Tratado de Maastricht? Não, e melhor assim, ‘a “Europa” triunfou sobre Maastricht.’ Porque as palavras ‘aparentemente ingênuas’ de Merkel esconderam verdade raramente percebida: ‘os estados comprometeram-se na fundação da União, não só com aderir à lei da União, mas com aderir à existência continuada da União como tal. Em situações de emergência, portanto, quebrar as regras seria na verdade respeitar o contrato.’”

“E valia o mesmo, argumentava van Middelaar, para as duras medidas financeiras e políticas tomadas por Berlim, Frankfurt e Bruxelas para expulsar governos fracos no sul da Europa, atacar Varoufakis, o jogador, e circunscrever a chantagem da oposição britânica ao Fiscal Compact. Responsabilidade e solidariedade eram ‘melodias raízes’ da Union, conduzindo a Europa para longe dos ‘incalculáveis riscos’ de a Grécia sair do euro …

“Por fim veio o duplo golpe do Brexit e Trump … E lá se foi van Middelaar … e a Europa nesse momento Maquiavélico, nas memoráveis palavras de Merkel, mostrou-se capaz de ‘tomar seu destino nas próprias mãos’. Em Paris, Macron saltou adiante ao som da ‘Ode à Alegria’, e a União Europeia uniu-se por trás de uma ordem para punir os britânicos pela deserção. A posição era perfeitamente racional: ‘Dito diretamente, não seria do interesse da União que as coisas saíssem bem no Reino Único pós-Brexit (…) Então, Donald Tusk vetou a Irlanda, no processo de saída, com Bruxelas compactamente no apoio a Dublin. Mas, sobretudo, se tratava do despertar do poder decisivo da Alemanha nas apostas em questão, que fizeram do Brexit o momento mais alto da União”.

O livro de Middelaar conclui que, naquele dia, a fábrica de leis da Comissão em Bruxelas havia feito serviço de primeira, ao revelar ao público em geral ‘o quanto é dificílimo escapar de suas garras’. “Mas – embora tecnicamente ainda conserve o monopólio da iniciativa legislativa –, aquele papel passou para o Conselho (de ministros) da União Europeia. Se estados-membros (decidissem oferecer) aos respectivos povos papel poderoso no mundo, era vital a ‘emancipação do executivo’ da União” (grifo meu).


“O Conselho controla ‘Chefsachen’ [al. assuntos executivos] – as questões de alta política, não a baixa regulação – em sessões fechadas. Nessas, van Middelaar sabe do que fala, todos os 28 chefes de governo tratam-se pelo primeiro nome, e pode acontecer de se verem em perfeito acordo em decisões nas quais jamais imaginaram concordar, antes de aparecerem para uma ‘foto de família’ diante das câmeras de mil jornalistas reunidos para ouvir as notícias, cuja presença torna ‘impossível o fracasso’, dado que todas as reuniões (houve uma única incômoda exceção) termina com mensagem coletiva de esperança e decisão. Tendo ao lado seu fiel ‘Eurogrupo’ de ministros das finanças e, principalmente, o Banco Central Europeu, ‘versão monetária da aprovação da ‘nova política europeia’ capaz de ação igualmente firme em defesa da moeda única, não se trata de Conselho a ser premiado com medalhas acadêmicas de mera legitimidade. O que veste agora é coisa mais antiga, mais firme, com espaço para muito mais – o uniforme da autoridade(grifo meu).

Bem, graças ao ‘Great Disrupter’ [Grande Atrapalhador] (Trump), como David Stockman costuma chamá-lo, muitos norte-americanos chegaram à firme conclusão de que seus votos valem perfeitamente nada aos olhos dos que estão ao leme do ‘projeto de centralização’. Que não há como pedir contas àquelas autoridades, e que todas as vantagens revertam a favor da oligarquia. Sentem-se destituídos dos seus direitos – e estão zangados.

Mas o que experienciam tão traumaticamente é a transição planejada da ‘política das leis’ para a era do consenso por coerção – como Middelaar com tanto orgulho delineou.

O modus operandi do ‘Projeto’ de um movimento aparentemente ‘despolitizado’ rumo à centralização, contudo, colidiu frontalmente com o ‘rochedo’ Trump, sempre imprevisível. Trump planeja dirigir diretamente através – e por cima – da ‘fraude’ eleitoral.

Ainda que ultrapasse o dia 6 de janeiro (ou a posse de Biden), parece claro que Trump está decidido a arrancar as entranhas da eleição – com todas as impressões digitais – e expor tudo à luz. Essa eventualidade não estava integralmente prevista: estava previsto que, sob pressão, Trump acabaria por ceder. É pois claro que a coisa está longe de acabar. A eleição e Biden pessoalmente perderam qualquer legitimidade para metade dos EUA: é possível que a barragem montada pela mídia hegemônica consiga conter toda essa ira?

Usualmente se pressupõe que tais ‘golpes’ avancem silenciosamente – com as decisões apresentadas como necessidades ‘despolitizadas’ e impostas por eventos emergentes (a Covid-19 é claramente o exemplo mais óbvio). – Com isso, todas as oposições são apresentadas como ‘extremistas’, ou mesmo como ‘risco de segurança’ (hoje, os ‘anti-vacinas’ são exemplo evidente).

Contudo, os riscos são ligados ao estratagema dos EUA – ‘consenso por coerção’. Plataformas tech e a tática similar de Merkel de declarar medidas ‘sem alternativa’ (al. alternativlos; equivalente a ing. “There Is No Alternative”, TINA) – uma das fórmulas preferidas de Merkel. Essa estratégia de ‘fatos consumados’ repetidos infindavelmente alimenta o ceticismo na opinião pública. O povo ouve tudo isso como ‘goste ou engula sem gostar’ [ing. ‘like it or lump it’] e enfurece-se ainda mais.

A política norte-americana hoje não é só polarizada: é envenenada. Mas Merkel e a Alemanha (com a União Europeia), em movimento concertado, insistem – posicionando-se na vanguarda dos que reconheceram quase imediatamente a eleição de Biden. Foi totalmente práxis da União Europeia: o tema da despolitização vem invariavelmente acompanhado pelo mantra de manter ‘a solidariedade e a responsabilidade’.

O ministro de Relações Exteriores da Alemanha Heiko Maas imediatamente acusou Trump de estar irresponsavelmente “jogando gasolina no fogo”, e criando uma situação de espiral descendente, que potencialmente levaria a o que, disse a ministra da Defesa Annegret Kramp-Karrenbauer, seria “uma crise constitucional”. E Angela Merkel declarou “medonho” o comportamento de Trump.

Com o precoce entusiasmo pela ‘vitória’ de Biden, Merkel deixou ver que a União Europeia ‘tem lado’. Mas tender tão explicitamente ao Partido Democrata mostra ao mundo que a UE é parceira incondicional do Estado [profundo] Democrata [orig. Blue State] – do que ninguém no mundo não-ocidental [orig. non-West] tinha qualquer dúvida. A UE de Merkel seguiu caninamente os EUA nas sanções contra Rússia, Síria et alii – e tem, de fato, aproveitado as sanções norte-americanas contra o mundo para, de alguma forma, fazer crer que a UE estaria plantada na mais alta moralidade (apesar de se aliar a quase todas as ações dos EUA).

Os sinais de um novo paradigma pós-eleições são] democrata evidentes: Hungria e Polônia tomaram como reféns o orçamento da UE e o Fundo de Recuperação – e Merkel cedeu.

Outra palha ao vento é a evidência de que a China, farta de ouvir ordens da Austrália, que repete todos os chavões anti-China dos norte-americanos, já dá sinais claros de estar planejando reduzir suas importações de carvão australiano. Acontece na sequência de movimentos similares, de Pequim, para reduzir o comércio de outras mercadorias chaves: vinho, cevada, pescado e madeira.

O significado final do 3 de novembro para os EUA é questão ainda em aberto. E para a UE o 3 de novembro também tem significado profundo. Impossível escapar disso.

A eleição presidencial nos EUA pôs os holofotes da opinião pública sobre o projeto europeu, tanto quanto sobre o projeto dos EUA – também porque têm ambos a mesma substância. O meme do ‘alto padrão moral’ “liberal” está desmascarado como ilusão (a UE está umbilicalmente ligada ao Estado Profundo norte-americano); o meme da ‘solidariedade e responsabilidade’ está nu; o alinhamento com sanções e sítios forçados pelos EUA pode revelar-se grave vulnerabilidade (especialmente no que tenha a ver com a China); e o estratagema do ‘consenso por coerção’ é desacreditado diariamente pela mão pesada dos senhores Besos e Zuckerman.

Outra vez a pergunta é: essas elites são tão sólidas e inabaláveis quanto parecem? Quando a crise da recessão realmente atacar, e a fúria popular explodir, essas elites conseguirão manter-se compostas, ou perderão a mão? Trump e apoiadores podem concluir que esse, precisamente, será o momento de tomar as ruas.*******

* Epígrafe acrescentada pelos tradutores.

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga

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