Entrevista do Presidente Assad ao Clarín

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Damasco. Enviado Especial do Clarín Argentino – 19/05/13 –

Bashar Al Assad, o homem forte de Síria, possui um olhar tranquilo que contrasta com o lugar que a História lhe reservou. Ou talvez não seja calma porque também parece que seu olhar está aprisionado num assombro que não acaba. Nesta extensa entrevista, a primeira com a mídia hispana desde o início da guerra, Assad manteve esse olhar para negar qualquer possibilidade de renúncia, negar as denúncias de uso de armas químicas e até questionar o número de 70.000 mortos denunciado pela ONU. A reportagem foi feita num palácio em Damasco, enquanto se ouvia o som da artilharia e o disparo dos morteiros à distância.

Clarin: Por que a crise síria tem se prolongado e aprofundado de forma diferente daqueles que aconteceram em outros países árabes?

Presidente: Há múltiplos elementos internos e externos que têm contribuído para aprofundar a crise, o principal é a intervenção estrangeira e depois porque os cálculos dos países que queriam intervir na Síria foram mal feitos. Eles pensaram que o plano poderia ser implantado em questão de semanas ou meses, mas isso não aconteceu, o que tem acontecido é que o povo sírio está resistindo e vamos continuar resistindo. Para nós se trata da defesa da nossa pátria.

Clarin: Sabe que segundo a ONU esta guerra já provocou mais de 70.000 mortos?

Presidente: Teríamos que perguntar aos que apresentam estas cifras sobre a credibilidade de suas fontes. Toda morte é horrível, mas muitos dos mortos são estrangeiros que vieram assassinar o povo sírio. E também não podemos esquecer que tem muitos sírios desaparecidos. Qual é o número de sírios mortos e qual o número dos mortos estrangeiros? Quantos desaparecidos há? Não podemos dar uma cifra exata. E obviamente essas cifras mudam constantemente, pois os terroristas matam e muitas vezes enterram suas vítimas em valas comuns.

Clarin: Descarta que pode ter havido uso de força excessiva e desproporcional por parte de suas tropas na repressão?

Presidente: Como podemos determinar se houve força excessiva ou não? Quais seriam os parâmetros? É pouco objetivo falar nesses termos. Cada um responde de acordo ao tipo de terrorismo que tem que enfrentar. No começo era terrorismo local, depois começaram a receber cada vez mais apoio estrangeiro e o tipo de armas que recebiam mudou, ficaram armas mais sofisticadas. O debate aqui não é o volume da força utilizada, ou o tipo de armamento, senão o volume do terrorismo que estamos sofrendo  e consequentemente como devemos reagir.

Clarin: Não houve, no início da crise, a possibilidade de um diálogo para evitar este desenlace?

Presidente: No começo da crise as demandas eram reformistas, mas isso era apenas aparentemente uma fachada ou camuflagem para que pareça que se tratava de uma simples questão de reformas. Fizemos as reformas, mudamos a Constituição, mudamos as leis, acabamos com o Estado de Emergência e anunciamos um diálogo com a oposição, mas a cada passo que dávamos mais se incrementava o terrorismo. A pergunta que cabe é: Qual é a relação entre terrorismo e reformismo?

Clarin: O que responde?

Presidente: O terrorismo não pode ser o caminho para as reformas. Que relação tem um terrorista checheno com as reformas na Síria? Que relação tem um terrorista vindo do Iraque, do Líbano ou do Afeganistão com as reformas na Síria? Ultimamente temos registrado 29 nacionalidades diferentes combatendo na Síria. Qual é a relação entre eles todos e o reformismo interno? É algo que não tem lógica! Temos feito reformas e temos iniciativa política para o diálogo. A base para qualquer solução política é o que quer o Povo Sírio e isto se rege pelas urnas. Não tem outra forma. Em relação ao terrorismo, ninguém quer dialogar com o terrorismo. O terrorismo agiu também nos EUA e na Europa e nenhum governou dialogou com os terroristas. Dialoga-se com forças políticas, não com terroristas que degolam, matam e usam armas químicas.

Clarin: O senhor denuncia a existência de milícias estrangeiras em Síria mas garantem que há também combatentes do Hezbollah e do Irã?

Presidente: A Síria, com seus 23 milhões de habitantes, não precisa de apoio humano de qualquer país que seja. Temos exército e forças de segurança. Não precisamos do Irã ou do Hezbollah para isso. Não temos combatentes de fora de Síria. Tem sim, pessoas aqui do Hezbollah e do Irã mas eles tem vindo ao pais desde antes da crise.

Clarin: Entre as reformas da Constituição que comenta existe uma que contemple a liberdade de imprensa?

– Talvez saiba que temos uma nova lei de imprensa que foi decretada junto com um pacote de leis…

Clarin: Não.

Presidente: Partimos do princípio maior que é o diálogo entre as forças políticas. Este diálogo conduziria a uma Carta Magna que exige um referendo popular. Esta Constituição dará maiores liberdades. As leis serão feitas baseadas na nova Constituição e obviamente inclui liberdade política e de imprensa. Mas não se pode falar em liberdade de imprensa sem que exista liberdade política em geral.

Clarin: Como avalia a conferência sobre Síria planejada para final deste mês de Junho pela Rússia e EUA?

Presidente: Vemos com bons olhos a aproximação russo-americana e esperamos que isto signifique um encontro internacional para ajudar aos sírios. Mas não acreditamos que muitos países ocidentais desejem verdadeiramente uma solução para a Síria. Não acreditamos que as forças que prestam apoio aos terroristas desejem uma solução. Nós apoiamos esta aproximação (Rússia-EUA) e a aplaudimos mas devemos ser realistas. Não pode haver uma solução unilateral em Síria, é preciso de duas partes ao menos.

Clarin: São as forças que o combatem ou as grandes potências que não querem uma solução?

Presidente: Na prática essas forças opositoras estão vinculadas a países estrangeiros e por tanto não tem decisão própria. Vivem do que é enviado de fora, recebem verbas e fazem o que é decidido por esses países. Ambos é a mesma coisa e são eles que anunciam que não desejam diálogo com o Estado Sírio, isto foi dito por última vez na semana passada.

Clarin: Quando se fala em diálogo a quem se refere no outro lado?

Presidente: Nós optamos pelo diálogo, com quem queira dialogar, sem exceção. Sempre e quando Síria tenha sua decisão livre e soberana. Mas isto não inclui os terroristas ou Estados que dialogam com terroristas. Quando se deponham as armas e se acuda ao diálogo não teremos problemas. Acreditar que uma conferência política vai deter o terrorismo é irreal.

Clarin: Que possibilidade há de que o diálogo inclua essas forças externas como EUA, por exemplo, que supostamente apoiam essas pessoas (terroristas)?

Presidente: Nós já dizemos, desde o começo, que dialogamos com qualquer força do país ou do exterior com a condição de que não empunhem armas. Essa é a única condição. Não temos outras condições para o diálogo. Inclusive tem forças que são procurados pela justiça optamos por não tomar nenhuma medida contra ninguém para deixar espaço para o diálogo e ouvir todos os setores. Será o povo sírio quem vai decidir quem é patriótico e quem não é. Nunca dissemos que queríamos a solução que fosse conveniente para o governo, não queremos impor o que nós pensamos como o melhor. Essa solução cabe ao povo sírio.

Clarin: Com relação à conferência internacional …

Presidente: Para nós, o aspecto básico a tratar em qualquer conferência internacional é deter o fluxo de dinheiro e de armas a Síria e deter o envio de terroristas que vem da Turquia com financiamento de Qatar e outros estados do Golfo como Arábia Saudita. Enquanto existam países como Qatar e Turquia que não tem interesse em deter a violência na Síria, ou na busca de uma solução política, o terrorismo continuará.

Clarin: Onde coloca Israel nesta crise?

Presidente: Israel apoia diretamente e por duas vias aos grupos terroristas, presta apoio logístico e os instrui sobre quais devem ser os locais que devem atacar. É por isso que os terroristas atacaram uma estação de radar do sistema de defesa antiaérea que detecta qualquer avião que vem de forma, especialmente desde Israel.

Clarin: No caso do diálogo avançar é possível falar num calendário para a entrega de armas por parte da oposição?

Presidente: Eles não são uma entidade, são grupos e bandos. Não são dezenas mas centenas. São misturas, cada grupo tem seus líderes. São milhares e quem pode unificar milhares de pessoas? Esta é a pergunta. Não podemos falar de um calendário quando fica difícil saber com quem lidamos. Se eles tivessem uma estrutura unificada então poderíamos dar uma resposta a esta pergunta.

Clarin: Está disposto a sair de cena para conseguir uma solução definitiva? Está disposto a renunciar?

Presidente: Minha permanência ou não, depende do povo sírio. Não da minha decisão pessoal de ficar ou sair. É uma decisão do povo. Se eles querem se fica, se não se sai. O tema depende da Constituição, das urnas. Nas eleições de 2014 o povo decidirá.

Clarin: Já considerou a alternativa de se demitir como condição para o fim do conflito?

Presidente: Sou um presidente eleito e é o povo quem decide minha permanência. Agora, que alguém diga que o presidente sírio tem que sair porque EUA quer ou os terroristas o exigem é inaceitável.

Clarin: Barack Obama tem dado sinais que não considera provável intervir no seu pais mas seu ministro, John Kerry, afirmou que qualquer acordo deve incluir sua saída do cargo.

Presidente: Não sei se Kerry ou outro tem recebido um mandato do Povo Sírio para falar em nome desse povo, sobre quem deve sair ou ficar. Temos dito reiteradamente que qualquer decisão em relação às reformas em Síria ou qualquer ação política são decisões sírias e não está permitido nem a EUA, nem a nenhum outro estado, intervir nelas. Somos um estado independente e não aceitamos que ninguém nos defina o que devemos fazer, nem EUA, nem ninguém. Por tanto essa possibilidade a determina o povo sírio. Iremos a eleições, apresentaremos candidatos e está a possibilidade de vencer ou não. Então não se pode ir a essa conferência e decidir antecipadamente algo que o povo ainda não decidiu. Outro aspecto é: o país está em crise e quando o barco se encontra no meio de uma tormenta, renunciar significa fugir. Devemos devolver o barco ao lugar correto e então se decidirão as coisas. Não sou uma pessoa que foge de suas responsabilidades.

Clarin: França, Inglaterra e o próprio Kerry denunciaram que seu exército usou armas químicas, gás sarin, contra a população civil…

Presidente: Não devemos perder tempo com essas declarações. As armas químicas são armas de destruição massiva. Estão dizendo que as usamos em zonas residenciais. Se uma bomba nuclear fosse jogada sob uma cidade e o saldo fosse de dez ou vinte pessoas por acaso daria para acreditar? Usar armas químicas em zonas residenciais significa assassinar milhares ou dezenas de milhares em minutos. Quem poderia esconder algo dessa dimensão?

Clarin: A que se deve essa denúncia, então?

Presidente: Este tema das armas químicas surgiu quando os grupos terroristas em Aleppo e Khan Al-Assal fizeram uso desse tipo de armas. Recolhemos as provas: o míssil usado e as substâncias químicas. Analisamos essas substâncias e enviamos uma carta ao Conselho de Segurança da ONU para que enviassem uma missão para verificar. EUA, França e Inglaterra se viram numa situação constrangedora e disseram que queriam enviar uma missão que investigue sobre armas químicas em outras regiões onde eles alegam que foram usadas. Fizeram isso para não ter que investigar o local onde realmente aconteceu o fato. Um membro dessa comissão, Carla Ponte, anunciou que foram os terroristas que usaram as armas químicas mas nem a ONU deu ouvidos a essa declaração.

Clarin: Acredita que essa denúncia poderia abrir caminho para uma intervenção militar em Síria?

Presidente: Se este assunto se usa como preliminar para uma guerra contra Síria é possível. Não esquecermos, do que aconteceu no Iraque. Onde estavam as armas de destruição em massa de Saddam Hussein? Ocidente mente e falsifica para desatar guerras, é o seu costume. Obviamente qualquer guerra contra Síria não será fácil, não será uma excursão. Mas não podemos descartar a possibilidade que nos ataquem e iniciem uma guerra.

Clarin: Em que se baseia?

Presidente: Fomos bombardeados por Israel. É uma possibilidade vigente especialmente depois que conseguimos desarticular os grupos armados em muitas regiões da Síria. Então, esses países encomendaram a Israel que fizessem isso para elevar a moral dos grupos terroristas. Supomos que em algum momento se produzirá algum tipo de intervenção mesmo que seja limitada.

Clarin: Está dizendo que tem controle sobre a situação mas enquanto conversamos se ouve o estrondo de artilharia na periferia da cidade.

Presidente: O termo controlar ou não controlar se usa quando se livra uma guerra com um exército estrangeiro. Mas a situação é totalmente diferente. Os terroristas invadem regiões dispersas e depois fogem para outras regiões. Movem-se em regiões amplas e obviamente nenhum exército no mundo consegue estar presente em todos os cantos.

Clarin: Acredita realmente que os americanos cooperam com Qatar ou Arábia Saudita para que tome o poder um regime ultra-islâmico wahabita em Síria?

Presidente: O Ocidente só importa que os governos sejam leais. Eles querem governos servis que façam o que eles querem independentemente de sua forma. Mas o que aconteceu no Afeganistão refuta isso. Eles apoiaram o Talibã e o 11-S pagaram um preço altíssimo. O perigo disto é que os estados wahabitas querem difundir o pensamento extremista em toda a população e em Síria temos um Islã moderado e resistiremos a isso com todos os meios.

Clarin: Nas eleições presidenciais de 2014 haverá observadores internacionais e será permitido o livre acesso da imprensa mundial para cobrir o evento?

Presidente: Para ser sincero, o tema dos observadores internacionais é uma decisão do pais pois uma parte do povo não tolera a ideia de que exista esse monitoramento por uma questão de soberania nacional. Não temos confiança em Ocidente para essa tarefa. Se aceitarmos que venham observadores, serão de países amigos como Rússia ou China, por exemplo.

Clarin: China?

Presidente:

Clarin: Na entrevista que Clarin fez com o senhor em Buenos Aires, falou com firmeza que rejeitava a ideia de negar o Holocausto como o faz o Irã. Ainda defende essa posição?

Presidente: Por que falar do Holocausto e não do que acontece na Palestina, ou do milhão e meio de iraquianos assassinados? O Holocausto é uma questão histórica que precisa de uma visão mais ampla e não ser usado como uma questão política. Não sou um historiador para determinar o que é exato nesse tema. As questões históricas dependem de quem as escreve, e por isso às vezes a história é distorcida.

Clarin: Desculpe mas existe alguma autocrítica que gostaria de formular?

Presidente: Não há lógica em fazer autocrítica em acontecimentos em processo. Se alguém vê um filme não o critica antes do mesmo terminar. Quando o quadro esteja completo veremos ou que corresponde ou não, criticar.

Clarin: Para terminar, tem alguma informação sobre o paradeiro dos jornalistas James Foley, um americano desaparecido há 6 meses aqui e do italiano Domenico Quirico de La Stampa, perdido há um mês aproximadamente?

Presidente: Tem jornalistas que ingressaram a Síria de forma ilegal, em regiões onde estão ativos os terroristas. Houve alguns casos de tropas que conseguiram liberar jornalistas que estavam sequestrados. Em todo caso, quando dispomos de informação sobre qualquer jornalista que ingressou ilegalmente, nós informamos ao país em questão. E até o momento não temos nenhuma informação dos jornalistas dos quais está falando.

Tradução Natália Forcat  – gentilmente feito ao GT Árabe.

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