Em Israel, a mídia tenta desvincular as eleições da ocupação

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Já se dissipa dos noticiários a espera pelo relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre os crimes de guerra de Israel na Palestina. As eleições de março colocam o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e a economia israelense sob o holofote. A cobertura midiática aborda a questão palestina como mero detalhe, mas o próprio sionismo é resgatado pelos críticos desta política colonialista como problemática a ser ponderada pela sociedade israelense.  

 Por Moara Crivelente*, para o Vermelho

Kobi Gideon/GPO

Primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu discursa com imagem de fundo do primeiro premiê de Israel, David Ben-GurionPrimeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu discursa com imagem de fundo do primeiro premiê de Israel, David Ben-Gurion

Acompanhar as eleições israelenses é essencial para compreender o ciclo da repetição macabra e as escolhas da sociedade, principalmente no tocante à questão palestina. Além disso, é revelador fazê-lo na sequência de mais umaofensiva devastadora contra a Faixa de Gaza e uma ampla operação militar contra a Cisjordânia – embora a mídia israelense trate do assunto como notícia velha, mesmo enquanto em Gaza ainda se espera pela reconstrução.

O professor israelense Gadi Wolfsfeld, que critica a cobertura “sensacionalista” e “etnocêntrica” em Israel, aponta um ciclo que chama de mídia-política-mídia, embora a ordem dos fatores não seja clara nem pareça alterar os resultados. Antes do desvanecimento do tema “bombardeios contra Gaza” e ascondenações internacionais na mídia doméstica, o discurso ultra-nacionalista de defesa orgulhosa e “justificação” do massacre predominava. Já no período eleitoral fica o emaranhado no qual se mergulha um “conflito” cujo estopim é identificado de forma insuficiente no estabelecimento do Estado de Israel, em 1948.

A data foi retomada pela campanha de Benjamin Netanyahu, em sua terceira corrida eleitoral consecutiva. Primeiro-ministro desde 2009, com um mandato anterior na década de 1990, Netanyahu, do partido de extrema-direita Likud (“Consolidação”), busca garantir seu cargo nas eleições antecipadas devido à ruptura da sua frágil coalizão, pela ministra da Justiça Tzipi Livni (do Hatnuah, “O Movimento”) e o ministro das Finanças Yair Lapid (Yesh Atid, “Há um Futuro”). Todos identificam-se como sionistas, defensores de uma ideologia colonialista e identificada como racista até mesmo pela ONU, embora a resolução que assim a caracterizava tenha sido suspensa por pressão israelense e norte-americana. É curioso acompanhar os debates que procuram relativizar o sionismo e fantasiar, num debate tautológico, a existência do sionismo “liberal” ou até “de esquerda”.

Netanyahu costuma retomar períodos emblemáticos na história do forjar nacionalista em Israel e da vitimização. Em sua propaganda eleitoral do sábado (21), compara-se ao primeiro premiê israelense, David Ben-Gurion, que rechaçou a advertência do Departamento de Estado dos EUA contra a “declaração de independência de Israel”, para dizer que também rechaçará as advertências atuais à sua intenção de discursar contra as negociações nucleares com o Irã no Congresso estadunidense, a contragosto do presidente Barack Obama. Netanyahu não desperdiça oportunidades para colocar Israel como um país sob ameaça constante – seja no caso do programa nuclear iraniano ou da resistência palestina – e “legitimar” sua ofensiva permanente. No espetáculo eleitoral, não seria diferente.

Outro recurso seu é a narrativa pseudo-religiosa para a defesa do sionismo; as articulações nesta esfera são várias. Em artigo de 2010, o historiador israelense Ilan Pappé identifica o papel de Netanyahu, pupilo do então primeiro-ministro Menachem Begin, na declaração de intenções, em 1978, de relações com cristãos sionistas, de defesa quase apocalíptica do “retorno do povo judeu à Terra de Israel”. Em 1985, Netanyahu participou de uma convenção cristã onde disse que o apoio a Israel seria um “feito moral superior”. Já recentemente, tornou-se o primeiro chefe de Governo a exigir dos palestinos o reconhecimento de Israel como “Estado do povo judeu” – algo que nem mesmo Ben-Gurion acreditava ser desejável, escreveram historiadores locais.

Expectativas: status quo ou transformações?

Em Israel, mais de 200 mil pessoas sem estatuto legal são excluídas do processo eleitoral, além, é óbvio, dos mais de quatro milhões de palestinos cujas vidas são governadas pela “Potência Ocupante”, na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Já para 70% dos palestinos com cidadania israelense, uma recente pesquisa de opinião divulgada pelo jornal Haaretz concluiu que a maior preocupação é a economia e o emprego, não a solução do “conflito”. Caberá aí uma interpretação do resultado, que poderia ser a evidente falta de confiança num “processo de paz”sem avanços há mais de 20 anos, à mesma medida em que se expandem as colônias israelenses na Cisjordânia, se enraíza o bloqueio a Gaza e se agudiza a dependência da liderança palestina à assistência internacional, sempre chantageada.


A participação árabe nas eleições também foi ponderada. A união entre seus partidos era almejada por uns e criticada por outros, pois anularia matizes ideológicos – liberais, socialistas, trabalhistas, entre outros — obrigados a fundirem-se por chances nas eleições. Finalmente, uma Lista Árabe Conjunta (de quatro partidos, o judeu-árabe Hadash, o Balad, o Ta’al e o Ra’am) significou uma derrota para a extrema-direita, liderada pelo chanceler Avigdor Lieberman, do partido rompido com o Likud, Yisrael Beitenu (Israel é Nosso Lar), e o ministro da Economia Naftali Bennett, do ultra-ortodoxo Habayit Hayehudi (Lar Judeu), empenhados no aumento do coeficiente eleitoral para a entrada no Parlamento, para excluir a representação árabe.

Porém, além da perseguição, os partidos árabes ainda enfrentam a desigualdade na cobertura midiática. De acordo com o observatório israelense da mídia The Seventh Eye (“O Sétimo Olho”), apenas a TV pública (Channel 1) dá espaço equitativo à Lista Árabe Conjunta, embora esta deva conseguir 12 assentos no Parlamento, tornando-se a terceira maior representação. O mesmo observatório também notou o menor espaço aos árabes nas pesquisas de opinião, ou “pesquisas do apartheid”, devido às táticas de seleção dos grupos a serem entrevistados.

No domingo (22), pesquisas indicavam que Isaac Herzog, líder do partido HaAvoda (Trabalhista), do chamado “Campo Sionista”, “de centro”, é o favorito para desbancar Netanyahu. A formação de um governo dependerá da inclusão dos árabes, diz o cientista político palestino Thair Abu Rass, que enxerga uma oportunidade inédita até para o comparecimento dos palestinos diante das urnas. Um governo trabalhista, porém, não seria inédito nem alvissareiro de grandes transformações, embora o partido afirme defender a chamada “solução de dois Estados”. Nomes como o do ex-presidente Shimon Peres e a dupla Moshe Dayan e Golda Meir, ministro da Defesa e primeira-ministra, respectivamente, na década de 1970, puseram em evidência as prioridades sionistas, ou os constrangimentos do sistema eleitoral.

Neste ponto, vem à tona a imagem do líder palestino Yasser Arafat, do então chanceler israelense Shimon Peres e do premiê Yitzak Rabin (também trabalhista) recebendo o prêmio Nobel da Paz em Oslo em outubro de 1994, após a Declaração de Princípios do eterno “processo de paz”. Naquele momento, apesar do que se diz hoje com a vantagem de quem faz análises em retrospectiva, a esperança tomou grandes proporções. Hoje, a completa incredulidade nas negociações com Israel são a pedra fundamental da análise sobre a situação. Um artigo recente no Haaretz quase afirmou que a guerra – leia-se: o massacre dos palestinos – é geralmente o foco no cenário eleitoral em Israel e que, na falta dela, o assunto economia tem predominado. A ocupação não é considerada uma variável da guerra, e sim o “estado das coisas” enquanto Israel “defende-se”.

A expansão das colônias esteve em alta, inclusive com um orçamento secreto blionário denunciado pela parlamentar trabalhista Stav Shaffir, além do orçamento aprovado pelo Parlamento; escândalos de corrupção na família Netanyahu misturam-se com as avaliações sobre o crescimento de 7% durante os bombardeios contra Gaza e os desafios da habitação, numa empreitada colonialista e de “guerra demográfica”. A disputa econômica tomou o espaço do debate ideológico e humanitário sobre as bases em que se assenta hoje a sociedade em Israel e a ocupação da Palestina. O retorno a um processo de paz moribundo, assim, não se discute. Será a expectativa eleitoral, para os palestinos, um governo “menos pior”?

*Moara Crivelente, cientista política e jornalista, membro do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz (Cebrapaz), assessorando o Conselho Mundial da Paz.

 
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