O Papa veio das ruas e não das nuvens

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O patriarca maronita tem fé no novo pontífice, fala sobre os desafios da busca pela paz entre israelenses e palestinos e avisa: “Não haverá solução pelas armas”. Em giro pela América Latina, o patriarca maronita Bechara Boutros Raì fez rasante por São Paulo, semana passada, onde se encontrou com autoridades e lideranças de diferentes religiões. Único libanês a participar do conclave do papa Francisco, em março, demonstrou satisfação ao falar sobre o novo pontífice: “Ele fará, com certeza, um trabalho a favor da erradicação da pobreza. Sabe-se que esse é o maior problema no mundo”, afirmou em entrevista à coluna. A Igreja Maronita responde ao Vaticano, mesmo tendo um rito litúrgico diferente do de Roma.

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Foto: Iara Morselli/Estadão

Na agenda do religioso, encontros com Haddad, Alckmin, Michel Temer e missa rezada na Catedral Nossa Senhora do Líbano, no bairro da Liberdade. O Brasil conta, hoje, com aproximadamente 8 milhões de descendentes de libaneses. “Nossa comunidade é grande e se integra completamente na sociedade brasileira, de forma positiva”, afirmou.

Indagado sobre as tensões no Oriente Médio e uma ameaça de a guerra da Síria atingir o Líbano, foi enfático: “Já existe uma onda de violência no norte do país. Além disso, a guerra atrapalha os acordos comerciais com países como Jordânia, Turquia e Iraque, já que toda a exportação tem de passar por território sírio”. Também sobre a tensão entre seu país e Israel, mostrou-se pessimista: “O Líbano hoje conta com 500 mil refugiados palestinos – que têm o direito de poder voltar a seu país de origem. Israel não está dando sinais de que reconhecerá o Estado Palestino e, portanto, não vejo paz num horizonte próximo”.

A seguir, os melhores momentos da conversa.

Qual a importância de SP para a comunidade libanesa?

Pudemos perceber, nos dias em que estivemos na cidade, que a comunidade libanesa é grande e se integra completamente na sociedade brasileira, de forma positiva. Tivemos uma reunião com o governador Alckmin e ele manifestou seu apoio à comunidade, principalmente pelo fato de a comunidade libanesa se integrar nesta diversidade de povos que compõem a cidade cosmopolita de São Paulo. Aqui, as religiões e as diversidades coexistem. Participamos, também, de um encontro importante com outras lideranças religiosas cristãs e muçulmanas, entre as quais sunitas, xiitas e drusos. Percebemos o quanto eles são unidos dentro da comunidade brasileira, apesar das diferenças nas crenças. Constatamos o quanto a cidade de São Paulo é importante para a nossa comunidade.

Acredita que a Primavera Árabe foi boa para os cristãos da região, mesmo sabendo que, no Egito, estão sendo perseguidos?

No começo, recebemos com bons olhos a Primavera Árabe. Acreditávamos que o movimento estava reivindicando reformas políticas e administrativas. E nasceu de um desejo do povo, de necessidades democráticas. Entretanto, por mais que os primeiros sinais se mostrassem bons, descobrimos que outros interesses da política internacional se manifestaram por meio de grupos radicais que pegaram em armas e defenderam interesses que não têm a ver com o povo. Por isso, hoje, alguns não chamam de Primavera Árabe, mas de Inverno Árabe.

Que grupos são esses, especialmente na Síria?

Sabemos de grupos armados e financiados, sejam pelo governo ou contra o regime. Existem muitos interesses que batem de frente, especialmente no conflito entre sunitas e xiitas. Então, esses grupos radicais, infelizmente com armas e financiamento, deixam a situação do jeito que está hoje.

Há uma preocupação de a guerra da Síria chegar ao Líbano. Acredita nisso? Quais seriam as consequências?

A guerra já atinge diretamente o Líbano. Primeiro, porque temos hoje, no Líbano, cerca de 1,2 milhão de refugiados sírios. Sendo que a população total do país é de 4 milhões. Essa população não é realocada com dignidade e, portanto, é um encargo pesado no sentido social, humanitário, de alimentação, de habitação e de segurança pública. Além disso, a guerra atrapalha os acordos comerciais de exportação com países como Jordânia, Turquia e Iraque, já que toda a exportação tem de passar por território sírio. O transporte e o comércio ficam muito afetados.

E a violência?

Sim, já existe uma onda de violência da guerra que chega à cidade de Tripoli (norte do Líbano), onde há uma enorme tensão entre alauítas e sunitas. É por isso que clamamos aos nossos países amigos que nos ajudem a caminhar rumo à paz.

Acredita que o Hezbollah tem de depor suas armas?

O caminho, no futuro, é que o Hezbollah entregue suas armas. Mas sabemos que não é simples. O Hezbollah tem muitas questões envolvidas. Participa ativamente da vida política do Líbano, tem uma representação no Congresso e precisa se defender das ameaças constantes de Israel. Nós, da Igreja Maronita, acreditamos que nenhum partido deve ter armas, não acreditamos nas soluções pelas armas. Esperamos que os conflitos possam se resolver de outra maneira. Para isso, os outros países árabes têm de se debruçar sobre essa questão e a comunidade internacional, ajudar a encontrar uma solução política para os conflitos.

E a paz entre Líbano e Israel?

Só haverá paz quando duas questões importantes forem resolvidas. Em primeiro lugar, os territórios ocupados. Israel, hoje, ocupa uma região do Líbano que já foi assunto de resolução da ONU – e que pede sua retirada. A segunda é a Palestina. O reconhecimento dos dois estados e o direito de regresso dos refugiados. O Líbano conta, atualmente, com 500 mil refugiados palestinos, que têm o direito de poder voltar a seu país de origem. Israel não está dando sinais de que reconhecerá o estado palestino e, portanto, não vejo paz num horizonte próximo.

Vossa Eminência apoia a lei ortodoxa, proposta por cristãos ortodoxos nas eleições no Líbano?

Pessoalmente não apoio porque não houve consenso em adotá-la. Apesar de respeitarmos a lei eleitoral atual – que divide a cota de cada religião em 50% –, nós, do patriarcado, acreditamos que os cidadãos devem ter uma lei que lhes permita uma escolha mais direta de seus representantes. Que nenhuma religião usufrua de seus votantes para eleger candidatos de outras religiões sem grande representatividade. Acreditamos numa democracia para escolher nossos representantes.

Como é a relação de Vossa Eminência com as outras religiões do Líbano?

O patriarcado se relaciona excelentemente bem com as outras religiões. Mantemos um diálogo com outras partes cristãs, bem como com os muçulmanos sunitas, xiitas e drusos.

E como está vendo a atuação do papa Francisco?

O papa Francisco foi eleito por uma ordem divina. Ficamos muito contentes com um papa latino-americano. Ele fará, com certeza, um trabalho a favor da erradicação da pobreza. Sabe-se que esse é o maior problema no mundo hoje. Não apenas a pobreza da fome, mas a pobreza de habitação, educação, direitos humanos e todas as pobrezas que afetam a dignidade humana. Mesmo tendo dados da ONU de que a produção agrícola mundial poderia alimentar o dobro da população, a fome ainda assola as sociedades. Acreditamos que o papa Francisco fará um trabalho nesse caminho. Sua experiência com as comunidades da América Latina o auxiliará. Veja, o papa não veio das nuvens, mas de suas caminhadas pelas periferias das cidades da Argentina.

E em relação a Bento XVI? Como acredita que será a relação de Francisco com ele?

O papa Bento XVI fez uma escolha de renunciar. Ninguém o forçou a isso. Ele diz que a vida na Igreja se dá em duas frentes: o trabalho e a oração. Ele seguirá o caminho da oração. Tenho certeza de que está orando pelo papa Francisco, como prometeu que faria. E, quanto ao papa Francisco, bem, ele tem a sorte de ter um papa vivo rezando por ele. Isso jamais aconteceu (risos).

No Brasil, um grande fenômeno atual é o crescimento das igrejas pentecostais. Qual seria a razão? Diante desse fenômeno, qual caminho a Igreja católica deve seguir?

É preciso diferenciar as igrejas, principalmente as organizadas em grupos pequenos, que interpretam as palavras divinas de seu modo peculiar. Não é só o Brasil que vive esse fenômeno, mas todos os países que sofrem com a pobreza, inclusive a pobreza de espírito. Essas igrejas acabam tendo apelo a uma população que está mais fragilizada. No entanto, acredito que a culpa também foi da nossa igreja (católica), que deixou que ocupassem esse espaço e deixou de visitar os fiéis em seus lares. Nossos padres têm de voltar a conquistar os fiéis, ir em suas casas, chamá-los, fazer bem seu trabalho. Nós acreditamos, no Líbano, que se alguém tem fé, não cai em discursos fracos.

No Líbano também crescem esses grupos?

Uma vez, um grupo de Testemunhas de Jeová tentou evangelizar alguns vizinhos de nossa igreja. Um dos vizinhos, para cortar a conversa, lhes disse: “Poupem seu tempo, vocês só precisam convencer um homem” – referindo-se ao patriarca. “Se ele se converter, todos o seguiremos”. Mas o patriarca tem fé profunda e não a fragilidade de espírito que eles consigam atingir.

Vossa Eminência tem algum recado para a comunidade libanesa no Brasil?

Temos de nos manter unidos e preservar nossa tradição para podermos também enriquecer a comunidade a qual pertencemos no Brasil. Achamos maravilhoso a maneira de coexistir dos brasileiros.

Por GUGA CHACRA E MARILIA NEUSTEIN – Jornal o Estado de São Paulo

 

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