Danse Macabre[1] e um Medo do Abismo: Todos Caímos

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27/4/2020, Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation

Na imaginação europeia, riscos de contágio (peste ou cólera), eram exorcizados por formas sombrias, cobertas dos pés à cabeça, silhuetas vagamente humanas, mas dentro do fundo estilizado do capuz negro não se via rosto algum – só um longo bico de ave, acinzentado, que saltava para fora. Esses “doutores da peste” provocavam calafrios. Cidades eram pintadas desertas, imobilizadas por algum poder amplo, superior e sinistro. Por trás daquelas paredes, gente morria. Silêncio. Ainda hoje, se veem em Veneza as máscaras com bico de ave dos doutores da peste.

É possível que a mentalidade medieval não pareça combinar com nossa mentalidade de hoje. Mesmo assim, ainda é verdade que o medo biológico da loteria da Morte e o medo político andam frequentemente enlaçados numa dança macabra. O contágio pode não ser a causa direta, mas sejam as pestes da Itália, ou o cólera na Europa do século 19, os medos da elite e a ira de multidões infectadas, famintas e sem esperanças serviram como combustível para derrubar ordens estabelecidas.

No espaço de apenas bem poucos anos – no final dos anos 1400s – Florença passaria, de orientada por uma recriada Academia Platônica, a uma ditadura comandada pelo sinistro, vestido de negro, Girolamo Savonarola – clérigo extremista, ascético, que queimou artefatos civilizacionais de Florença em imensas “Fogueiras das Vaidades”. A sociedade, depois de várias pandemias literalmente cascateou para dentro da revolução – como fez a Europa colérica no século 19. Com reis depostos, e as elites colidas numa histeria de medo do crescente populismo de massas.

Hoje, novamente é palpável o ‘medo’ político. Martin Armstrong, legendário analista de finanças e de ciclos geopolíticos, resume aquele senso medieval de sociedade “imobilizada e bajulada por um poder sinistro abrangente”:

“Fechar a economia é só para gerar medo: há outra agenda em andamento (…).”

“A OMS é parte da ONU e a ONU é favorável a essa mudança climática, e seu objetivo tem sido o seguinte: fechar a economia mundial, levar à bancarrota tudo que se consiga, e então começar a reconstruir desde a planta …

“A devastação na economia é inacreditável. Nosso computador é muito bem conhecido. Quase todas as agências de inteligência olham para ele porque é o único sistema de inteligência artificial em pleno funcionamento no mundo. Ele dizia que o desemprego cresceria dramaticamente e redefiniria os picos da Grande Depressão.

“Não aconteceu assim, nunca. Mesmo na Grande Depressão, foram precisos três anos para chegar a 25%. Agora, no primeiro mês, ultrapassamos 13% no primeiro mês (…) Desde o começo, eu disse que havia alguma coisa errada. Que alguma coisa estava errada. (…) Isto vai realmente empurrar a bolha da dívida sobre o penhasco para cima do penhasco.

“O número de mortos é mínimo. Mais que o dobro desse número morrem de gripe. Acho que o que Trump precisa fazer é abrir instantaneamente a economia (…) Acho que precisa indicar um procurador especial para investigar quem começou tudo isso. Todas as informações que tenho apontam para um movimento deliberado e intencional para ferir a economia. São elitistas. Essa gente é elitista”.

As acusações voam – em breve, nova Inquisição? Por outro lado, há uma parte da psique política dos EUA que leva aos limites os Direitos – particularmente, Direitos da 2ª Emenda. (Como na França, nos séculos 18 e 19, o mote da soberania total ao povo foi levado ao limite – cortesia de Madame A Guilhotina). O presidente Trump, ainda na semana passada, parecia estar jogando essa ‘revolta populista’ contra o confinamento e as elites globais (especialmente em oposição a governadores Democratas), quando tuitou antes dos protestos: “LIBERTEM MICHIGAN!,” “LIBERTEM MINNESOTA!,” e “LIBERTEM VIRGINIA” e salvem sua grande 2ª Emenda. O estado está sitiado!”.

Por outro lado, existe também amplo reconhecimento do ‘paradoxo do contágio’: apesar das projeções (supostamente) empíricas enunciadas por ‘experts’ e ‘especialistas’ em modelagem vindos dos dois lados do muro (a serviço de narrativas opostas), mesmo assim há uma elite (não exclusivamente globalista) que teme um vírus traiçoeiro; imprevisível e que, num momento de desatenção, volte, ainda mais mortal que antes.

Criou-se um caso de “escolha seu veneno: ou sofra sob confinamento rigoroso até que o serviço esteja feito; ou exponha-se ao risco de a alternância confinamento-suspensão-do-confinamento durar muito mais, fazendo com que o dano econômico alastre-se no tempo. Os governos poderão talvez continuar a confinar o povo, desconfinar, voltar a confinar, e outra vez, outra vez, mantenho qualquer esperança de manter o consentimento da sociedade? Muito duvidoso”, sugere Ambrose Evans-Pritchard.

Esse ‘campo’ cita paralelos com a gripe pandêmica dos EUA no 1918. Houve protestos de massa, naquele momento, também, exigindo um fim às políticas de quarentena, depois que a primeira onda cedeu – a ponto de se criar, em San Francisco uma “liga antimáscara”. Mas o relaxamento prematuro levou a uma segunda onda mais mortal, poucas semanas adiante.

Não obstante há aqui um padrão. Adam Zamoyski em seu Phantom Terror [2015, Political Paranoia and the Creation of the Modern State, 1789-1848, Paranoia Política e a Criação do Estado Moderno, 1789-1848] traça a história da repressão e da política de espionagem da elite europeia no meio século depois de a monarquia francesa ter sido derrubada em 1789-93. A Revolução Industrial Europeia estava então em pleno curso: famílias eram desentranhadas de comunidades rurais, das suas raízes, e separadas de seus sistemas locais de apoio, e depois decantadas (como resultado do desmatamento) nos cinturões de miséria superpovoados das grandes cidades industriais. Então, a partir de 1831, esses cinturões de miséria foram atingidos por quatro pandemias consecutivas e virtualmente co-ocorrentes, de cólera.

Acreditava-se de modo geral que o cólera disseminava-se pelo ar, mediante um ‘miasma’, semelhante a uma nuvem. Outros acreditavam firmemente que, visto que a doença disseminava-se mais rapidamente nas áreas mais pobres, os ricos estavam envenenando propositalmente os pobres. E muitos mais acreditavam que o cólera seria ato divino, e que assim se castigaria a comunidade, por seus pecados. Eram também os anos do Laissez Faire. O governo britânico deixaria 2 milhões de irlandeses morrerem de fome (a fome da batata de 1845), em vez de ceder na sua ideologia dita austera, de livres mercados.

Eram tempos de gangues feias e revolta sangrenta contra uma elite ‘distanciada’ fabulosamente rica, instalada em suas cidadelas palacianas. Mas as restrições mais mortais que se leem na obra do professor Zamoyski dirigem-se contra a reação autoritária, comandada à distância, das classes proprietárias, letalmente – como o professor demonstra – contraprodutivas – além de, com frequência, absurdas.

Ah, sim, há boas razões – aprendidas daquela era – para considerar com ceticismo toda essa narrativa europeia e dos EUA de “guerra à COVID-19” e de seus “tempo-de-guerra”, para justificar a intrusão na vida da sociedade, a vigilância eletrônica e a disciplina, ao mesmo tempo em que aqueles ‘narradores’ vão resgatando instituições chaves. Esse padrão é velho.

O historiador francês Patrick Bucheron, em Conjurer la Peur. Sienne, 1338. Essai sur la force politique des images [Conjurar o Medo. Siena 1338. Ensaio sobre a força política das imagens, 2013], conecta esse padrão já tão gasto de repressão, ao frontispício do celebrado Leviatã of Hobbes, publicado muito antes, em 1651: “Aqui outra vez há uma cidade despopulada por uma epidemia. Sabemos, porque nas margens da imagem identificam-se duas silhuetas com bico de ave, que representam os doutores da peste, enquanto o povo na cidade foi sugado para cima, inflando a figura do monstro-estado Leviatã, que está muito confiante do medo que inspira”.

Serão esses os medos mais profundos (inconscientes) manifestados por Martin Armstrong? Naquele momento, foi a Revolução Industrial que levou a tensões sociais e revolta. Hoje, é a revolução globalista financeirizada, com um bilionário (David Geffen), que tuíta a icônica imagem de si mesmo em seu super iate de $590 milhões, longe de New York onde vive, “isolado da pandemia”, no Caribe.

Assim sendo, as tensões estão outra vez inflamadas. Há “outra agenda por trás do confinamento”, dizem os libertaristas norte-americanos antiestado. Mas por que a danse macabre de hoje, entre medos políticos e medos biológicos, dilacera a sociedade (como no século 19) ou resulta em revolta? Se o confinamento for bem gerido, quem sabe volta a ‘normalidade’? Uma das respostas possíveis, apareceu sucintamente encapsulada no título do artigo de um comentador: “The Real Pandemic Danger Is Social Collapse. As the Global Economy Comes Apart, Societies May, Too” [O Perigo Real da Pandemia é o Colapso Social. A Economia Global esfacela-se, e as Sociedades também podem esfacelar-se”].

Mudanças acontecem depressa, e frequentemente sem serem previstas. Imagine, por exemplo, deixar cair um grão de areia depois de outro num monte em forma de cone; o monte cresce e cresce, cada vez mais e mais alto; mas enquanto cresce vai-se aproximando cada vez mais de um estado crítico – estado no qual um grão de areia a mais pode fazer a conexão para um “dedo de instabilidade” e levar a uma cascata ou ao colapso de todo o monte de areia.

Mas o experimento do monte de areia vem da Física, na qual é usado para explicar como sistemas complexos frequentemente se auto-organizam em estado crítico. Mas os físicos não podem prever quando a adição de um único grão de areia desencadeará uma cascata, nem a altura da qual descerá a cascata.

Dois fatores aumentam as chances de ocorrer risco catastrófico em sistemas complexos. O primeiro é que quanto maior o número de conexões, mais alto o nível de risco do sistema. O segundo fato é se aquelas conexões são “estreitamente pareadas”. Alguma coisa que afete uma parte do sistema pode levar a efeitos em cascata em todo o sistema – se aquela parte estiver estreitamente pareada a outras partes.

Longas e complexas linhas de suprimento são exemplo óbvio. O coronavírus está expondo precisamente essas vulnerabilidades, criando choques em cadeia que atravessam as economias domésticas e o comércio internacional.

Aqui está o ponto: a urgente demanda de Armstrong para que a economia seja “imediatamente” aberta pode já ter chegado tarde demais. Economistas tendem a pensar a economia como uma máquina que gozaria de algum modo inerente de equilíbrio. E que Trump poderia pressionar o botão “Iniciar”… e a máquina brr–brr voltaria à vida.

Mas é possível que a economia ocidental já esteja em “estado crítico” desde 2008, quando o Fed-EUA continuava a meter “dedos de instabilidade” de volta no monte, ao mesmo tempo em que os afagava com Alívio Quantitativo. Significa dizer que a cascata de choques em cadeia já era evento posicionado para acontecer. O coronavírus foi só o ‘alfinete’ que rebentou nosso modo-bolha, de pensar.

O coronavírus e o fechamento da economia desencadearam em cascata vários “dedos de instabilidade”. O vírus é complexo, como tudo é complexo, na natureza. E os humanos são complicados. Nós, “humanos complicados” introduzimos complexidades econômicas, sociais e políticas separadas em todos os sistemas que construímos, em grande parte sem considerar as complexidades naturais no mundo que nos cerca. Assim, criamos fragilidades.

O perigo, então, é de cascata sistêmica [orig. of system-cascade]. Mas mais que isso, quais podem ser as consequências, se sistemas complexos começam a colidir uns com outros? Torna-se quase impossível analisar, quando múltiplos sistemas complexos interagem uns com outros e produzem turnos de retroalimentação. A crise no Comércio Internacional está desabando sobre as economias europeia e norte-americana (mais e mais sistemas dinâmicos complexos), com impacto sobre seus processos políticos domésticos (e ainda mais e mais sistemas dinâmicos complexos).

Desde o “Iluminismo”, o ocidente acostumou-se a pensar que controla a natureza e nosso meio ambiente. Efeito disso é afastar-nos em alguma medida da complexidade da natureza, mas só para abrir espaço para que nos intrometamos em sistemas complexos que são, eles mesmos, intrinsecamente frágeis – no contexto de complexidade maior.

E agora – inesperadamente – a própria complexidade da natureza nos esbofeteia.

Isso virou de pés para cima tudo que tomamos por garantido durante décadas. Achamos que estivéssemos no controle. Agora, os “doutores da peste” nos dão ordens, aparentemente de modo bastante aleatório. O medo biológico da Morte, e o medo de deslizar para o fundo do Abismo da desesperança, enlaçam-se numa danse macabre para os desesperados, que vivem marginalizados, no chamado buraco negro da sociedade nas áreas mais sem lei de nossas maiores cidades.

[1] Danse Macabre (fr.) também chamada Dança da Morte, é um gênero artístico de alegoria, do Final da Idade Média, sobre a universalidade da morte: não importa em que fase da vida alguém esteja, a Danse Macabre une todos [NTs, com dados de Wikipedia].

Traduzido pelo Coletivo Vila Mandinga


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