Atentados de 13/11: Em questão a política e o futuro da França

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4/12/2015,
Youssef Hindi, Geopolintel, França


“Essa é a base da estratégia contra-atlanticista a ser estabelecida.
Não esqueçamos que a geopolítica determina a política interna, não o contrário.”

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Haverá, na origem dos atentados, a questão de a França render-se ao campo atlanticista?

Uma coisa é certa: a França não foi atingida pelo terrorismo por revide de alguma luta sua contra o terrorismo, mas, indiretamente, pelo apoio que tem dado a terroristas. A saber, a terroristas ditos “rebeldes moderados” como os membros da Frente Al-Nusra, que é braço da Al-Qaeda, sobre os quais nos dizia Laurent Fabius, em dezembro de 2012, que estariam fazendo “bom serviço”. Mais amplamente, os franceses pagaram o preço da política interna e externa da França, que se alinha hoje à de inimigos objetivos da França: os EUA e seus aliados históricos.

O ponto de partida dessa análise localiza-se no final dos anos 1990s (e poder-se-ia buscar antes, ao final da 2ª Guerra Mundial), quando Zbigniew Brzezinski, un dos geoestrategistas norte-americanos mais influentes, publicou sua principal obra O Grande Tabuleiro de Xadrez (1997). Naquele momento, o geopolitólogo norte-americano via o que restava residualmente do espírito de independência dos dirigentes franceses, na presidência de Chirac, como obstáculo à hegemonia norte-americana. O objetivo seria então, pela lógica de Washington, submeter a França aos EUA, imperativamente. Em 1997, Brzezinski escrevia que era indispensável “fazer da Europa um dos pilares vitais de uma grande estrutura de segurança e de cooperação posta sob a égide dos EUA e que se estenda a toda a Eurásia.” E prosseguia:


Para dizê-lo bem claramente, a Europa Ocidental continua a ser, em grande medida, protetorado norte-americano e os Estados fazem lembrar os que, antigamente, foram vassalos e tributários dos antigos impérios” 1. Assim sendo, Brzezinski pregava que os EUA fizessem “oposição tática às posições francesas e apoiassem a liderança alemã” 2.


A Alemanha tornou-se, para os norte-americanos – sobretudo depois da instauração do euro em 2002 (que ajudou positivamente a balança comercial alemã) –, o pequeno império regional que põe o resto da Europa sob a dominação dos EUA – condição sine qua non da liderança dos EUA sobre a Europa –, pela neutralização da França, economicamente (com a moeda única que contribuiu para destruir a indústria francesa, processo que já vinha de antes, com a política do franco forte para preparar o país para o euro, na segunda metade dos anos 1990) e diplomaticamente. Porque a França ainda foi, até tempos recentes, a única nação europeia que tinha visão, peso e ambição geopolítica relativamente autônomas.

Brzezinski citava, como exemplo dessa classe política francesa neogaulista, Alain Juppé, que preconizara, em maio de 1995, na Assembleia Nacional, que os franceses refinassem a própria vocação do país para ser potência mundial, o que Brzezinski decretou que seria ilusão.3

Essa “ilusão” desapareceu totalmente em maio de 2007, com a chegada ao poder de Nicolas Sarkozy e de um lote completo de atlanticistas, vale dizer, de neoconservadores, ao Ministério de Relações Exteriores da França e a outros ministérios chaves. Não listarei aqui um a um todos os políticos e formadores franceses de opinião pública e europeia que os EUA cooptaram mediante organizações como a Fundação Franco-Norte-americana e o programa “Young Leaders”.
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Em 2011 afinal se viu a realização em fatos do projeto de Brzezinski, quando o atlanticista Sarkozy, que, depois de ter reduzido a França ao estado de completo vassalo dos EUA, atacou a Líbia, depois que Bernard-Henry Levy eletrocutou o ministro de Assuntos Externos, Alain Juppé, para engajar a França numa guerra pilotada pela OTAN. Essa guerra custou a vida de mais de 100 mil líbios, com a generosa contribuição de mais de 300 milhões de euros pagos pela França.

Essa, aliás, é uma das funções da OTAN: obrigar os vassalos europeus a pagarem para manter as guerras de Washington e protegerem os EUA.

Ora, é absolutamente flagrante o apoio que a França dá a grupos terroristas (e fartamente documentado) desde a Guerra do Golfo de Sirte. O governo de Sarkozy enviou agentes do Diretorado Geral da Segurança Externa do Ministério de Defesa da França (DGSE), para orientar em solo os mercenários pagos pelo Qatar, coordenando ataques aéreos com a avançada de falsos rebeldes mas verdadeiros terroristas, que ali estariam lutando, só nesse caso único e excepcional, pela liberdade e contra a tirania, etc., etc.

O governo de Hollande prosseguiu nessa mesma trilha, armando grupos terroristas, como o chamado Exército Sírio Livre (ESL), emanação da Fraternidade Muçulmana, que foi quem iniciou o golpe, em 2011, contra o governo do presidente Bashar al-Assad em Damasco.

Dia 14/8/2014, Laurent Fabius anunciou, num ‘tuíto’, que armas muito eficientes começavam a ser entregues aos “combatentes” na Síria. Daí que não surpreende mais ninguém ver terroristas do Daech, em fotos, armados com fuzis de assalto Famas, de fabricação francesa.

Fato é que, ao contrário do que se poderia imaginar, não há qualquer fronteira nem oposição real entre as dezenas de grupos terroristas que operam na Síria e no Iraque. Os chamados terroristas ‘moderados’ do Exército Sírio Livre entregam ao Daech, principalmente via a Frente Al-Nosra, sua aliada, as armas que recebem dos ocidentais; e o Daech pode dizer que não recebe armas do ocidente. Claro que não: quando as armas chegam a eles, das mãos de intermediários locais que as recebem, sim, do ocidente, as armas já são… locais.

Com a chegada de Sarkozy à presidência, a França firmou os dois pés na esfera de influência do campo atlanticista, e assim se tornou aliada de facto dos grandes financiadores do terrorismo internacional: Arábia Saudita e Qatar… As duas petromonarquias com as quais muitos políticos, homens e mulheres, da direita e também da esquerda francesas, mantêm laços particularmente estreitos.

Poucos dias depois do massacre de 13 de novembro, Manuel Valls já declarava, em absoluta contradição com a realidade dos fatos, que Qatar e Arábia Saudita, que segundo ele combateriam contra o Daech, estavam decididos a lutar contra o terrorismo. Chegou a ‘denunciar’ supostos contatos que haveria entre “o regime de Bachar” e os terroristas do Daech.

É preciso não perder de vista, que os ingleses primeiro, e na sequência os norte-americanos, todos eles apoiaram o wahhabismo e os sauditas desde seus primeiros movimentos expansionistas na Arábia, e participaram muito amplamente na difusão da doutrina wahhabista por todo o mundo. Doutrina de terrorismo, que os ocidentais agora parecem tão surpresos ao constatar o quanto influenciou e influencia jovens muçulmanos e neoconvertidos.

É preciso também repetir que o terrorismo wahhabista surgiu como ferramenta estratégica de britânicos e de norte-americanos contra quem se opusesse a eles. E Zbigniew Brzezinski, quando conselheiro de Segurança Nacional dos EUA no governo de Jimmy Carter, atuou como regente de uma manobra de coordenação da CIA com os serviços paquistaneses e sauditas para o objetivo de financiar a armar os futuros terroristas, dentre os quais Ben Laden, esse, desde fins dos anos 1970s, para atrair a URSS para o cemitério afegão.5

Terrorismo doméstico? Com que finalidade?

Não surpreendentemente, são poucos os que se atrevem a falar da utilização do terrorismo também no quadro da política interna, muito especialmente em tempos de crise. De fato, não ‘cai bem’ supor que um estado ocidental, “democrático” e “liberal” recorra ao terrorismo contra a própria população. Mas, por exemplo quando da recente série de atentados que ocorreram na Turquia, grandes veículos da mídia-empresa francesa e especialistas ‘de televisão e jornal’ não hesitaram e falaram abertamente do provável envolvimento de serviços secretos turcos, denunciando, como fez o Le Point, uma “conivência do poder” com os terroristas, e falando de “dúvidas [quanto à competência] dos serviços de informação turcos, já muito criticados por não terem impedido o ataque terrorista em Ankara“.6

Idênticas acusações podem ser feitas ao poder francês e seus serviços de informações. E o mesmo Le Point revelava, em 2012, graves fracassos do DCRI no caso Merah. Mohamed Merah, que tinha um agente de ligação dentro do DCRI e que, ao que tudo indica, também trabalhava para os serviços nacionais de informação.
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Fato é que, se se analisam os três principais ataques terroristas acontecidos na França desde 2012, observam-se fatos recorrentes: sempre há documentos de identidade/passaportes esquecidos nos locais dos crimes; e indivíduos seguidos de perto e bem conhecidos dos serviços de informação. A isso se acrescenta que os serviços franceses foram avisados várias vezes, por serviços de informação de outros países, que havia atentados em preparação, tanto no caso de Charlie Hebdo como no caso de 13 de novembro.

O papel suspeito dos serviços secretos franceses no caso Merah foi objeto de inquérito parlamentar em 2013,8 cujo relatório revela, dentre outras coisas, que os serviços agem à margem da ordem legal e servem-se de meios insuficientes, o que contrasta com o zelo com que o governo aplica a própria lei das informações (equivalente francês das Leis Patriotas (Patriot Act) 1 e 2 dos EUA e cujo objetivo flagrante é muito mais vigiar a própria população francesa, que prevenir algum terrorismo).

Com efeito, todos ficamos sabendo, depois dos recentes atentados, fato revelado pelo ex-diretor do DCRI, Bernard Squarcini, que Manuel Valls, então ministro do Interior, recusou-se a receber a lista de jihadistas franceses que os serviços sírios de informação lhe ofereceram. Depois dos atentados do 13/11, o atual ministro do Interior, Bernard Cazeneuve, novamente reafirmou que a França não aceitaria qualquer tipo de ajuda dos serviços sírios.

Ainda que o governo Hollande, hoje, nada tenha feito para facilitar os atentados em Paris, certo, mesmo, é que nada fez para impedir que acontecessem.

Segundo um especialista em terrorismo e antigo instrutor do centro do estado-maior do exército alemão, Christoph Hörstel,9  estaríamos assistindo, na França, a um tipo de gestão do terror, que consiste de fabricar ou deixar que aconteçam atentados, para distrair a população e, sobretudo, para mudar a direção da ira popular. Aquele especialista diz que todos os governos da OTAN mentem, dado que, em quase 95% dos casos, os autores de atentados terroristas sempre são pessoas bem conhecidas dos serviços de segurança.

Em 2009, numa entrevista, François Hollande, que então ainda era primeiro-secretário do Partido Socialista, fez acusações gravíssimas. Segundo ele,


em nome da luta contra o terrorismo, estamos a caminho das mais graves misturas e confusões (…) qualquer um que não ande ‘na linha’, que tenha qualquer comportamento desviante, pode ser declarado terrorista. O que é grave atentado contra as liberdades“. E disse mais:

Há uma intenção política do poder, para dar a sensação de que haveria alguma ameaça, e que o poder reage àquela ameaça, para assim justificar a intervenção em nome da segurança” –, movimento que, para Hollande, em 2009, era “como uma deriva securitária que justificaria todas as leis repressivas em nome de uma ameaça que às vezes é real, mas às vezes é só virtual e, mesmo, inexistente “.

O objetivo dessa manobra, para François Hollande, seria “exibir competência e eficácia que fazem muita falta no plano econômico e social“.


O poder político e alguns veículos da mídia-empresa misturam ou espertamente confundem a luta contra o terrorismo e a redução de liberdades sociais.10 Mas, como já se viu, o número de atentados não diminui à medida em que aumenta a vigilância sobre a população em geral e sobre a oposição política, bem ao contrário.

Não se pode, afinal, compreender o fenômeno todo, se não se analisa a evolução de um regime político que já não consegue absorver a contestação e que, por isso, está arriscado a ruir em mil pedaços, implodir, porque se foi tornando cada vez mais duro e menos sensível, e, isso, no contexto de uma crescente deslegitimação da casta política francesa.11

O principal perigo hoje é a ativação de tensões intercomunitárias, vale dizer, é o perigo de confronto horizontal que desviaria a população francesa do verdadeiro objeto de contestação e de alguma eventual revolta contra o rumo da política internacional da França. É eventualidade para a qual o Executivo preparou-se já dia 30/6/2011, cerca de oito meses antes do caso Merah, quando autorizou por lei que representantes do Estado, funcionários civis e militares usem munição real contra a população, quando necessário para manter a ordem pública.12

Prospectiva e soluções

A estratégia norte-americana para fazer da Europa a cabeça de lança geoestratégica fundamental dos EUA (Brzezinski dixit) para penetrar com profundidade no continente foi bem-sucedida, com a ampliação da União Europeia e a instalação de bases da OTAN até junto às fronteiras da Rússia.

Hoje a França vê-se na encruzilhada… Diante da crise política (não de alguma ameaça terrorista) profunda que poderia levar ao fim de seu governo, François Hollande houve por bem dar-se, a ele mesmo, plenos poderes, pela aplicação dos artigos 16 e 36 da Constituição, ligeiramente modificados, especialmente o artigo 36, que prevê a transferências dos poderes para a autoridade militar.13

A França assim avança mais um passo da direção de se converter em ditadura social-democrata policial, principalmente por alienar as forças armadas, único poder que poderia depor o presidente e desconstituir o governo em caso de guerra civil e/ou de desestabilização do poder. Mas, estranhamente, em 2014 o Senado votou e aprovou lei que torna possível destituir o presidente da República por não cumprimento de seus deveres.14

Se se toma a devida distância e tenta-se uma análise nesse ponto, que beira a paranoia, pode-se deduzir que o presidente Hollande e seu governo estão escorregando para dentro de uma armadilha que parecem não estar percebendo. Porque o caminho percorrido deveria agora, pela lógica da União Europeia, estar chegando à abolição do Estado francês como tal, na perspectiva de uma transferência final do poder para o Politburo de Bruxelas.

Esse cenário corresponde perfeitamente às finalidades da estratégia norte-americana, cujo objetivo é neutralizar definitivamente a França, único país da Europa que poderia reorientar a evolução do subcontinente europeu, agindo de modo a estabelecer um eixo estratégico com a Rússia… Paris-Berlin-Moscou.

Foi precisamente o desejo manifesto do ministro de Relações Exteriores da França, Hervé de Charrette, em 1996, quando declarou que “Se a França quer ter um papel no cenário internacional, muito ganhará se aproveitar a existência de uma Rússia mais forte. Deve ajudar a Rússia a afirmar a própria potência”. Declaração que recebeu avaliação favorável do ministro russo15

Era o pior dos pesadelos dos norte-americanos, como Brzezinski o apresentou: “Se os laços transatlânticos se distenderem, será o fim da primazia dos EUA na Eurásia. Sua capacidade para comandar sobre o Oceano Atlântico, sua capacidade para penetrar em profundidade no continente, estarão, todas, muito limitadas.16

A desestabilização da França, talvez não leve ao desaparecimento do estado francês como estado soberano, reduzindo-o a entidade dominada por UE/EUA no Atlântico. Mas mesmo assim abrirá uma janela providencial, pela qual uma nova elite francesa seja capaz de mudar a própria esfera geopolítica natural, para uma Eurásia que vá de Brest à Vladivostok, não de Washington a Telavive.

Essa é a base da estratégia contra-atlanticista a ser estabelecida. Não esqueçamos que a geopolítica determina a política interna, não o contrário. *****


Notas

(1) Zbigniew Brzezinski, Le grand échiquier, 1997, p. 88.

(2) Zbigniew Brzezinski, Le grand échiquier, 1997, p. 104.

(3) Zbigniew Brzezinski, Le grand échiquier, 1997, p. 92.

(4) Ver a página da French-American Foundation: http://french-american.org/ (NTs: No Brasil, “Jovens Líderes” vão desde a Organização dos Escoteiros do Brasil até cursos de coaching [treinamento] para jovens líderes, passando pelo Lide, Grupo de Líderes Empresariais. No geral, todos esses grupos são ‘prestigiados’ por deputados e senadores do PDSB, do DEM e do PMDB, como, recentemente, pelo vice-presidente Michel Temer, e recebem reforço propagandístico de fascistas e sionistas midiáticos de todo o tipo, como, recentemente, por exemplo, do jornal Zero Hora, de Porto Alegre).

(5) Ver entrevista de Brzezinski: http://michelcollon.info/034-Pourqu…

(6) Le Point, Atentat d’Ankara : une enquête accablante pour la Turquie, 14/10/2015 : http://www.lepoint.fr/monde/attenta…

(7) Ver artigo do Point, Mohamed Merah travaillait pour les RG, 7/6/2012 : http://www.lepoint.fr/societe/merah…

(8) Resumo do relatório em http://www.france24.com/fr/20130517…

(9) Ver a entrevista em Russia Today: https://www.youtube.com/watch?v=hZh…

(10) Ver artigo do Point, 84% des Français acceptent une limitation des libertés en échange de plus de sécurité, 17/11/2015.

(11) Ver obra de Emmanuel Todd sobre o desaparecimento da democracia na França, Après la démocratie, 2008.

(12) Decreto n. 2011/795 de 30/6/2011 relativo a armas de fogo a serem usadas para manter a ordem pública: http://www.legifrance.gouv.fr/jopdf…

(13) Ver artigo no Le Monde de 16/11/2015 : http://www.lemonde.fr/les-decodeurs…

(14) Ver artigo no Figaro do 22/10/2014 : http://www.lefigaro.fr/politique/le…

(15) Le Nouvel Observateur, 12/8/1996.

(16) Zbigniew Brzezinski, O Grande Tabuleiro de Xadrez [fr.Le grand échiquier, 1997, p. 88].

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